sexta-feira, 11 de julho de 2014

       
Arnaldo ia mudar-se...

       Sempre que planto uma muda de árvore lá no sítio, sem querer me lembro de um texto que li quando criança.
       Tinha uns nove anos de idade e o ano era 1951. A escolinha era no bairro Tabajara, no município de Lavínia. Eu estava na 3ª série do Curso Primário. Se não me engano, o livro era Meninice de Luiz Gonzaga Fleury. Era um material bem rústico, em preto e branco, sem nenhum colorido a não ser a capa, que apresentava um pouco de vermelho. O livro era de leitura, que líamos perfilados, em pé, enquanto os colegas e a professora ficavam atentos, acompanhando a pronúncia correta das palavras, e a entonação de voz para respeitar a pontuação.
      O texto se chamava “Arnaldo ia mudar-se” e como ilustração havia a figura de um menino roçando o quintal. Esse texto me ensinou a primeira lição sobre a humanidade. Em resumo, o menino ao saber que ia mudar-se do lugar, pegou umas ferramentas e foi derrubar todas as frutas do quintal, e quebrou os galhos das árvores, destruindo-as. Quando o pai voltou da roça e percebeu o estrago, perguntou ao menino por que fizera isso. E o menino retrucou que já que iriam embora, derrubara as frutas que eles não iriam aproveitar. Aí, o pai ficou muito bravo e aborrecido. E explicou ao garoto que, quando vieram de mudança para o lugar anos antes, essas mesmas árvores lá estavam, sem que ele soubesse quem as plantara. E durante anos e anos, lhes forneceram frutas saborosas, sem que tivessem que pagar por elas. E que assim, como receberam a chácara com um belo pomar, deveriam eles mesmos, deixá-la para os futuros moradores com todas as benfeitorias para servi-los. E o pai concluiu dizendo que, todos nós temos uma grande dívida para com a humanidade, porque alguém que nos antecede deixa sempre um benefício, pelo qual nunca poderemos pagar. É uma árvore que nos proporciona a sombra, uma horta formada com algumas verduras, um quintal limpo com árvores frutíferas, um cercado e um pasto formado para o gado, um poço com a preciosa água...
      Quando li esse texto fiquei muito impressionada, pois nunca havia pensado nessas coisas. E entendi que, todos nós temos uma dívida impagável, para com toda a humanidade.
     E muitos anos depois, quando compramos esse sítio, voltei a lembrar desse texto. O peão que lá morava, um senhor barbado, de seus 40 anos idade, chefe de família, fez uma coisa inconcebível. Na véspera de sua mudança, teve o capricho de derrubar todas as flores e os caroços das jabuticabeiras que havia no quintal. Derrubou um pé de canela com machado, já que o tronco era bem grosso. E não satisfeito ainda, enterrou o poço que lhe fornecera água por décadas, com todas as pedras, cacos de tijolos e paus que achou no quintal. Tivemos que contratar um senhor para limpar o poço, e deu muito trabalho tirar todo aquele entulho...
   Esse desventurado homem não aprendera o sentimento de gratidão. Como pagar o bem que o poço lhe proporcionara, jogando entulhos nele, só porque iria embora?  E cheguei à conclusão que era um homem mau, sem consciência de seus atos e pior ainda, que só pensava em si mesmo.
   E ao longo de meus setenta e poucos anos de vida, fui percebendo como a gente deve ser grata à humanidade. À  pessoa que construiu a primeira casa, furou o primeiro poço, que inventou o alfabeto, que descobriu o fogo, que criou as vacinas contra doenças, que inventou os livros, os cadernos, as escolas, os carros, os navios, os aviões, os celulares, a Internet...
    Todos nós temos uma dívida que já herdamos ao nascer: pelo hospital, pelos médicos que fizeram o parto, pelos remédios, leite e banhos que recebemos, pelas roupas que vestimos, pelas fraldas que usamos, pelos alimentos que ingerimos para sobreviver... Alguém inventou essas coisas e todos nós usufruímos inconscientemente.
   Mas, voltando ao sítio que adquirimos há mais de três décadas, posso dizer com orgulho que há benfeitorias que lá fizemos para benefício de muita gente. E não só para gente, mas também para os animais silvestres. Plantamos árvores frutíferas, construímos açudes que nunca deixaram faltar água para o gado. Furamos um poço semi artesiano, formamos a horta... Plantamos árvores de frutas silvestres como ingá, pitangas, preservamos as macaúbas, as seriguelas, as jaqueiras, que atraem bichos que moram nas ralas matas do Rio Feio.
    E mesmo agora com meus setenta e poucos anos, continuo plantando e regando mudas de árvores, para preservar as espécies. Sei que o meu tempo está se esgotando, mas alguém irá usufruir das sombras, dos frutos e das flores.
     E assim terei pago de alguma forma, uma parte da imensa dívida que tenho com a humanidade.

        Mirandópolis, junho de 2014.
        kimie oku in http://cronicasdekimie.blogspot.com.br/


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