NUHIKUN
Instruções aos Criados
Ontem à noite tive a
oportunidade de assistir a uma peça teatral na Comunidade Yuba.
Ora, quando se vai ao teatro, o apreciador
vai de espírito preparado para ver o desenrolar de uma história, que alguém
quer contar ou dramatizar. E honestamente falando, não estava preparada para
ver o que vi. E acredito que a maioria das pessoas pouco entendeu das encenações. Mas, me
incomodou muito, tanto que não consegui sair do local até o fim, e esperei que
alguém viesse explicar alguma coisa. Fato que não ocorreu
Para cada um tirar suas conclusões...
Entretanto, não consegui parar de pensar
nas cenas que vi. E mesmo sem ter certeza de que as minhas conclusões sejam
corretas, passarei a expor a minha interpretação. Se estiver equivocada,
gostaria que me contestassem e me esclarecessem...
Já de início, percebi que era um teatro de
vanguarda, pois reservaram um espaço lateral de chão batido como extensão do
palco. Aquelas figuras grotescas curvadas cutucando a terra, com suas
ferramentas já me revelaram que eram escravos, pela postura da espinha dorsal totalmente
dobrada e suada, e pela expressão vazia de seus olhares... Trabalhando,
trabalhando, repetindo gestos até a exaustão, sem que ninguém lhes desse
importância... Sem nomes, sem definição, apenas escravos destinados ao serviço
duro e monótono, sem alegria.
Depois, alguém que foi totalmente despido
de suas vestes é envolto em sedas para ser travestido de Senhor e colocado no
trono. Parafernálias estranhas ou máquinas indefinidas, quanto à função ficam à
disposição do homem do trono, que supus ser o Rei. E criados mal ajambrados
ficam circulando ao redor, fazendo pajelança. Todos curvados e submissos...
O Senhor desaparece. E todos, órfãos de pai e mãe se vêm
perdidos sem um guia. Então, chega um estafeta trazendo um par de sapatos, que
quer entregar ao Senhor. Na inexistência deste, os criados tentam calçar os
sapatos, que devem representar o Poder. Não servem para ninguém... E todos
disputam o trono, lutando para permanecer sentado lá. É uma briga de forças
opostas, porque todos almejam a mesma coisa. O Poder.
E um cidadão que diz ter vindo salvar a todos da fome, trazendo
comida se torna Rei, e logo transforma os criados em cães, ao lhes oferecer um
osso. E todos abocanham o osso e cada um vai fazer reverência à Majestade, que
os alisa como se estivesse realmente passando a mão num cachorro fiel... Nessa
altura, percebe-se um dos criados que se esconde, e procura escapar dessa
humilhação... Depois, todos latem e uivam para mostrar fidelidade e submissão
ao dono/domador. A dominação foi completada.
Depois é a vez da Rainha poderosa, que consegue manipular a
todos quando coloca um rebelde numa cadeira ou guilhotina, e lhe grita ordens
que não deixam dúvidas quanto ao seu poder. Tanto é que tem até um sapato como
coroa na cabeça. E ela assume posturas delicadas, cantando e mostrando o lado
feminino e suave de Mulher, mas não deixa de ser a Mão de Ferro, que manda e
desmanda.
Entre um ato e outro, há também uma tentativa de tirar a todos
da servidão, com o acendimento de fogos para iluminar a obscuridade de suas
vidas sem sentido. A cena dos cegos/ surdos/mudos sendo libertados para a luz é
metafórica, e impressiona pelo desenrolar das faixas quilométricas de suas
cabeças, que os deixavam como múmias errantes... Fantástica foi essa ideia.
E há a cena das janelas com cabeças vivas guardadas, ou gentes
espiando o desenrolar da história. E dois cidadãos presos numa máquina bem
elevada, onde se alternam na dança do sobe e desce, mostrando que quem está lá
no topo pode cair, e ficar de cabeça para baixo e vice versa, conforme a onda que
passa.
Tudo isso foi muito difícil de interpretar porque havia ações
demais, havia mil fatos acontecendo simultaneamente no centro do palco e no
palco anexo, e tudo guarnecido com cenas de circo, e danças imitando teatro No
e Kabuki.
A sonorização deu o tom dramático. Houve momentos tranquilos, e
outros retumbantes que assustaram a plateia. A iluminação também deu o tom
dramático, com minutos de escuridão total para mostrar fases de nossa História,
mergulhada nas sombras do obscurantismo, para o domínio total do homem pelo
homem.
O que me impressionou foi a fala final da Rainha dizendo que, a
humanidade precisa de um Senhor para ser comandada e que os servos têm que ser
conduzidos por alguém... Para aprender a
se comportar e viver em sociedade... Para haver ordem... Mas que o ideal seria
não precisar de Reis, Rainhas e Senhores.
Isso tudo até agora foi a narração do que vi.
Passo então à fase de opiniões minhas, só minhas conforme
entendi tudo que vi.
O japonês Shuji Terayama (1935/1983) recorreu à obra original de
Jonathan Swift para montar essa peça. E no final das contas eles contaram a
História da Humanidade, que sempre viveu à sombra de tiranos ou Reis,
Imperadores que dominaram desde o princípio dos tempos. Tudo não passa de
uma disputa de poder, porque o homem quer sempre estar acima de outros, para
dar ordens.
E para conseguir estar no topo faz a vontade do povo, saciando
sua fome e atendendo às suas necessidades básicas. Cá entre nós, é a campanha
política da modernidade, que tudo promete para conseguir o objetivo da eleição.
Lá chegando, esquece o que prometeu e acaba transformando os cidadãos em servos
sem vontade e liberdade próprias... Sempre foi assim no mundo inteiro,
infelizmente.
E o povo, por preguiça ou comodidade vai se acostumando a viver
na escuridão, no limite das fomes e das liberdades... E cada Mandante que é
eleito, sabe apenas subjugar o povo, para conseguir toda pompa e glória que a outros são negadas.
E a maioria dos cidadãos, também por preguiça ou comodidade,
prefere viver como múmias enfaixadas com mil metros de bandagem, para não ver,
não ouvir e nem falar. E não sentir, que é pior. Porque prefere ser enganado do
que partir para a luta, e reivindicar seus direitos. E todos deixam de viver
plenamente a própria vida, porque são teleguiados por forças alheias. Se a luz
é retirada, vão viver na escuridão total, porque se acostumaram a obedecer. Se
a fala é negada, passarão a ser mudos. Se o som incomoda, passarão a agir como
surdos, que nada ouvem... E uns e outros que se incomodam são todos
guilhotinados...
A diversidade de ações, ocorrendo ao mesmo tempo em vários
cantos do palco, não permitiu perceber tudo que se passava. É que na verdade,
representava o Mundo, onde mil coisas acontecem ao mesmo tampo: O Rio Doce que
virou o Rio de Lama em Minas, os atentados em Paris, o jogo do Brasil com a
Argentina, a Guerra contra os Jihadistas, a Greve de nossos Caminhoneiros, os
Escândalos do Governo no Mensalão e no Petrolão e no BNDS... É muita sujeira
escorrendo e haja olhos para dar conta!
Foi uma peça e tanto o NUHIKUN ou Instruções aos Criados.
Gostaria de ver de novo para conferir minhas conclusões.
Mirandópolis, 14 de novembro de 2015.
kimie oku in
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