Descendo
a rampa
Acabei de completar 74 anos!
Nunca pensei que viveria tanto.
E quando se chega ao limiar da vida, é inevitável pensar na
vida vivida até agora. Comparar as fases que passaram: a infância tão inocente
e distante; a fase escolar, de deslumbramentos ao conhecer o mundo tão cheio de
novidades; a fase do trabalho, da correria que coincidiu com o exercício da
maternidade, quando dormir horas seguidas foi um raro e abençoado acontecimento;
e depois a partida dos filhos do ninho, para também conhecerem o mundo e
repetirem tudo que fizemos até então.
Setenta e quatro anos não são poucos.
E só
eu sei que vivi cada dia numa aflição, num desespero sem ter a certeza de estar
acertando, cheia de dúvidas, orando para as coisas se encaminharem bem. Como
Professora também repleta de dúvidas para não perder os objetivos, e dar uma
boa formação aos alunos. E a falta de tempo para estudar mais, saber mais para
ajudar as crianças sobre como aprender, como entender as noções que precisava
passar...
Mas
as incertezas maiores foram em relação aos filhos, uns querendo mais, outros
desnorteados sobre que rumo tomar, e o cuidado extremo de indicar caminhos
adequados, para serem felizes de fato... Os desentendimentos mil que pautaram
nossas relações até hoje... Os pais nunca sabem onde acertaram, onde falharam.
Só o tempo mostrará. E uma prioridade fundamental para mim foi que eles fossem
felizes. Só isso. Nunca ambicionei que ficassem ricos e poderosos, porque isso
não significa felicidade.
De
qualquer forma, bem ou mal cheguei até aqui. Com a ajuda e o apoio
incondicional de meu parceiro.
E
hoje percebo que estamos no limiar da vida.
O
que nos espera?
A
despedida, a morte, a partida, a descida da rampa ...
É a
realidade pura e simples, que tenho que encarar.
Fui
perceber que, a velhice havia chegado quando comecei a sentir as pernas mais
fracas para caminhar. Caminhar até o Banco, até à Farmácia, à Mercearia já não
é um exercício leve. Exige força de vontade, porque me canso facilmente. E
carregar pacotes? Olha, ainda bem que as mercearias entregam as frutas e as
verduras. Não é mole, não! Carregar três sacolinhas de laranjas, de repolho, de
batatas. E são apenas três quadras! Chego esgotada em casa, já não é fácil
carregar o próprio corpo.
O
corpo da gente se deteriora apesar dos cuidados, apesar das caminhadas, apesar
dos exercícios. É inexorável. Nada detém esse processo. Procurei ignorar certos
sinais, mas chega um momento em que a deficiência nos atinge brutalmente. É a
palavra que sai mal pronunciada pela língua pesada, a saliva que sobra na boca,
os ouvidos que ficam moucos e a gente só ouve uns pedaços de conversa... Os
olhos que não enxergam o que está diante do nariz... E a memória? Meu Deus!
Como ela falha!!! Quantas vezes conversei com amigos que me abraçaram
efusivamente, me tornando feliz e eu... não lhes lembrei os nomes... E pior
ainda: Quem seriam???? Quantas vezes esqueci onde havia estacionado o carro!
Quantas mil vezes perdi os óculos... E o que vim fazer aqui???
E
as dores? Para se levantar da cama, a gente dá sempre um gemido e, tem que se
apoiar em algo para se pôr de pé... E para caminhar tem que ser devagar, porque
os joelhos estão cansados de articular e reclamam... E a coluna? Para
esticá-la, outro gemido mais puxado... Para agachar à procura de algo que
caiu... E levantar-se após agachar é quase impossível.
Mesmo
assim, a gente teima em andar, porque nós somos caminhantes e se pararmos, tudo
vai travar. Os nervos se enrijecem e aí a dor vai ser insuportável. Então
caminhar é preciso, mesmo que no quintal de casa, ou varrendo a calçada, ou
mesmo dando uma volta no quarteirão. Quem pratica isso, ainda consegue cuidar
de si sozinho. Mas, quem deixa de caminhar, vai se recolhendo nos cantos da
casa e vai assumindo a posição fetal. Aí, já não dá mais. É morte certa!
Na
velhice, o estrago não é só externo. É interno também. Percebo que a gente vai
perdendo o controle sobre os intestinos e os rins. De repente, eles funcionam
e, é urgente correr. Outras vezes, não funcionam por horas e às vezes, por
dias... Imprevisível. Então, viajar de ônibus é quase impossível. As paradas são esparsas.
Também
a parte sexual vai morrendo aos poucos, sem que a gente perceba. Aquele calor,
aquela libido própria de juventude, dos anos verdes passam, aquele fogo que
atrai os corpos acaba passando. E o corpo fica sossegado... Não há como evitar
isso. O corpo se basta e pronto.
Percebo
ainda que, a gente vai perdendo as impressões digitais. Descobri isso, quando
não consegui acionar um brinquedo que tocava música ao contato de dedos. Achei
muito estranho. Todos conseguiam, menos eu... E ultimamente, tive a confirmação
com os Caixa Eletrônicos de Bancos, que não conseguem ler meus dedos. E os Tecnólogos
não descobriram ainda que, com a idade e a velhice, as impressões digitais vão
se apagando... E colocaram um terminal que, precisa ler digitais justamente em
Caixas para atendimento preferencial! E eu me sinto uma grande idiota toda vez
que, tento acionar aquela coisa! Até comentei com amigos que, se eu cometesse
um roubo, não seria presa por falta de minhas digitais...
Mas,
a grande perda que lamento muito é a coordenação motora e a sensibilidade da
pele, das mãos, dos lábios... Facas que desconectam de minha mão e cortam
dedos... Xícaras que se espatifam, dentes que mordem a bochecha interna e os
lábios... Saliva que desce em canal errado e me engasga, me afoga... Pequenas
falhas que machucam e me deixam atordoada. Eu não era assim! Era tão segura,
firme e não errava a direção dos garfos e facas...
E
as trombadas com portas, paredes e móveis?
Puxa!
É o caminho que já fiz mais de mil vezes, e de repente, o corpo vai em direção
errada para atingir o ombro, o quadril, a cabeça... E outras vezes, o dedinho do
pé chuta aquela cadeira que está fora do alcance...Só para ver estrelas de dia!
Por
outro lado, a gente vai desenvolvendo outras sensibilidades, que os jovens nem
imaginam. Sentir alegria por um "bom dia caloroso" de um estranho, apreciar
passarinhos namorando num chilreio feliz, agradecer os raios de sol que aquecem,
numa manhã fria como a de hoje, alegrar-se por aquele cidadão que cede o seu
lugar tão gentilmente na fila, na vaga do estacionamento, na passagem por uma
porta...
Então,
ainda existe alguma vantagem em ser idoso. Porque há muita gente atenciosa, que
torna nosso dia a dia mais feliz.
E
apesar de eu estar descendo a rampa, tenho consciência que dá pra usufruir
muita coisa boa ainda nesta vida.
E
viva a Vida!
Mirandópolis,
abril de 2016.
kimie
oku in
Kimie, agora, sem gozações...
ResponderExcluirTudo isso que você soube descrever para todos é o que mais importa.
Quantas pessoas que neste momento estão lendo sua crônica e perguntando ??? Puxa vida,sou jovem,ainda não passei por tudo o que ela dissecou; será que chego lá???
Bem poucos chegarão como você Kimie e, intelectualmente e com os dons adquiridos durante esse período de sua vida, pouquíssimos!
Você iniciou a fase dos setenta...setenta fazer, não consegue...setenta levantar, está difícil, etc...etc...
É a famosa lei natural da vida.
Não fique aborrecida porque a biometria não leu sua digital, as teclas do seu piano são mais importantes.
Não se importe com os caminhos que passaram a ser distantes, também os eram quando nós fomos infantis - os passos que aumentaram tendem a diminuir.
Enfim, você ainda tem muita lenha para queimar e, se o físico ajuda pouco, o mental e o espiritual compensam.
Você ainda não tem autorização para descer a rampa.
Beijão, japonesa!
E parabéns por mais uma obra prima!
Sayonara!
Agora você me pegou, Ulisses! Fiquei emocionada e os meus olhos ficaram marejados. Não tenho autorização para descer a rampa... porque as teclas do piano leem meus dedos... Obra prima? Apenas uma confissão. Obrigada e um beijo. kimie
ResponderExcluir