Gente de fibra
RAIMUNDO BEZERRA
DE SOUZA
Gente
de fibra de hoje é um pernambucano de 92 anos de idade, natural de Granito,
cuja Padroeira é Nossa Senhora do Bom Conselho.
É o senhor Raimundo Bezerra de Souza.
Seu
pai era paraibano e sua mãe pernambucana, e era gente que lidava com gado, lá
nas terras de Pernambuco. E assim, o menino Raimundo nem teve tempo para ir à
escola, pois tinha que cuidar dos bezerros do rebanho do pai.
Na
década de 40, seu Raimundo conheceu a senhorita Maura Cunha, de uma família que
lidava com a lavoura de milho, cana de açúcar e arroz, lá em Rancharia,
Pernambuco. Casaram-se e tiveram dez filhos, dentre os quais há um
Administrador de Fazenda, um Peão que lida com gado, um Médico, um Agente de
Penitenciária, um Advogado, um Contabilista e uma Professora. Havia mais uma
Professora, mas infelizmente faleceu há 18 anos, vítima de grave doença. Houve
também mais duas crianças, que faleceram quando muito novas.
Em
1946, seu Raimundo e a família vieram de mudança para Guaraçaí, para trabalhar
na lavoura, mas não deu certo. E por quase quinze anos, lidou com gado para o
Açougue do seu Bianor, em Guaraçaí. Em 1949 vieram para Mirandópolis. Nesse tempo, curou feridas de animais
doentes, ajudou nos partos, vacinou, separou bezerros, conduziu boiadas de um
lugar para outro. Dali, veio para a Fazenda dos Perez, e trabalhou no açougue,
cortando os quartos de bois para servir a clientela.
Trabalhou
também no Açougue de Cláudio Martins, na Rua Gentil Moreira, ao lado do Bar do
Asman.
Nessa
época, o povo comprava carnes em açougues, porque não havia os mercados atuais,
onde se vende toda a variedade de carnes. E os Irmãos Antonio e Joaquim Pereira
dos Santos tinham três ou quatro açougues na cidade. Os estabelecimentos se
localizavam na Rafael Pereira, na Domingos de Souza e na atual Gentil Moreira.
Seu
Raimundo trabalhou nesses açougues e, somando todo o tempo dedicado ao serviço
de peão e de açougueiro, cumpriu 35 anos no total. Aprendeu tudo sobre o
ofício, sobre carnes de animais e também sobre os animais.
Ele
conhece todas as variedades de carnes dos bois: filé mignon, contrafilé,
alcatra, patinho, coxão duro, coxão mole, fraldinha, paleta, lagarto, e as
reconhece mesmo depois de assadas. Ninguém consegue enganá-lo nas compras,
trocando uma espécie por outra.
Às
vezes, levava uma boiada de um lugar para outro.
Um
dia, o senhor Shimoda lhe pediu que, levasse uma boiada de setecentas cabeças,
saindo de Guaraçaí com destino a Córrego Azul ou Monte Azul, ele não se lembra
direito, perto de Minas Gerais. Ele e mais quatro peões levaram a boiada, e só
chegaram ao destino depois de quatro dias de viagem. As estradas eram muito
estreitas e de terra batida, e quando duas boiadas se cruzavam, a menor tinha
que ceder o caminho para a maior, mesmo que a diferença fosse de apenas uma
cabeça. Era lei das comitivas.
Como
a viagem era demorada, havia naqueles tempos, pousadas para o pernoite das
boiadas e para seus condutores. Chegava-se ao local e, efetuava-se a contagem
das cabeças de gado, para colocá-lo no pasto. Na saída, contava-se novamente
para conferir e pagar o aluguel do pasto. Seu Raimundo disse que, antes ninguém
conferia, pois se acreditava na palavra dada, mas houve desentendimentos por
conta de gente desonesta, que não queria pagar o que devia de fato. E assim,
foi adotado esse sistema de contar cabeça por cabeça, para sanar dúvidas.
Para os peões
também havia lugar para descansar e fazer a bóia. Havendo espaços, armava-se a
rede e ali mesmo descansava. Outras vezes, tinha que se deitar no chão sobre os
pelegos usados nas montarias, e dormir enrodilhado nas capas.
Nessas
paradas, qualquer peão funcionava como cozinheiro, e o cardápio consistia de
arroz, feijão, charque ou linguiça e farofa, invariavelmente. E muita água. Não
se levava bebida alcoólica.
Numa
boiada, havia sempre o Ponteiro, que ia à frente, tocando o berrante, dando os
avisos necessários. Seu Raimundo era o Berranteiro que ia à frente da comitiva.
Atrás iam os Culatreiros, que não deixavam os bois se dispersarem. Geralmente,
na frente ia o boi Sinceiro, com um sininho pendurado no pescoço, para conduzir
os demais.
Seu
Raimundo com 92 anos tem um fôlego de dar inveja em qualquer jovem, pois toca o
berrante, como se estivesse soprando uma cornetinha. E ele me explicou os
diferentes toques: Na hora da Saída há um toque, convocando todos os peões e os
animais para começarem a caminhada; outro toque para Acelerar; outro para
Perigo à vista; outro para não Trotear ou andar mais devagar nas descidas das
encostas; e outro para Parar. São toques bem diversificados, um tipo de código
de comunicação, que os peões calejados no ofício reconheciam facilmente e
atendiam de imediato.
Como nunca
imaginei que o berrante possibilitasse essas diversificações, fiquei fascinada,
ouvindo o seu Raimundo tocar. Disse-me que o berrante é uma coisa preciosa para
ele. Já teve convites para tocar em Festas de Peão, mas não se interessou.
Hoje,
seu Raimundo está aposentado, e repito com 92 anos de idade, mas vai ao sítio e
à fazenda da família, volta e meia. E lá, cura um bezerro, ajuda a vacinar o
gado... Tem paixão pelos animais, e não gosta que os maltratem. Nunca bateu nos
animais rebeldes. Nunca usou o chuço para aguilhoá-los, mas uma varinha verde
com folhas nas pontas. É terminantemente contra shows, em que os peões
maltratam os animais. Diz que estes devem ser respeitados.
Dona
Maura diz que, a maior dor de sua vida foi a perda de sua filha mais velha, a
professora Riseuva que após muito padecimento, partiu deixando 3 crianças.
Crianças que, os avós criaram com bastante amor, e hoje já são adultos e bons
netos. Ela diz que a sua vida foi muito
dura, porque estava sempre sozinha com um bando de crianças, e muita roupa para
lavar.
Roupa
das crianças e roupa sujíssima de seu esposo, ora do açougue e ora do serviço
de peão. A roupa era sempre difícil de lavar, porque ele se ocupava de serviço
duro e bruto. E naqueles tempos não havia máquina de lavar...
A
maior alegria é a família que conseguiram formar, apesar das mil dificuldades
que passaram. Dona Maura ficava só, enfrentando as tarefas do dia a dia, com o
marido sempre ausente, trabalhando, trabalhando, dando duro nos difíceis e
ásperos serviços que desempenhou. Todos os filhos herdaram essa paixão pelos
cavalos e boiadas, sinal de respeito pela profissão do pai.
E
assim conseguiram criar os filhos e netos nos preceitos da educação, da
confiança e do respeito. E seu Raimundo se orgulha muito da família que tem.
Diz que os filhos sempre voltam à casa dos pais para vê-los, e isso é um grande
conforto. Seu Raimundo e dona Maura
moram sós, mas há uma auxiliar que ajuda nos serviços domésticos, graças à
atenção dos filhos.
Quando
eles aparecem, o pai e os filhos jogam um carteado animado e tudo vira uma
festa. Só não apostam nada, ele diz que jogo com aposta destrói até a família,
por isso ele ensinou os filhos assim, para jogarem apenas como diversão.
Seu
Raimundo tem muitas saudades dos amigos com quem conviveu nos tempos duros das
comitivas, especialmente do saudoso Mané Rosa.
Em
casa, junto com a dona Maura, seu Raimundo curte a aposentadoria, olhando um
para o outro: “prá ver quem é mais bonito, mas ela sempre perde, porque é mais
feia” diz ele.
E
após muita brincadeira, seu Raimundo brindou-me mostrando a coleção de facas,
os arreios dos animais, o rebenque e a famosa capa de montaria. E então,
encerrou a nossa conversa com o som potente de seu berrante, que não esquecerei
mais.
Foi lindíssimo!
Cidadão
Raimundo Bezerra de Souza, que foi açougueiro e boiadeiro, nordestino calejado
pelas tarefas ásperas e necessárias, que executou nesta vida e possui ainda a
alegria de viver, é Gente de Fibra!
Mirandópolis, 27 de maio de 2012.
kimie oku in
Nenhum comentário:
Postar um comentário