Arnaldo ia mudar-se...
Sempre que
planto uma muda de árvore lá no sítio, sem querer me lembro de um texto que li
quando criança.
Tinha uns nove anos de idade e o ano
era 1951. A escolinha era no bairro Tabajara, no município de Lavínia. Eu
estava na 3ª série do Curso Primário. Se não me engano, o livro era Meninice de
Luiz Gonzaga Fleury. Era um material bem rústico, em preto e branco, sem nenhum
colorido a não ser a capa, que apresentava um pouco de vermelho. O livro era de
leitura, que líamos perfilados, em pé, enquanto os colegas e a professora
ficavam atentos, acompanhando a pronúncia correta das palavras, e a entonação de
voz para respeitar a pontuação.
O texto se chamava “Arnaldo ia
mudar-se” e como ilustração havia a figura de um menino roçando o quintal. Esse
texto me ensinou a primeira lição sobre a humanidade. Em resumo, o menino ao
saber que ia mudar-se do lugar, pegou umas ferramentas e foi derrubar todas as
frutas do quintal, e quebrou os galhos das árvores, destruindo-as. Quando o pai
voltou da roça e percebeu o estrago, perguntou ao menino por que fizera isso. E
o menino retrucou que já que iriam embora, derrubara as frutas que eles não
iriam aproveitar. Aí, o pai ficou muito bravo e aborrecido. E explicou ao
garoto que, quando vieram de mudança para o lugar anos antes, essas mesmas
árvores lá estavam, sem que ele soubesse quem as plantara. E durante anos e
anos, lhes forneceram frutas saborosas, sem que tivessem que pagar por elas. E
que assim, como receberam a chácara com um belo pomar, deveriam eles mesmos,
deixá-la para os futuros moradores com todas as benfeitorias para servi-los. E
o pai concluiu dizendo que, todos nós temos uma grande dívida para com a
humanidade, porque alguém que nos antecede deixa sempre um benefício, pelo qual
nunca poderemos pagar. É uma árvore que nos proporciona a sombra, uma horta
formada com algumas verduras, um quintal limpo com árvores frutíferas, um
cercado e um pasto formado para o gado, um poço com a preciosa água...
Quando li esse texto fiquei muito
impressionada, pois nunca havia pensado nessas coisas. E entendi que, todos nós
temos uma dívida impagável, para com toda a humanidade.
E muitos anos depois, quando compramos
esse sítio, voltei a lembrar desse texto. O peão que lá morava, um senhor
barbado, de seus 40 anos idade, chefe de família, fez uma coisa inconcebível.
Na véspera de sua mudança, teve o capricho de derrubar todas as flores e os
caroços das jabuticabeiras que havia no quintal. Derrubou um pé de canela com
machado, já que o tronco era bem grosso. E não satisfeito ainda, enterrou o
poço que lhe fornecera água por décadas, com todas as pedras, cacos de tijolos
e paus que achou no quintal. Tivemos que contratar um senhor para limpar o
poço, e deu muito trabalho tirar todo aquele entulho...
Esse desventurado homem não aprendera o
sentimento de gratidão. Como pagar o bem que o poço lhe proporcionara, jogando
entulhos nele, só porque iria embora? E
cheguei à conclusão que era um homem mau, sem consciência de seus atos e pior
ainda, que só pensava em si mesmo.
E ao longo de meus setenta e poucos
anos de vida, fui percebendo como a gente deve ser grata à humanidade. À pessoa que construiu a primeira casa, furou o
primeiro poço, que inventou o alfabeto, que descobriu o fogo, que criou as
vacinas contra doenças, que inventou os livros, os cadernos, as escolas, os
carros, os navios, os aviões, os celulares, a Internet...
Todos nós temos uma dívida que já
herdamos ao nascer: pelo hospital, pelos médicos que fizeram o parto, pelos
remédios, leite e banhos que recebemos, pelas roupas que vestimos, pelas
fraldas que usamos, pelos alimentos que ingerimos para sobreviver... Alguém
inventou essas coisas e todos nós usufruímos inconscientemente.
Mas, voltando ao sítio que adquirimos
há mais de três décadas, posso dizer com orgulho que há benfeitorias que lá
fizemos para benefício de muita gente. E não só para gente, mas também para os
animais silvestres. Plantamos árvores frutíferas, construímos açudes que nunca
deixaram faltar água para o gado. Furamos um poço semi artesiano, formamos a
horta... Plantamos árvores de frutas silvestres como ingá, pitangas,
preservamos as macaúbas, as seriguelas, as jaqueiras, que atraem bichos que
moram nas ralas matas do Rio Feio.
E mesmo agora com meus setenta e poucos
anos, continuo plantando e regando mudas de árvores, para preservar as espécies.
Sei que o meu tempo está se esgotando, mas alguém irá usufruir das sombras, dos
frutos e das flores.
E assim terei pago de alguma forma, uma
parte da imensa dívida que tenho com a humanidade.
Mirandópolis, junho de 2014.
kimie oku in
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