Eu sou duas
Há em mim duas pessoas distintas: uma oriental nisei e uma
ocidental, brasileira. As duas são de alguma forma, antagônicas. Em conflito
todos os dias.
A kimie japonesa tem origem numa ilha remota chamada Japão no
Círculo de Fogo, chacoalhada todos os dias pelos vagalhões do Oceano Pacífico. É
exatamente aí que a minha história começou. É nesse lugar que meus pais
nasceram e é aí que repousam meus
ancestrais.
A kimie ocidental nasceu
aqui nos trópicos e não conhece neve, só conhece o calor desta terra tupiniquim
Brasil, onde estou vivendo desde que nasci.
A parte oriental me leva a estudar a cultura japonesa, seus
costumes e tradições, a História registrada. A parte ocidental me fez
Professora e passei trinta anos pelejando na Educação, inventando formas de
facilitar a compreensão dos alunos. Agora escrevo crônicas do dia a dia...
A minha porção oriental deseja escrever também essas crônicas na
língua materna, porque tem coisas que só consigo definir em japonês. Ainda chego lá. Enquanto isso, vou me abastecendo, pesquisando e lendo tudo que se
refere à cultura nipônica.
Se de um lado aprecio Manuel Bandeira, Cora Coralina e Graciliano Ramos, por outro fico fascinada
com os poemas de Miyazawa Kenji, e com as biografias de Nobunaga, Hideyoshi, Ieyassu,
Noguchi Hideyo.
Se aprecio a música popular do Brasil desde Raul Seixas até as
caipiras como Menino da Porteira e Chico Mineiro; por outro lado aprecio demais
a música popular japonesa, notadamente as antigas da Era Showa, cantadas por Kitajima
Saburo e Murata Hideo.
O instrumento musical brasileiro que me impressiona fortemente é
o berimbau, cujo toque é base da capoeira que é uma coreografia sempre
movimentada e bela. Do Japão, o mais impressionante é o shakuhachi, ou uma
flauta de bambu, que guarda em seu interior sons de arrepiar. O shakuhachi toca
o mais profundo de minha alma, e desperta integralmente a minha porção
oriental.
Comida brasileira boa de fato é o arroz e o feijão de todo dia,
além de um bom churrasco, uma peixada... Do Japão curto o gohan ou arroz
branco, sashimi, tsukemono além da sopa de missô.
Tudo isso que existe em mim começou com a Imigração Japonesa no
Brasil. Foram cem anos de luta, de adversidades, de discriminação até chegarem a
um final, para todos viverem em paz. Com a aculturação, agora todos sabem o que
é bom odori, sashimi, tsunami, yakissoba, okanê, e mais uma dezena de palavras
que são faladas diariamente, misturadas ao linguajar português de cada dia. Por
outro lado, os imigrantes idosos também aprenderam o significado de café, feijão,
futebol, samba, Banco e Hospital...
O mais impressionante para mim que é motivo de observação
constante é a diferença de comportamento dos japoneses e dos brasileiros em
geral. Os brasileiros são alegres, expansivos, chegando a ser até exagerados em
suas manifestações de dor, gritando em altos brados ao chorar e dançando e
cantando nos momentos felizes.
Os japoneses são comedidos, seguram sua dor e seus sentimentos,
porque foi assim que foram treinados de geração em geração, para não incomodarem
as demais pessoas. Em geral toda saudação é feita apenas oralmente, sem um
abraço, sem um aperto de mão, respeitosamente. Pode ser correto e saudável, mas
acho um tanto frio.
Em relação à escrita, a brasileira é fácil porque o alfabeto
romano possui apenas vinte e seis símbolos ou letras, e com eles dá para
escrever tudo, tudo mesmo. Até em espanhol, inglês, francês...
Na Língua Japonesa a coisa é bem complicada. Há ideogramas tão
difíceis que até inventaram um alfabeto paralelo, o hiraganá para
traduzi-los... Mesmo lá no Japão, só uma pequena parcela domina todos os
ideogramas, que chegam ao total de seis mil...
Viver com essas duas personagens tão contrastantes é muito difícil. O eu oriental exige uma postura mais severa, comedida. O eu brasileiro me faz escrever tudo que me incomoda, que me emociona e me faz feliz. Mas, na revisão, a kimie japonesa tira uma expressão aqui, troca uma palavra ali e o texto perde a originalidade.
Eu me lembro que um dia, uma amiga disse num desses Cursos de Professores, que por eu ser um tanto expansiva me considerava uma japonesa falsificada. Pode até ser verdade, porque não consigo ser totalmente japonesa e nem totalmente brasileira.
É mole, gente?
Mirandópolis, janeiro de 2022
kimie oku in
http://cronicasdekimie.blogspot.com.br/