Uma viagem surreal
A
noite passada tive um sonho estranho.
Sonhei que viajava de ônibus pela
estrada de terra para Tabajara, bairro distante do município de Lavínia. Meu
destino era o sítio onde cresci e morei até minha adolescência, a uns quatro
quilômetros antes de Tabajara.
No ônibus havia apenas quatro
passageiros, Noboru Sato um amigo de infância falecido há muito, uma mulher preta,
um homem branco e eu, além do motorista que nem cheguei a vislumbrar.
O sonho começa comigo dentro do ônibus
(ou jardineira?) já chegando ao destino, numa das curvas do caminho. A estrada
era de terra, então era cenário da minha infância, porque hoje a mesma está
asfaltada. O Noboru que não consegui definir como era, estava se preparando
para apear, numa curva antes de onde eu desceria. Acho que lhe pedi (não tenho
certeza) para avisar ao motorista onde eu apearia, ou seja na curva seguinte...
E comentamos que sobrariam apenas dois passageiros para prosseguir viagem.
E o sonho foi só isso.
Mas fiquei impressionada.
Não vi o ônibus parando, nem o amigo descendo, nem a minha
figura chegando ao destino. Nem o ônibus seguindo adiante.
E o estranho é como explicar essa viagem para um lugar que não mais
faz parte de minha vida. O sítio que antigamente tinha cafezais, terreiro para
secar café, horta no brejo, um carreador estreito que fazia divisa com o sítio
do Baiano, um cavalo branco chamado Brinco, algumas vacas no pasto perto de
casa, um poço com água saborosa e uma casa simples e branca com janelas azuis, foi
transformada num imenso pasto, reino do gado nelore de outras gentes. E quase
nada mais resta daqueles tempos, nem o poço...
Lá só restaram o imenso bambuzal, que papai plantou há mais de
setenta anos, o pé de guaivira, que nos forneceu tantos cabos retos de machado
e enxadas... E algumas paredes da antiga casa, que virou pousada de gado... E
de morcegos...
Nem sinal das duas seringueiras falsas de folhas redondas logo
na entrada, do pé de limão galego, com que fizemos jarras e jarras de suco, dos
pés de abacate, de manga Bourbon, espada, coração de boi, cujos frutos nos
adoçaram a infância; dos pés de tangerina, mexerica, de laranja baiana tão
sumarenta e doce! Do pé de amora junto à vasca de lavar roupa... E das fileiras
de galpões de telha vermelha, onde gritavam sem parar, as brancas galinhas
poedeiras...
Não entendi o meu sonho. O que me motivou para retornar ao
passado, como se estivesse vivendo naquela época e viajando de jardineira, e
descendo na reta, para caminhar a pé mais de um quilômetro de carreador para
chegar até a casa? Para uma casa que nem era mais nossa? E o Noboru que só conheci
moleque, porque depois eles se mudaram da vizinhança, e mais tarde acabou
falecendo... Nunca mais o vi. E no sonho não consegui definir se éramos
crianças, adolescentes ou adultos... Mas acho que éramos crianças, pois só o
conheci nessa fase de sua vida.
Mas nada disso importa. O sonho foi um flash de vida vivida
quando jovem. Aconteceu porque deve haver em mim, um desejo enrustido de voltar
a viver tudo aquilo que vivi lá. Importa pensar que tenho um anelo, como a
maioria das pessoas deve ter. O sonho de retornar à infância, de rever os
lugares onde fomos felizes, onde reinamos com toda a inocência dos verdes
anos... O sonho de resgatar um passado, onde tudo começou. Por isso, as imagens
não eram nítidas e parecia uma imagem surreal...
Mas, retornar lá não tem mais sentido. O cenário é outro. Papai
e mamãe já partiram para a morada definitiva, assim como um dos irmãos que
tanto labutou naquelas terras. Os demais partiram para outras paragens e, levam
uma vida completamente diversa, sem pensar em retornar ao passado, como eu.
Mas, eu tenho saudades... saudades.
Saudades das conversas ao pé do fogão de lenha sempre aceso,
onde costumávamos assar batata doce e espigas
de milho verde... Da panela de ferro de onde retirávamos o arroz quentinho, do
feijão cremoso no caldeirão vermelho de esmalte... Dos ovos fritos com fartura,
porque tínhamos granja, dos queijos colocados ali perto para apurar, das
linguiças de porco penduradas para defumar... Da bela e imensa mesa de madeira
de pés torneados, que não levava toalha porque éramos tão pobres, onde se
assentavam todos(em bancos compridos)
para as refeições... Do papai que ficava desenhando os ideogramas japoneses com
as gotas de água, que caiam das tampas
(ai, como dói essa saudade!). Dos irmãos que comiam apressados para escaparem
da mesa... Para irem chupar mexericas e tangerinas no pomar... Saudades das
galinhas e dos pintainhos que ciscavam no quintal... Dos porcos famintos que
gritavam pedindo milho... Dos cachorros que latiam anunciando visitas...
Saudades das vozes, dos alaridos, da vida...
Saudades da lida na roça, onde nós crianças derriçávamos café
maduro dos cafezais, que não acabavam nunca... Ou do terreiro, onde ficávamos
rastelando pra lá, pra cá o café colhido para secar... Ou indo ao brejo com
papai na Semana Santa para plantar alho, dente por dente... E plantávamos
ervilhas... Que davam tantas vagens depois da florada de mimosas flores roxas,
entre as folhas verde esbranquiçadas. Ervilha é uma planta elegante, frágil e
muito linda. Sempre que consumo ervilhas em vagem, meu coração estremece de
saudades do papai...
Saudades das colheitas de arroz. Mamãe comandava o trabalho.
Havia uma espécie de jirau feito de ripas grossas, onde os feixes de arroz eram
batidos para soltar os grãos dourados, que caiam sobre um encerado no chão. O
arroz era plantado e colhido só para o consumo da família. Nunca faltou arroz
em nossa mesa.
Tudo era produzido pela
família. Até frangos, ovos, leite e carne de porco. Era uma vida dura, feita só
de trabalho e mais trabalho, mas a maioria das famílias era autossuficiente.
Apenas o arroz e o café eram beneficiados nas máquinas da cidade. Beneficiar
era retirar as cascas. O café era torrado e moído em casa, e o sabor era bem
melhor. Torrar café não era brincadeira, uma quentura só! Ficar por horas
rodando a torradeira preta, junto do fogão de tijolos improvisado no chão,
debaixo das mangueiras... Fiz isso algumas vezes...
Não comprávamos legumes e verduras. Tudo era cultivado em casa.
Lembro que o repolho era plantado no meio do cafezal e dava cada repolho
imenso! Quiabo e tomate também eram plantados entre os pés de café. Lembro que
consumíamos muita acelga fresquinha, que colhíamos ali no quintal. E alface
repolhuda, de que comíamos só as folhas brancas... Tal era a fartura. E
tomatinhos miúdos que eram usados para fazer molho, salada e tempero... E havia
muita berinjela, vagem, cenoura, maxixe, jiló, mandioca, abobrinha, batata
doce, batata inglesa e milho verde...
Éramos tão pobres em dinheiro, em roupa e em conforto, mas
éramos ricos pela fartura de legumes, frutas e verduras, porque cultivávamos de
tudo e trabalhávamos muito. Nem aos domingos descansávamos, porque era
necessário retirar o leite das vacas para o consumo da família e, alimentar as
galinhas da granja e recolher os ovos, e tratar dos porcos e das galinhas
caipiras...
E tirar água do poço, porque era tudo assim rústico, bruto e no
muque... E tínhamos que rodar o sarilho dezenas de vezes ao dia, para puxar a
água do poço para a cozinha, para a lavagem de roupas e para os banhos...
Ninguém desperdiçava água, porque não estava disponível em torneiras como
hoje... E recolhíamos água de chuva das bicas dos telhados para lavar roupa. Era
mais fácil que tirar do poço...A água de chuva é ótima para lavar os cabelos.
E as roupas eram lavadas sobre uma tábua, onde eram esfregadas
com o sabão de soda, feito em casa com as vísceras dos porcos, que matávamos
periodicamente, para o consumo de carne. O porco era castrado e colocado para
engordar, para produzir a banha que era usada para cozinhar tudo. Não existia
óleo vegetal ainda. E o dia da matança de porco era uma festa. Todos participavam
com alegria, pois teríamos carne fresca e saborosa logo no almoço. E teríamos
muita linguiça, que seria defumada junto ao fogão de lenha. E teríamos por uns
dois meses, carne frita conservada em latas de dezoito litros dentro da banha
de porco, que era o único jeito de conservá-la, porque ainda não existiam
refrigeradores...
Rememorando o passado, percebo que nunca passamos fome nem sede.
A comida sempre foi farta, embora fosse frugal, porque se constituía de muitos
legumes e verduras. Mamãe fazia conservas de pepinos, de acelgas, nabos e mesmo
que a horta estivesse sem produção, nós tínhamos legumes para consumir. Quando
faltavam verduras, comíamos cambuquira refogada ou flores de abóbora feito
tempurá. Cambuquira é broto novo de abóbora. E comíamos muita mandioca cozida e frita. Ah!
E consumimos muito broto de bambu, isto ocorria mais no final do ano, quando
nasciam em profusão, por causa das chuvas.
E quando matávamos porco, levávamos um pedaço de carne especial
para a vizinha dona Regina Pascoal, que retribuía da mesma forma quando matava
seus porcos. Essa senhora pôs o apelido de Aurora na mamãe Torá, que ficou
depois conhecida como dona Aurora... Os vizinhos eram uns italianos alegres e
trabalhadores, que acabaram se mudando para o Estado do Paraná, e nunca mais
soubemos deles... Um dia, alguém de casa foi até a casa deles e pediu o “salvador”
emprestado. E eles ficaram confusos, porque o filho mais velho deles se chamava
Salvador. Papai queria emprestado um fole, que jogava inseticida nos buracos
dos formigueiros, que devastavam as nossas roças. E os japoneses apelidaram o
fole de “salvador” porque realmente salvava as plantações...
Desses tempos duros, a melhor lembrança que tenho eram as idas à
escola. Iniciei meus estudos numa escolinha rural, localizada na Fazenda Santa
Emília do senhor João de Paula, que ficava distante uns quatro quilômetros de casa.
Éramos minha irmã Neide e eu, tão pequenas e indefesas... Atravessávamos uma
matinha perto de casa, com o coração suspenso de medo, porque às seis horas da
manhã, a mata estava envolta em bruma e mal víamos o carreador...Qualquer
barulhinho deixava nossos cabelos em pé... Depois, passávamos na casa do
Aristeu, um colega que também ia à escola. Eles tinham uma olaria, que
fabricava tijolos...Um animal atrelado a uma roldana, ficava girando em volta
de uma caçamba, onde era colocado o barro para ser amassado... Então, era
colocado em caixas de madeira, de onde saiam os tijolos depois de secos... Era
uma fabriquinha de quintal, mas deve ter sido um sucesso, pois os tijolos eram
muito procurados ... Acho que o privilégio deles era o fato de morarem perto de
um riacho, onde existia argila, matéria prima para o fabrico de tijolos.
Nossa! Relendo o que anotei até aqui, percebo que fiz uma viagem
através do tempo, e revivi partes de minha vida. O sonho permitiu que eu
retornasse ao passado, e matasse as imensas saudades que moram em meu coração.
Na realidade já estive lá duas vezes com alguns familiares.
Apesar da desolação do cenário, cada canto despertou fatos ali vividos e,
chegou a doer por tudo ter passado.
Na última visita que fizemos há uns sete ou oito anos, fomos até
o bambuzal que papai plantou há mais de setenta anos. E lá na sombra benfazeja,
nos demos as mãos formando um círculo e, oramos por todos que lá moraram e
acabaram partindo...
Foi um momento mágico, de comunhão com o passado.
E gratidão por termos sido tão bem acolhidos por aquele chão,
onde deixamos para sempre as nossas pegadas...
Mirandópolis, novembro de 2015.
kimie oku in
http://cronicasdekimie.blogspot.com.br/
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