Literatura
– Carlos Drummond de Andrade
"Vai, Carlos, ser gauche na vida!"
"Vai, Carlos, ser gauche na vida!"
Quando eu
nasci, um anjo torto
desses que
vivem na sombra
disse:
Vai, Carlos, ser gauche na vida.
Gauche (lê-se
goxi) em francês significa esquerdo, como “rive gauche” significa o lado
esquerdo, a margem esquerda...
“O poema
de sete faces” de Carlos Drummond de Andrade popularizou esse termo gauche
entre nós.
O que ele
pretendia passar para seus leitores?
Ora,
sabemos que Drummond era um homem tímido, reservado, meio avesso às coisas do
mundo, cheio de indagações sem respostas.
E por ter
vivido numa época em que todos deviam seguir um modelo pré-estabelecido pela
Moral, pela Religião, pela Polícia, pelo Estado, ele deve ter sofrido muito,
justamente por ser um indivíduo gauche, meio fechado, contrário aos costumes e
aos sentimentos de então.
Daí, o desejo
confesso no verso: “Vai, Carlos, ser gauche na vida!”
Esse “gauche”
soa como livre, independente, feliz, solto como um passarinho. Acho que era o
seu mais profundo desejo... Comportar-se no mundo como gauche que era de fato,
e não como os outros mandavam.
Hoje, são poucas as pessoas que
conseguem ser gauches, oprimidas que são com regras religiosas, familiares, de
escola, de grupos de trabalho, de amigos do bairro, do quarteirão, do face-book...
de associações. E sem contar com as regras determinadas pela novela das 21
horas, pelo Jornal Nacional, pelo big brother, pelas lojas da moda, pelos
cabeleireiros mais visitados...
Detesto quando as emissoras de tevê
descobrem um talento em qualquer área, e a título de ajudar o cidadão, acabam
transformando-o num pavão, maquiando, vestindo-o, tirando toda a sua
naturalidade e impondo posturas que não são próprias dele. E o estrago que
fazem com crianças... é abominável.
E assim, o
ser humano vai perdendo a naturalidade, transformando-se num robozinho sem
graça, como aquelas famosas atrizes da tevê que fazem plástica e ficam todas
com a mesma cara, a mesma boca, os mesmos olhos e o mesmo nariz repuxado...
perdendo as características mais pessoais.
Essa característica gauche de Drummond fica revelada
também no poema “No meio do caminho”:
No meio do
caminho tinha uma pedra.
Tinha uma
pedra no meio do caminho
tinha uma
pedra.
No meio do
caminho tinha uma pedra.
É a
insegurança natural de um homem diante dos obstáculos, que considera
irremovíveis. A falta de confiança, a timidez, o medo do mundo...
Visualizo
o homem se encolhendo diante dos problemas. Saltasse a pedra, chutasse, a
contornasse, se não tinha força para removê-la. Mas, não ficasse só olhando a
pedra e repetindo o refrão havia uma pedra no caminho, no caminho havia uma
pedra; pois isso em nada ajudaria a retirá-la...
A tristeza
está presente nos poemas de Drummond.
Tristeza
de um homem não realizado, reduzido à melancolia de não ter sido o que queria
ser. Isso foi claramente revelado em “E agora, José?”
E agora,
José?
A festa
acabou,
a luz
apagou,
o povo
sumiu,
a noite
esfriou,
E agora,
José?
E agora,
você?
Você que é
sem nome,
que zomba
dos outros,
você que
faz versos,
que ama,
que protesta?
E agora,
José?
O ser
humano realmente é um grande enigma.
Carlos
Drummond de Andrade foi um poeta completo, deixou uma antologia poética
incomparável, foi premiado, festejado por todos os círculos literários, amado
por seus leitores, conhecido no Brasil e no mundo...
Mas não
era feliz.
Há uma
tristeza infinita em seus poemas. Poemas escritos por um homem reservado,
triste e solitário. Nos seus 85 anos de
vida, de 1902 a
1987, viu o mundo sendo destruído por duas guerras, e viveu tempos duros de
costumes rígidos, em que tudo era proibido e condenável. Por instância da mãe
formou-se em Farmácia, para nunca exercer tal profissão. Trabalhou em
repartições públicas, mas o que gostava de fazer mesmo era escrever. Ficou
dividido entre aspirações comunistas e o serviço no Ministério da Educação durante a Ditadura de Vargas... Sempre a incerteza, a indefinição.
Todo o seu
repertório demonstra uma insatisfação, uma falta de entusiasmo pela vida. E não
deve ter sido feliz no casamento, porque no fim da vida foi revelado que mantivera
uma relação amorosa com outra mulher durante longos anos. E continuara casado.
Aquele
homem que produziu tantos poemas lindos carregava uma dor, uma tristeza e um
desalento inenarráveis.
Será
porque não o deixaram ser gauche na vida?
Mirandópolis,
outubro de 2012.
kimieoku in “cronicasdekimie.blogspot.com”
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