Meu Pai
Mesmo que passem mil
anos, um filho não esquece seu pai, sua mãe.Além do cordão umbilical que um dia
fez a ligação estreita com a mãe, há o sangue, que passou o DNA, que só Deus
sabe como determinou.
Meus pais eram japoneses do Japão. Papai de Hiroshima, a mesma
Hiroshima que foi incendiada na Segunda Guerra. Mamãe de Gunma ken. Se não
tivessem se emigrado para o Brasil, jamais seus caminhos teriam se cruzado,
porque lá no Japão da época, quem nascia num lugar, vivia lá até morrer. E
entre Hiroshima e Gunma há uma considerável distância, que não seria vencida
por nenhum dos dois.
Papai Jitsutaro Osaki veio ao Brasil em 1913, tendo apenas 13 anos. Veio agregado
a uma família de parentes chamada Kadoo, de quem se apartou ao completar os
dezoito anos. Trabalhou como motorista de táxi em São Paulo, como intérprete
entre os fazendeiros que contratavam mão de obra japonesa e os imigrantes que
chegavam para trabalhar nas lavouras de café. Volta e meia era contratado para
ir a Santos receber os japoneses. Mais tarde trabalhou com um médico de
Araçatuba, doutor Kihachi Dayan, que viera ao Brasil como imigrante ilegal
através do Peru. Dr. Dayan era Clínico Geral e curou muita gente de feridas
bravas que grassavam na época, de graves ferimentos ocasionados por derrubada
de matas, de picadas de cobras, de febres como a gripe espanhola, além de
partos... Era de origem japonesa e bem requisitado pelos imigrantes, além de
muitos brasileiros que não podiam pagar os tratamentos. Ele não cobrava dos
pobres. Então a sua clientela crescia mais e mais, e isso despertou o rancor de
outros médicos da região de Araçatuba. Contrataram um capanga, que acabou
matando Dr. Dayan. Uns meses após usa
morte, veio do Japão a autorização para exercer Medicina, porque era Médico de
fato, de que duvidavam os médicos daqui.Eu me lembro que papai possuía um
grosso livro, todo ilustrado sobre o corpo humano em cores (Naquela época! Anos
50!) que ele consultava volta e meia, e acredito que deva pertencido ao Dr.
Dayan, comprovando que ele estudara Medicina.
Papai aprendeu muito com Dr. Dayan. Eu me lembro que de
manhãzinha, formava-se uma fila de pobres lavradores da redondeza para que
papai os curasse de tracoma. Tracoma era uma infecção brava que atacava os
olhos, cegando-os com grossas camadas de pus. Diziam que foram os imigrantes
espanhóis que trouxeram essa doença... Havia muitos espanhóis que vinham em
nossa casa com tracoma. Papai não lhes cobrava nada, mas os pobrezinhos curados
traziam sempre ovos e frangos para demonstrar sua gratidão. Papai sempre foi
muito generoso, e muitas vezes mamãe se aborrecia com ele. Quando alguém ficava
encantado com alguma coisa como fotos, ou outros apetrechos ele lhe dava
gratuitamente, mesmo sendo a única peça em casa... Assim perdemos muitas coisas
preciosas pela sua generosidade.
Naqueles tempos remotos, mesmo sendo muito, muito pobres, papai
nunca deixou de comprar o jornal São Paulo Shimbum, escrito em japonês. Depois
da leitura, ele nos contava as novidades que corriam pelo mundo.
Quando a Guerra
terminou, papai ficou do lado dos Shindo Renmei, que pregavam que o Japão havia
ganho a 2ª Guerra, mas como ele lia muito, percebeu que não era assim.
Após um período sofrido pós guerra, um dia ele declarou que como
morávamos no Brasil, tínhamos que ser brasileiros, mandou nos batizar na
Religião Católica e passou a falar em Português com todos nós.
Papai era um homem sábio.
Mirandópolis, maio de 2019.
kimie oku in
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