quarta-feira, 20 de maio de 2015

                        Saudades das batians
   Hoje perdi uma preciosa amiga. Tinha 92 aninhos, e eu sabia que não iria conviver muito com ela, quando começou a nossa amizade há dois anos.
     Eu a respeitava muito e não tinha coragem de me aproximar dela, pois não saberia estabelecer um diálogo, devido à pobreza do meu Japonês. Ela só conversava nessa língua. Mas, um dia aconteceu algo incrível! Ela me dirigiu a palavra! Eu estava lendo um livro japonês, e ela queria saber o que era. Espantadíssima, mostrei o livro. Era a biografia de Oda Nobunaga, um dos heróis da História do Japão. Ficou admirada de eu saber ler um pouco de japonês. Daí uns dias, ela me pediu que lhe emprestasse o livro. Tínhamos o mesmo gosto pela História antiga do Japão. Foi assim que começou.
     Como estudo a língua de meus antepassados, leio livros da História do Japão, pois enquanto aprendo a língua, vou conhecendo a História do país de meus ancestrais.
     Depois desse primeiro contato há uns dois anos, passamos a trocar livros, e bem ou mal eu conseguia me comunicar com ela. E cada vez que me encontrava com ela, ficava mais encantada pela sua simplicidade e sabedoria. Passei a visitá-la, pois ela tinha dificuldade de locomoção pela idade avançada (90 anos!). E passei bons momentos, ouvindo coisas do passado, sobre amigas que havia perdido, sobre atividades realizadas no Clube Nipo... E um dia, ela começou a contar fatos engraçados de sua vida. Então lhe pedi uma entrevista, para contar a sua vida em Gente de Fibra, que publiquei no Jornal Diário da cidade. Em Gente de Fibra, relato a biografia de gente que ajudou a construir a cidade de Mirandópolis, e já publiquei dezenas delas. Histórias de gente simples que passou a vida toda trabalhando e ajudando a sociedade a se desenvolver... Desde o sorveteiro de rua, ao dentista, o último charreteiro, o professor de violão e outros tantos... Que já ultrapassaram a conta de cinquenta gentes de fibra.
E sexta passada, dia 24 de abril de 2015 foi o funeral de minha respeitável e querida amiga Dona Kimiko Kawasaki, que foi um exemplo de cultura, beleza e líder da comunidade japonesa local. Para mim foi uma preciosa amiga que respeitava muito.
     E, após o funeral, fiquei pensando nas doces batians que perdi ultimamente. A primeira foi a Senhora Natsuko Yuassa. A senhora Yuassa era a mãe do nosso querido médico Dr. Roberto Yuassa, que tanto bem já fez em prol da nossa gente.
     A abordagem com essa senhora foi diferente.
     Um dia, caiu em minhas mãos um livro em japonês, que era a história dessa senhora, contada por ela mesma. À época, eu estava iniciando o estudo da Língua Japonesa, da qual era completamente analfabeta. Tentei ler o livro, usando dicionários... Levei meses e só entendi algumas passagens da vida dela. Curiosa como sou, juntei coragem e atrevimento e fui visitá-la. Nessa primeira visita, só consegui lhe explicar que queria entender o livro. Comunicação era impossível: ela só falava japonês e eu não entendia nada, absolutamente nada do que me dizia. Mas, foi gentilíssima e me pediu para voltar lá. E assim, pouco a pouco fui chegando e aprendendo tanta coisa, que me ensinou. Com sua orientação, consegui ler e entender a história de uma jovem que viera ainda adolescente, como imigrante para o Brasil. Do sofrimento, das lutas, da dificuldade de adaptação...
Nossa amizade durou mais de vinte anos, até ela partir... Passei tardes inesquecíveis, ouvindo suas memórias do Japão, sua tristeza pela perda do neto tão jovem ainda e do esposo... Era uma poetisa, e escrevia poemas para um Jornal japonês, publicado no Brasil... Tinha uma cultura sólida e vasto conhecimento do comportamento humano. Aprendi muito com ela. Aprendi a amá-la também! Tenho saudades das horas que passei com ela...
     Outra batian querida foi a Senhora Someko Miyamaru, que faleceu em 2013. Ela morava na esquina da Praça Manoel Alves de Ataíde, no casarão que fica próximo à antiga Casa de Saúde, hoje inativa.
     Quando mamãe era viva, eu a levava nas casas onde se celebravam cerimônias religiosas, em memória de falecidos das famílias... E ao terminar a celebração, ia buscá-la. E volta e meia, dava carona para a senhora Miyamaru também. Depois que mamãe faleceu, fui visitá-la um dia. E ela me pediu: “Você não é filha da Senhora Osaki? Então, faça a parte dela, me visitando de vez em quando! Sua mãe foi embora, mas gostaria que você viesse porque sou muito sozinha, e não posso ir até a sua casa!” Ela tinha problemas de varizes nas pernas, que dificultavam seu caminhar.
     Condoída pelas condições dela, passei a visitá-la de vez em quando. Levava DVDs de novelas japonesas e coreanas, que a deixavam encantada. Levei também CDs de música japonesa, que ela amava.
     Ela sempre me perguntava as mesmas coisas sobre minha aposentadoria, sobre as atividades de meu esposo, sobre os familiares... E contava passagens de sua vida repleta de trabalho, que a deixaram inutilizada, com as pernas cheias de varizes dolorosas... Disse que um dia, o Dr. Yoshito Kanzawa a repreendera porque trabalhava demais na roça. Ele teria dito: “Você não é homem para se matar de tanto trabalhar!” Mas, trabalhava muito porque o esposo falecera e tinha sete filhas e apenas dois filhos. Quando ia vê-la, ela segurava minhas mãos para que eu não viesse embora... Era uma mulher alegre e sempre me levantava o astral quando saía de lá. Faleceu há uns dois anos... Nossa amizade durou mais ou menos uns dez anos...
     Interessante é que tenho vocação para ouvir pessoas idosas. É que só os idosos podem me ajudar a fortalecer meu conhecimento da Cultura Japonesa. O contato com essas senhoras me fez praticar a língua, e hoje consigo me comunicar em japonês, embora meu Japonês seja meio arrevesado... Mas, valeu a pena ter convivido com elas, e partilhado de suas vidas. Vidas de trabalho, de sacrifícios e de muitas saudades...
     E por fim, quero falar de outra batian, que amei demais e não soube lhe dar o devido valor. Minha Mãe!  Foi uma moça valente que ficou órfã ainda adolescente, e teve que cuidar dos irmãos e do pai de uma hora para outra. Casou-se com apenas dezoito anos e criou doze filhos! Teve problemas com papai, que bebia muito, mas ela foi firme até o fim, mesmo depois que ele partiu. Trabalhou como uma escrava para dar conta de criar os filhos e, viveu noventa anos. Quando na velhice, não tinha mais trabalhos a fazer, visitava pessoas doentes e ministrava o johrei, que é uma oração da Religião Messiânica. E por mais de trinta anos, percorreu a nossa cidade, orando pelos doentes... Era conhecida como dona Aurora. E fazia um crochê belíssimo. Ela amava fazer crochê. Na família, há dezenas de peças feitas por ela, que nós usamos com um misto de saudade e reverência. Mamãe Torá Tsutsumi Osaki também é uma batian, que se transformou em estrela lá no céu. Preciosa estrela!
     Hoje estou também no limiar da vida, e olho para trás, sempre com saudades. Saudades de gente tão gentil, que me permitiu partilhar de suas vidas, só pela companhia, dividindo a solidão de suas tardes...
     E acredito que fui uma pessoa privilegiada, por ter sido agraciada pela simpatia dessas batians queridas...

     Mirandópolis, abril de 2015.
     kimie oku in



2 comentários:

  1. Ouvir história, aprender história e contar história de vida e de sentimentos. Nada mais sublime!
    Parabéns Kimie por pertencer à essa legião de privilegiados, ou escolhidos! Abço.
    Lupércio Ailton Nery Palhares

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    1. Obrigada, Lupércio. Há tanto que ouvir e aprender nesta vida.

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