Viver outras vidas...
Para mim, a vida
sempre foi e será um mistério insondável. A morte então, nem se fala. Por mais
que matute e analise, não acho uma explicação plausível tanto para a vida como
para a morte.
Por isso, acho que a
vida é a coisa mais preciosa e misteriosa que existe. Não só a dos humanos,
como também dos animais e dos vegetais. Também acho que a água é viva assim
como a montanha, o vento, a brisa... todos eles têm uma presença que nós
sentimos na pele... para mim não são abstratos.
Entretanto, sempre
tivemos a ideia que quando alguém falece, tudo acaba, o corpo se degrada e vira
pó... “Memento homo, quia pulvis es et in pulvis reverteris” ou seja “Lembra-te
homem, que és pó e ao pó voltarás!”
Essa frase litúrgica,
inscrita em portais de cemitérios, lembra com crueza a nossa condição de
frágeis criaturas, que estão de passagem pela terra como uma carreira de
formiguinhas...
Mas, esta semana, ao perdermos um amigo
querido tão jovem ainda, tivemos a grata surpresa de saber sobre a doação de
partes de seu corpo, para outras pessoas que estão vivendo com dificuldade,
devido à inoperância de certos órgãos. Córneas, fígado, rins e tecido ósseo
para salvar vidas... Em meio à dor da perda, o respeito de toda a cidade por
esse gesto da família.
Com
certeza, o jovem continuará vivendo em outros corpos, cumprindo uma nova e bela
missão: ser o suporte para normalizar a vida dos beneficiados.
Para mim, que nada entendo de
procedimentos cirúrgicos, menos ainda de transplantes, é uma coisa espantosa
poder recuperar ou normalizar vidas através da substituição de órgãos doentes
por outros saudáveis.
Acredito que a parte implantada, quando
não rejeitada deva assumir as condições do novo ambiente físico, regenerando o
organismo doente. Deve ser um milagre! Como um enxerto que se faz em plantas
machucadas. E tudo se normaliza e a pessoa passa a viver tranquilamente, sem
medo de mal estares súbitos.
Pensando em tudo isso, é preciso pensar na
necessidade de mais doações, de mais desprendimentos para ajudar outras pessoas
a levar uma vida normal. Imagino a felicidade de alguém que, receba um coração
sadio quando a sua vida está por um fio. Deve agradecer a Deus e ao doador
todos os momentos de vida vivida a partir daí. E outros que recebem córneas e
passam a enxergar melhor o mundo. Deve ser fantástico!
Enxergar com olhos alheios, pulsar com um
coração de outro, ter um novo fígado processando os alimentos direitinho...
novos rins eliminando as impurezas do corpo... são simplesmente milagres, que
nunca passaram pela ideia de nossos antepassados. Quantos deles foram embora
porque tinham órgãos afetados e, não se cogitava em transplantes ainda.
A história de transplantes é bem antiga,
pois em 1933, um médico ucraniano, transplantou um rim para tratar um paciente
que sofria de insuficiência renal. E em 1967, o médico sul africano Christiaan
Barnard fez o transplante de um coração humano. É verdade, que o receptor não
usufruiu muito da alegria de ter um novo coração batendo no peito, pois houve
rejeição... Mas, foi o começo de uma nova era na Medicina, e na vida de milhões
de pessoas, que hoje vivem com órgãos transplantados.
No
Brasil a história de transplantes começou em 1968 e, de lá para cá não parou
mais. Hoje efetuar transplantes já é rotina.
Na minha total ignorância, ficava
imaginando como seria receber um coração alheio. Porque sempre achei que o
coração pulsasse conforme os sentimentos da pessoa... Desânimo faria o coração
devagar... Alegria faria com que se agitasse... E rancor o acelerasse... Mas um
coração estranho entraria em sintonia com os sentimentos da pessoa que o
hospedou? Ou, o coração nada tem a ver com
os sentimentos? Taí uma boa pergunta. Mas, por que meu coração dispara quando
fico nervosa e tensa?
Mistérios da vida...
Será que os sentimentos de um palmeirense
que recebeu um coração de corinthiano serão afetados? Será que sua paixão pelo
time anterior se manterá no mesmo nível. Ou haverá mudanças? Já imaginou um
crente bem radical de Alá receber um coração do mais puro cristão... Sua visão
sobre o mundo sofrerá mudanças? E uma
criança pequenina receber o coração de um jovem já mais maduro. Passará a agir
como um jovem ou continuará criança mesmo?
Perguntas... perguntas... dúvidas... Dão
um nó na cabeça de gente ignorante como eu. Mas, essas indagações continuarão
martelando a minha cabeça, enquanto não houver respostas...
A gente sabe de frutas cruzadas que acabam
adquirindo características novas. Experiências com melancias, melões e outras
frutas que criaram novos sabores, novas imagens...
Só os humanos manterão as características
anteriores? Afinal, no sangue ou no
coração transplantado não se transplantam novos genes???
Vou parar por aqui, porque o nó na minha
cabeça está apertando demais.
Também vou pensar em como continuarei a
viver outras vidas, quando parte de mim for enxertada em alguém, já que sou
doadora...
Mirandópolis,
janeiro de 2017.
kimie oku in
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