sexta-feira, 10 de outubro de 2014



                                               Ficar só
    Antigamente, mamãe vivia indo aos funerais de amigos e parentes, e eu ficava pensando que era exagero demais. Porque ela já era idosa e muitas vezes fazia as romarias a pé.
      Naquela época, eu não havia atentado que por ter vivido bastante, tinha muitos amigos de longa data, que iam partindo para sempre... E ela tinha muitos, muitos amigos e conhecidos. E por ter frequentado a Igreja Messiânica e a Budista seu grupo era bastante grande. Mamãe era uma simples senhora, que convivia em paz com todo mundo e, gostava de acudir as pessoas em apuros, para lhes dar o seu apoio. Era muito generosa.
      Mas, um dia sua missão se encerrou e partiu serenamente para junto de Deus. E tenho a certeza absoluta que ela deve estar muito bem lá.
     De uns tempos para cá, eu comecei a ir aos funerais, seguindo as pegadas de mamãe. São tantos amigos e parentes que partem, que às vezes acabo indo ao velório de dois amigos ou mais, numa mesma semana. E foi então que, entendi porque mamãe não saía dos velórios... Amigos queridos partem e, a gente tem que prestar uma homenagem na sua hora derradeira, para que a terra lhe seja leve, que seja bem recebido junto do Senhor, e continue velando pelos seus lá de outro plano. Mesmo que seja apenas para fazer uma oração, e dispensar um pouquinho de nosso tempo...
     E com isso, tenho percebido como meus amigos estão ficando sós, perdendo seus pares. A bem da verdade, são mais viúvas que viúvos... Mas, é sempre muito triste a partida de alguém, que partilhou a vida durante vinte, trinta, quarenta ou mais anos com o outro ou outra que acaba ficando só.
Se analisarmos nossas ações desde o momento em que nascemos, tudo se encaminha para um fim real e doloroso. Tanto é que alguém disse que, começamos a morrer no momento em que nascemos, o que não deixa de ser verdade. E a morte é sempre dura, inevitável e doída. E alguém me disse certa vez, que Deus fez tudo perfeito, desde o nascimento até a idade da velhice, mas que se esqueceu de dar uma melhorada na morte para não ser cruel. (Blasfêmia?)
        De qualquer forma, a morte é inevitável. Então, por que a gente se entrega de corpo e alma à outra pessoa, vibra com ela, caminha com ela, torce por ela, sofre por ela e vive com ela? A gente se apega demais ao parceiro, sabendo de antemão que um dia seremos separados, que um dia teremos que aprender a andar sozinho outra vez, a falar sozinho, a chorar sozinho, a viver sozinho...
        Conheço tanta gente que mora sozinha, que fala só com seus botões, que chora ao perceber sua profunda solidão, que olha pra trás e sente saudades imensas... e isso é uma doença sem cura, fruto do apego sentimental de uma vida inteira... Fazer o quê? O ser humano é sentimental por natureza e passa a vida a rir, a chorar, a gritar, a imprecar, porque é assim que ele manifesta o seu estado interior.
        E eu agradeço todos os dias a presença do meu parceiro, porque não gosto de solidão, de não ter com quem falar, brigar, trocar opiniões, comunicar sentimentos... Um dia, falei para um amigo que comprasse um papagaio, pois ele reclamava que não tinha com quem conversar. E ele me respondeu: “Um papagaio? Ele não responde, só repete o que eu falo!” provando assim que já tivera um, e fora decepcionante.
        O que acho mais terrível e doloroso é não poder chamar o nome da pessoa que já morreu. A gente se habitua a chamá-la todos os dias, todas as horas, até sonhando e de repente, chamá-la perdeu o sentido, porque não haverá resposta. E é isso que deve doer demais. Aprender a conviver com sua ausência é muito doloroso.
        O ser humano é gregário por natureza e não consegue ficar só. E todos estão predestinados a encontrar a outra metade, o outro eu que lhes complete e os torne uno, salvo algumas exceções. Quando encontra o seu parceiro, a vida deslancha de forma tranquila e cheia de sonhos. E aí se constrói uma família, que passa a ser a razão de sua existência. E então, parte para a luta para prover a prole, e garantir um lugar seguro só seu, para o bem estar de todos. O trabalho passa a ser fundamental para que tudo corra bem.
    E os filhos crescem, estudam, se formam e partem para as suas realizações. E o casal fica só de novo, mas com os corações recheados de esperanças... E convivendo com os netos que vão chegando, os dois vão envelhecendo. E a engrenagem corporal começa a falhar aqui e ali, dando sinais de que a missão está terminando. E um dia, a morte vem visitar a casa, arrebatando um dos parceiros... E em seu lugar vem morar a tristeza, a saudade. E a solidão passa a ser a sua companheira de todos os dias. Alguns sabem encarar essa fase com coragem e determinação, outros se entregam a depressões, tornando difícil a missão dos filhos que velam por eles.
     Li certa vez o depoimento de um cidadão, que havia se separado de sua esposa. Ele disse que a solidão é dura e pesava muito em pequenas ocorrências do seu dia a dia. Se ele esquecia a janela aberta de manhã ao sair para o trabalho, à noite ao voltar constatava que, a janela esteve aberta o dia todo e a chuva havia molhado a sua cama... Se ele não molhasse o vaso de flores elas acabariam morrendo, porque ninguém iria molhá-las. Se ele não recolhesse as roupas do varal, elas ficariam à mercê do sol, do vento e da chuva... Quando se tem um parceiro, esses pequeninos detalhes passam até despercebidos, mas garantem a harmonia da convivência e o conforto dos dois.
        Por tudo isso é muito difícil viver só.
    E para não sofrer tanto depois, deveríamos ser menos apegados uns aos outros. Não é?


        Mirandópolis, setembro de 2014.
        kimie oku in http://cronicasdekimie.blogspot.com.br/


       
       
       



2 comentários:

  1. Olá Kimie! Eu quando era criança costumava ir ao cemitério com minha mãe. No dia 2 de Novembro era o dia em que os parentes mais distantes se reuniam em volta da sepultura da família para ficar lembrando e falando sobre a vida. Por mais estranho que pareça era um dia festivo. Muitas flores, jazigos pintados de cal, frutas sendo vendidas nas ruas, ambulantes e muitas velas. Depois que cresci deixei de ir aos velórios. A maioria daquelas pessoas que se reuniam naqueles "encontros" anuais não existem mais e hoje perdemos o hábito de nos reunir em datas específicas, mas apesar disso, continuam "vivos" em nossas memórias. Abraços / Alex

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  2. É verdade, Alex. Tudo isso passou. Mas, os mortos da família continuam vivos em nossos corações, porque todos nós temos uma forte ligação com os antepassados. Ligação de sangue, de história, de lutas e de sofrimentos. Por isso não conseguimos esquecer.
    Abraço. kimie

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