Senhoras e senhores, boa noite!
Não me sinto confortável com essa
homenagem inesperada que esta Câmara me concedeu. Há tantos cidadãos muito mais merecedores que
eu. Mas aceito com muita honra por ter sido lembrada, sendo eu uma simples
professora.
Gratidão a todos desta Casa de
Leis, especialmente ao Vereador Gerson
Possenti dos Santos.
Ainda quero agradecer aos
familiares e amigos que vieram prestigiar esta sessão. E o meu carinho especial
aos meus amados cirandeiros.
Bom, já que me deram um
microfone, vou lhes contar uma história.
Há 64 anos, em 1961 fui parar
numa escolinha rural na Fazenda do Dr. Rafael Franco de Mello. em Lavinia, para
iniciar a carreira de professora.
Era uma escolinha à beira da
estrada, sem nenhuma vizinhança, onde cabritos berravam o dia inteiro bé, bé,
bé...
E me deparei com 43 crianças bem
pobres, sem nenhum traquejo social.
43 crianças que precisavam de
mim.
Atordoada sem saber nem como
começar, resolvi fazer a matrícula delas.
Nome, data de nascimento,
filiação...
Nome?
Zé
Não é José?
É Zé mesmo.
Nome?
Cida.
Aparecida?
É Cida.
Nome?
Cirço.
Cícero?
Não, é Cirço
Nome?
Diadorio
Teodoro?
Não, fessora, é Dia dó ri o.
Confusa, pedi a todos que
trouxessem a certidão de nascimento.
Ninguém trouxe. Mães disseram que
não sabiam o que era aquilo.
Desorientada, perguntei ao fiscal
da fazenda de onde provinham aquelas crianças.
Da Bahia, de Sergipe, de Alagoas,
Pernambuco... Vieram plantar algodão
para um arrendatário.
Convoquei uma reunião com os pais
e alertei sobre a necessidade do registro. Que sem ele, não poderiam estudar,
nem arrumar emprego quando adultos. E disse mais. Que se uma daquelas crianças
morresse não poderia ser enterrada em cemitérios, porque legalmente ela não
existia. Foi um alvoroço geral.
No dia seguinte, não apareceu
nenhuma criança na escola. Assustada, fiquei esperando...
Nisso passou um caminhão lotado
de crianças e adultos. Alguém gritou: “Fessora, nois vai pra cidade tirar o tal
do dicumento!”
E foi assim que, todas aquelas 43
crianças tiveram seu primeiro documento.
Todos aqui presentes temos um
sonho. Eu também tive o meu. Tocar a Sonata de Beethoven, falar fluentemente a
língua de meus pais e salvar rios e mananciais.
Mas, as urgências da vida
roubaram meu tempo.
A sonata ficou descompassada, meu
japonês é arrevesado e não tenho mais terra para salvar mananciais.
E cheguei aos 83 anos com o
triste sentimento de ter falhado, de algo inacabado, de ter vivido pela metade.
Mas, agora, neste momento olhando
para trás, sinto imenso orgulho de ter regularizado a vida funcional daquelas
43 crianças.
E percebo que mais que todas as
atividades pedagógicas, que passei para alunos e professores, aquela ação foi a mais importante de minha carreira.
43 crianças com estabilidade de
cidadãos brasileiros.
A vida humana vale mais que
sonatas, que idiomas e ambientes.
Aprendi com alunos e professores
que todos nós somos carentes de algo. E que cada um de nós tem algo a oferecer
ao outro.
Então agora no limiar da vida,
quero fazer a diferença na vida do vizinho, dos moto boys, dos colegas e familiares.
Oferecendo algo para tornar melhor o desempenho de outros.
Só assim, acredito que não terei
vivido em vão.
Muito obrigada por me ouvirem e
Deus os abençoe.
Mirandópolis, 22 de abril de
2025.
kimie oku in
http://cronicasdekimie.blogspot.com