quinta-feira, 24 de abril de 2025

 

Senhoras e senhores, boa noite!

 

Não me sinto confortável com essa homenagem inesperada que esta Câmara me concedeu.  Há tantos cidadãos muito mais merecedores que eu. Mas aceito com muita honra por ter sido lembrada, sendo eu uma simples professora.

Gratidão a todos desta Casa de Leis, especialmente ao Vereador  Gerson Possenti dos Santos.

Ainda quero agradecer aos familiares e amigos que vieram prestigiar esta sessão. E o meu carinho especial aos meus amados cirandeiros.

Bom, já que me deram um microfone, vou lhes contar uma história.

Há 64 anos, em 1961 fui parar numa escolinha rural na Fazenda do Dr. Rafael Franco de Mello. em Lavinia, para iniciar a carreira de professora.

Era uma escolinha à beira da estrada, sem nenhuma vizinhança, onde cabritos berravam o dia inteiro bé, bé, bé...

E me deparei com 43 crianças bem pobres, sem nenhum traquejo social.

43 crianças que precisavam de mim.

Atordoada sem saber nem como começar, resolvi fazer a matrícula delas.

Nome, data de nascimento, filiação...

Nome?

Não é José?

É Zé mesmo.

Nome?  

Cida.

Aparecida?

É Cida.

Nome?

Cirço.

Cícero?

Não, é Cirço

Nome?

Diadorio

Teodoro?

Não,  fessora, é  Dia dó ri o.

Confusa, pedi a todos que trouxessem a certidão de nascimento.

Ninguém trouxe. Mães disseram que não sabiam o que era aquilo.

Desorientada, perguntei ao fiscal da fazenda de onde provinham aquelas crianças.

Da Bahia, de Sergipe, de Alagoas, Pernambuco... Vieram  plantar algodão para um arrendatário.

Convoquei uma reunião com os pais e alertei sobre a necessidade do registro. Que sem ele, não poderiam estudar, nem arrumar emprego quando adultos. E disse mais. Que se uma daquelas crianças morresse não poderia ser enterrada em cemitérios, porque legalmente ela não existia. Foi um alvoroço geral.

No dia seguinte, não apareceu nenhuma criança na escola. Assustada, fiquei esperando...

Nisso passou um caminhão lotado de crianças e adultos. Alguém gritou: “Fessora, nois vai pra cidade tirar o tal do dicumento!”

E foi assim que, todas aquelas 43 crianças tiveram seu primeiro documento.

Todos aqui presentes temos um sonho. Eu também tive o meu. Tocar a Sonata de Beethoven, falar fluentemente a língua de meus pais e salvar rios e mananciais.

Mas, as urgências da vida roubaram meu tempo.

A sonata ficou descompassada, meu japonês é arrevesado e não tenho mais terra para salvar mananciais.

E cheguei aos 83 anos com o triste sentimento de ter falhado, de algo inacabado, de ter vivido pela metade.

Mas, agora, neste momento olhando para trás, sinto imenso orgulho de ter regularizado a vida funcional daquelas 43 crianças.

E percebo que mais que todas as atividades pedagógicas, que passei para alunos e professores, aquela ação foi  a mais importante de minha carreira.

43 crianças com estabilidade de cidadãos brasileiros.

A vida humana vale mais que sonatas, que idiomas e ambientes.

Aprendi com alunos e professores que todos nós somos carentes de algo. E que cada um de nós tem algo a oferecer ao outro.

Então agora no limiar da vida, quero fazer a diferença na vida do vizinho, dos moto boys, dos colegas e familiares. Oferecendo algo para tornar melhor o desempenho de outros.

Só assim, acredito que não terei vivido em vão.

Muito obrigada por me ouvirem e Deus os abençoe.

Mirandópolis, 22 de abril de 2025.

kimie oku in

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