sexta-feira, 24 de julho de 2015

Misto quente

Estive pensando.

Nossa vida é tal qual um misto quente.
Misto quente é um sanduíche feito de duas fatias de pão, recheadas com uma fatia de presunto e uma de queijo. Acredito que todo mundo já saboreou um deles. E é muito gostoso, principalmente se feito na hora, com pão quentinho e o queijo derretendo na boca.
A invenção desse lanche fez com que a gastronomia comercial explodisse. Em cada esquina se instalaram barraquinhas com uma chapa quente, vendendo esse   saboroso sanduíche ou fast food.
Falando em sanduíche, sabiam que foi invenção de um inglês, em 1762?  John Montagu, Conde de Sanduich  não gostava de interromper um jogo de cartas. Então, certo dia pediu ao criado que lhe fizesse um lanche rápido, para degustar enquanto jogava. O criado pegou duas fatias de pão e recheou com uma fatia de salame. O patrão gostou tanto do lanche, que o adotou para sempre. E assim nasceu o sanduíche, que faz a alegria da moçada e das crianças.
Depois dessa invenção, surgiram outras variedades como o Misto Quente, o Bauru, o Lanche Natural, o Hot Dog, o Beirute, o Hamburger e tantos outros mais...
O Hot Dog tem recheio de salsicha e molho, mas hoje acrescentam mais ingredientes como alface, ovos e fritas.
O Bauru tem uma origem curiosa. O jovem Casimiro Pinto era um estudante que frequentava o Ponto Chic, famoso Restaurante de São Paulo. Certa vez em 1939, pediu ao garçom que fizesse um lanche recheado de queijo, rosbife e tomate. O lanche caiu no gosto popular e foi batizado de Bauru, nome da cidade do jovem. E o Beirute também é uma invenção de São Paulo. Dois cozinheiros de origem árabe usaram o pão sírio para rechear um Bauru. e o batizaram de Beirute em homenagem à capital da Síria.
E em 1940, a lanchonete Salada Paulista lançou o Misto Quente, que inicialmente foi recheado de alface, ovo e bacon. O misto quente original americano era de ovo e bacon. Hoje o misto quente é de presunto e queijo e é muito consumido.
Pois bem, estive pensando. A nossa vida se parece com um lanche, especialmente com um simples Misto Quente. Por quê?
Pensem comigo!
O pão que é volumoso, e que realmente sacia a fome representa, as horas, os dias, os meses, os anos de vida que parecem tão sem graça, mas que constituem como o pão  do lanche, os 90% de nossa existência... Representa a espinha dorsal de nossa existência, que pode ser curta, média ou longa, mas que é composta de acontecimentos rotineiros e muitas vezes, cansativos e frustrantes. Nessa massa de farinha e água estão todas as batalhas de cada dia, as derrotas, as dores, as mágoas, os esforços, as traições, os tropeços, os ensaios e os erros, os tombos, as tristezas, as revoltas, a solidão, o desespero e as lágrimas...
Porque a nossa existência é um calendário de dias sem graça, de muito trabalho, de esforço inaudito, de dedicação sem muita compensação, de tombos, tombos e tombos... A parte boa é mínima.
Mas o que representa o recheio?  Ah! Aí está o sabor do lanche, a parte temperada, que apetece o paladar e torna o misto quente tão cobiçado! Assim também os momentos de vitória, de conquistas, de felicidade é que dão sabor à vida. Os recheios do misto quente são os toques leves de felicidade de nossa existência. São as mini vitórias, os pequenos acertos, as boas amizades, o apoio, o amor da família... Já imaginou uma vida sem sabor? Sem tempero nenhum? Pão com pão?
Eu comparo a minha vida com um simples misto quente, mas outros a compararão com lanches mais sofisticados.
Outros dirão que sua vida é tal qual um gordo hamburger, recheado de viagens maravilhosas, de acontecimentos sociais e de grandes vitórias. Outros dirão que, sua vida é tal qual um simples cachorro quente, com salsicha e molho frio... Ainda outros dirão que, suas existências se parecem com lanches frios e vegetarianos, porque cuidam da saúde e do corpo com determinação... Mas, falando o português claro e definitivo, noventa por cento leva uma vida de pão com mortadela... Acho que mais que noventa por cento... Se bem que, cada um escolhe o seu estilo de vida.
Não é porque nasceu em berço esplêndido que terá garantida uma existência feliz. Muitos cidadãos abençoados com fartura quando nascem, se perdem nos labirintos da vida e levam uma existência miserável. Assim como gente que mal e mal conseguiu sobreviver às dificuldades do início da vida, acaba acertando os ponteiros e ser bem sucedida. O melhor exemplo disso é o Abraão Lincoln,  que era um simples lenhador e conseguiu ser o Presidente dos Estados Unidos... É verdade que ele batalhou para mudar o rumo de sua vida, aprendendo a ler e escrever com os pedaços de jornais que achava pelas ruas da cidade, que percorria todos os dias, oferecendo seus préstimos para rachar a lenha necessária nas residências. Naqueles tempos não havia fogão movido a gás...
Cada indivíduo tem o livre arbítrio para decidir como viver. Tem direito de escolha e pode mudar o rumo de sua vida. Basta querer e empenhar-se para isso. O segredo disso é o estudo para garantir uma sólida base cultural e o trabalho. É preciso ser mais que os outros, dedicar-se mais e mais à meta estabelecida, e trabalhar, trabalhar, trabalhar. O mundo de hoje está alicerçado na competição. Quem tem mais conhecimentos, quem tem mais capacidade, quem se empenha mais é que acabará chegando aos postos chave da sociedade. Os que não procuram crescer levarão sempre uma vida medíocre.
Pela família pobre que tive, era para ter uma vida de pão com mortadela, mas estudei, estudei e li muito. E posso dizer com orgulho que, a minha existência pode ser comparada a um simples mas delicioso Misto Quente.
E falando nisso, alguém teria por acaso o livro “Misto Quente” de Charles Bukowski para me emprestar?
E que sanduíche resumiria mais a sua vida?

Mirandópolis, junho de 2015.
kimie oku in





quarta-feira, 22 de julho de 2015

Gente de Fibra
 Onofra Maria Gonçalves Nunes
  
  Gente de fibra de hoje é uma mulher.

 Mulher forte, corajosa, que venceu as dificuldades da vida só com a ajuda de Deus.
 Essa mulher é a bela Onofra Maria Gonçalves Nunes, de 75 anos, que nasceu em Campos Altos, Minas Gerais.
 Mora em Mirandópolis há mais ou menos 48 anos. Foi casada com José Nunes, com quem teve cinco filhos varões. Ele era pedreiro e faleceu de repente, quando os filhos eram menores de 10 anos. E aí, dona Onofra se viu sozinha no mundo, com cinco garotos para criar.
   Mas, ela não entregou os pontos.
   Para sobreviver, lavou roupa e trabalhou de doméstica para as famílias da cidade, catou algodão na roça, cortou cana e fez salgados para vender.
  Numa época de desespero, quando havia servido a última refeição para os filhos, porque nada mais havia na despensa, aconteceu um fato extraordinário.
   Alguém bateu à porta. Era uma senhora que dona Onofra mal conhecia. Viera trazer-lhe uma cesta de alimentos.
   Ela se lembra que abraçou a benfeitora e chorou muito, grata pela ajuda tão necessária e providencial. Mas, se esqueceu de perguntar o nome dela, o que lamenta muito. Ela acha que foi um anjo.
  Lembra também que uma outra senhora lhe doou uma cesta. E ela é grata a ambas até hoje, porque a salvaram em tempos de necessidade, de desespero...
 Criar cinco filhos com a minguada pensão era muito difícil. Enquanto aceitava serviços para aumentar a renda familiar, ela encaminhou-os para o trabalho. Por isso, os meninos nem tiveram infância. Com dez, doze anos já começaram a executar pequenos serviços no comércio local, ao voltarem da escola.
 Hoje são todos adultos e quatro deles atuam como Agentes de Segurança e um trabalha no Aeroporto de Cuiabá.
 Hoje, dona Onofra não trabalha mais. Acredita que conseguiu dar conta de sua missão, porque teve fé e rezava muito, pedindo ajuda de Deus. Todos os dias, rezava  para que o céu a amparasse.
 Ela gostaria de ter estudado, pois só frequentou um pouco o MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização de Adultos. E é de pouca leitura, como diz.
  Mesmo assim, é uma mulher sem revolta, feliz.
  Feliz por ter vencido, por ter dado conta de sua missão.
  Dona Onofra, Gente de Fibra!

  Mirandópolis, maio de 2011.
                        kimie oku
     
 P.S. Dona Onofra faleceu hoje, dia 22 de julho de 2015, com 80 anos de idade. Em sua homenagem estou publicando novamente a sua história. kimie
               


domingo, 19 de julho de 2015

             Gente de Fibra: Gerson Possenti
     
   Há uns três anos, Oswaldo Resler e uns amigos nos empenhamos numa ideia: contar a História de Mirandópolis através de fotografias. Criamos um blogger e pedimos aos antigos moradores de todos os recantos do Brasil, que enviassem fotos relacionados com eventos de política, esporte, lazer, festas, ruas, casas, amigos, escolas e promoções de tempos passados ao blogger http://fotoshistoricasmirandopolis.blogspot.com.br/.
Muita gente se envolveu no projeto e está sendo um sucesso,


porque há tantas fotos inusitadas desde os primeiros tempos bravios, quando era uma imensa floresta até os dias de hoje. Aqui era a terra dos antigos Caingangues, que acabaram dominados pelos brancos que chegaram, e se misturaram com estes, perdendo de vez a sua identidade primitiva, o que é lamentável. 
A Professora Regina Mustafa criou também o blogger de sucesso http://linhadotempomirandopolis.blogspot.com.br/ e está sendo montada foto por foto... E isso tudo criou uma rede particular de mirandopolenses que interagem de diversos lugares do Brasil, para comentar e relembrar fatos sobre as fotos publicadas no face book. E muitos contatos foram retomados em razão disso. Antigos amigos restabeleceram o bate papo e, relembram fatos de sua vida vivida aqui tempos atrás.
     E de repente, descobri num cidadão simples, um morador daqui, que todos conhecem como Dé, ou Gerson Possenti, um arquivo de fotos de mais de vinte anos de eventos sociais de Mirandópolis. Aquilo que procurávamos pelo país inteiro estava bem ali, diante de nossos olhos e não havíamos percebido.
Quando descobri isso, mais que depressa lhe pedi uma entrevista, para contar a razão de possuir mais de cinco mil fotos da cidade. E ele, se achando insuficiente para uma entrevista relutou em aceitar. Mas, sou insistente. Então vamos lá, vamos contar a história desse simpático e tão popular cidadão conhecido por toda a cidade como Dé.

Gerson Possenti ou Dé nasceu em Mirandópolis em 1959, filho do sergipano Adelson Santos e de uma descendente de italianos, Laurinda Possenti Santos. Seu pai trabalhou como Contínuo no Departamento das Estradas de Rodagem, com sede   em Araçatuba. Contínuo era uma função equivalente a Serviços Gerais, que era de cuidar da limpeza local, transportar correspondências e avisos e servir café aos demais funcionários. A vida não foi fácil para criar os filhos com o magro salário, e não conseguiu encaminhá-los para os estudos superiores. Mesmo assim, criou bem os cinco filhos, que hoje são trabalhadores honrados, e dão conta de suas vidas e de suas famílias, atuando com Agente Penitenciário, Comerciária, Corretor de Imóveis e Carros,  Funcionário Público e Trabalhador Autônomo.
Gerson só conseguiu concluir o Colegial, e não pode fazer a Faculdade de Educação Física, que era seu sonho. Foi barrado pelas condições econômicas, que o levaram a trabalhar desde bem jovem. Trabalhou na Cooperativa Mista da Zona de Mirandópolis, classificando ovos, depois foi Contínuo do escritório da mesma Cooperativa. Nessa época, ajudou a Empresa a organizar e promover Torneios de Dama e Dominós. Os prêmios
sempre eram troféus, e ele não recebia nada pela sua ajuda.  Prestou um Concurso para ser Cobrador e foi chamado para trabalhar na Empresa de ônibus Reunidas, mas preferiu atender à solicitação do senhor Valdemar de Lima, Prefeito de então. Foi designado para a Secretaria das Relações do Trabalho, onde atuou junto com o Professor José Dib Assad. Nessa época, com o apoio do senhor Prefeito realizou um show na Praça Manoel Alves de Ataíde. E estava apoiando o seu chefe como candidato a Vereador. E no meio da festa, foi abordado por uma senhora, que lhe ofereceu uma caixa imensa de bombons, que distribuiu à meninada. Ele não conhecia a doadora, e só depois ficou sabendo que era a senhora Vera Maluly, candidata de outro Partido, com o mal estar que se criou entre os candidatos que patrocinavam a festa... Logo depois, seria transferido para o Departamento de Esportes onde atuou por mais ou menos quatro anos. Ele gostou de lá trabalhar, mas houve uma confusão política e acabou indo para o Departamento de Educação, onde aprendeu muito com a dona Eunice Zuin Fazano. Foi dispensado em 2011, por conta de uma Ordem Judicial.

Mas, voltando às Promoções que ele realizou por mais de vinte anos... Tudo começou com uma sugestão do amigo José Vítor Cunha. Sugeriu que promovesse Ruas de Lazer para proporcionar umas brincadeiras para as crianças. Fechava-se um trecho de uma determinada rua e animando com música de seus aparelhos de som, realizava concursos de danças, shows de calouros, de dama, de vôlei, corridas de saco, de ovo... As primeiras foram um sucesso e o José Vítor e outros amigos ajudaram, assim como os comerciantes que doaram os prêmios e os troféus. E a moda pegou e ele acabou realizando jogos também para adultos, como competições de malha, truco, gincanas... E as mães das crianças participaram das competições de vôlei, de gincanas, de show de calouros. E sempre, sempre eram distribuídos prêmios... Ainda no antigo Campo da Aviação realizou Concursos de Pipas, que eram muito animados, com a participação de vários cidadãos da cidade. Famílias inteiras compareciam para torcer por seus filhos. Ele perdeu a conta do número de Ruas de Lazer realizadas. Fez no Jardim Aeroporto, na Rua João Ferratone, na Rafael Pereira, na Praça Manoel Alves de Ataíde, na Rua Anchieta, no Bairro Santa Rosa, no Jardim Nossa Senhora de Fátima, em Amandaba, nas Três Alianças, em Tabajara, em Lavínia. E foram inúmeras vezes nesses locais. E eram bem concorridas. Eram brincadeiras sadias, a céu aberto, sem confusão, com muita música e muita alegria. Além disso, fez sessões de Circo, vestindo-se de palhaço e fazendo a molecada rir muito, juntamente com o amigo Bandeca. E nos finais de ano, se vestia de Papai Noel para distribuir brinquedos, que ele pedia para os políticos que conhecia. Houve Deputados que o ajudaram muitas vezes, a maioria desconhecida de nossa população, que colaboravam por apreciar a sua obra. É verdade que fez muitos shows e animações políticas para os candidatos às eleições locais, e animações para inaugurações e promoções de lojas. Era o seu meio de aumentar um pouquinho a renda, pois o seu salário sempre foi muito magro.


 Com essas atividades se tornou tão popular que o lançaram como Candidato a uma vaga na Câmara de Vereadores. Mas, Gerson que não possuía nem uma bicicleta, não conseguiu fazer a própria campanha, pois até os familiares já estavam comprometidos com outros candidatos... E também não estava muito interessado em ganhar, porque não tinha e nem tem aspirações políticas. Mesmo assim, conseguiu 174 votos, perdendo para outro concorrente eleito por pequena margem.

O mais interessante de tudo isso é que, Gerson mesmo sem recursos, andou fotografando todos os eventos realizados, a entrega de prêmios, a alegria da molecada, a animação das ruas... Como não tinha recursos usou umas câmeras sem potência e, muitas fotos seriam mais valiosas se tivessem qualidade... Só que eram tantos eventos que, não anotou nas fotos os nomes das pessoas e os lugares, e hoje é difícil identificar muitos participantes, porque naquela época eram crianças... Mas, ele guarda com carinho essas fotos com muito orgulho. E está postando no face book, para os amigos ajudarem na identificação das pessoas e datação dos eventos. Proporcionou alegria a muita gente, principalmente às pessoas de periferia, aos pobres, que nunca tiveram voz nem vez nas festas.
    Gerson é hoje um cidadão, que trabalha na Câmara Municipal como Contínuo e, gasta boa parte de seu reduzido salário nas revelações de fotos e álbuns. Ele não resiste à tentação de copiar fotos importantes da História de Mirandópolis. São milhares e milhares de fotos em dezenas de álbuns, que incluem fatos históricos e acontecimentos políticos e sociais importantes do nosso município.
Além disso, como preza demais a família, organiza todo ano o Encontro de todos os seus parentes aqui em Mirandópolis. E é tão apaixonado pela família que, tem uma parede repleta de fotos de familiares e, outra parede com a sua árvore genealógica. Quando o entrevistei estava organizando outro Encontro para este ano ainda.
Gerson que estima muito a própria família percebeu que, cada irmão que constituiu família foi se distanciando uns dos outros, e raros eram os contatos.   Então para recuperar essa relação, comprou uma mesa de sinuca e de pebolim e colocou à disposição dos irmãos, que agora frequentam a sua casa e passam tardes se divertindo. E ele está feliz com isso. Nos finais de semana, invariavelmente, alguns dos irmãos aparecem para jogar sinuca e conversar.

Gerson mora numa casa simples, com muitas paredes grandes, onde ele quer postar todas as fotos que possui. É verdade que a maioria delas precisa ser ampliada e isso requer muito investimento. Acredito que um dia, sua casa irá virar um Museu de Mirandópolis, como é o seu sonho mais caro.
Perguntei-lhe porque não continuou com as Ruas de Lazer, que é o seu maior orgulho. E ele me disse que a onda de celulares e a comunicação digital acabou com as relações humanas diretas.  Todas as pessoas, crianças, jovens e adultos não tiram os olhos da telinha dos celulares e passam horas digitando conversas, sem perceber o que se passa ao seu redor. Então é impossível juntar gente numa Praça para uma brincadeira, enquanto as pessoas não se libertarem da telinha... Tecnologia ocupou de vez o lugar dos calorosos contatos humanos... Infelizmente.
Perguntei ainda ao Dé o que ele ganhou com todas essas atividades e eventos realizados, se ganhou dinheiro, se valeu a pena. E ele me disse que pelo contrário, ficou mais pobre ainda porque tudo foi investido em fotografias e isso não lhe dá renda. Mas, diz que é muito feliz por ter conquistado milhares de amigos, que o chamam de Dé onde quer que vá, e que o carinho das pessoas é uma graça que não tem preço.
Gerson Possenti, moço simples do povo, que fez de sua vida um palco de alegrias para os moradores de Mirandópolis, que vive feliz por estar realizando o que sonhou, é sem dúvida Gente de Fibra!


Mirandópolis, julho de 2015.
kimie oku in

Legenda:
1.               Gerson numa inauguração de loja
2.               Rua de Lazer – Voley da 3ª Idade
3.               Festa Junina
4.               Corrida de Saco
5.               Competição de Dominó
6.               Concurso de Pipas
7.               Passeio de Bicicleta
8.               Circo na Praça
9.               Show de Talentos
10.         Árvore Genealógica da Família
11.         Pebolim
12.         Sinuca
13.         Show no Coreto da Praça
Cirandando em julho

Na sexta passada, dia 17 de julho fizemos o Encontro da Ciranda, que corresponde à 53ª Cirandada. Em outubro vamos comemorar cinco anos de existência. Não realizamos os Encontros no mês de dezembro porque é um período cheio de eventos e todos têm muitos compromissos.
Nesses cinco anos, conhecemos tanta gente animada e disposta a melhorar a vida das pessoas idosas e solitárias. E a Ciranda chegou até aqui graças à solidariedade de amigos, que não poupam esforços para tornar cada encontro uma tarde de alegria. A Vina Ramires, a Rachel Sperandio, o Zé Maria e a dupla Gerval e Jovaninho sempre dão seus toques de humor e fazem a turma sorrir bastante. E a Fermina, a Flora, a Ivone, a Jandira, o Gabriel, a Maria José, a Dona Aurora sempre colaborando com os come e bebes...
É verdade que nesses quase cinco anos de Ciranda perdemos a dona Luisinha, o seu Egídio, o seu Jorge Cury, o Professor Aristides, o Professor Walter Sperandio, a dona Maria Menegatti, a Lourdinha Codonho e o Toninho do Pandeiro... Perdas que aceitamos porque o grupo é composto de gente idosa e a morte faz parte dessa nossa existência.
Mesmo perdendo companheiros, nunca deixamos de cirandar porque viver é preciso. Os vivos precisam de atenção e carinho para carregar suas dores, sua solidão... Além de nossos cirandeiros, estendemos a roda para o pessoal da AMAI (asilo local), que nos proporcionou muita alegria pela participação cheia de entusiasmo.


E muitos amigos têm nos mandado recados pedindo para participar, mas não temos estrutura suficiente para atender a tanta gente. E há gente que nem precisa desses encontros, por ter uma vida social ativa e sem solidão. Procuramos sempre cuidar dos mais sozinhos, dos que realmente precisam de atenção e carinho... Esperamos que nos compreendam, porque selecionamos pela urgência de atender aos mais necessitados...

Mas, voltando ao último Encontro, podemos dizer que foi maravilhoso. O Milton Lima, que é um dos fundadores da Ciranda e sua esposa Remir vieram de Campo Grande participar da festa. E tivemos a grata surpresa de receber o amigo José Augusto Lisboa, Professor e Jornalista, que atua em Mauá na Grande São Paulo que veio conhecer a Ciranda. Ficou tão encantado com o andar da carruagem que deu meia volta e foi buscar sua mãe dona Aparecida, que é moradora da cidade.
E tivemos a participação do jovem Leonardo cantando e tocando violão com seu avô, senhor Miro tocando viola. E com isso tivemos um bando de músicos animando a festa: Gerval e Jovaninho, seu Miro e Leonardo, João sem terra e o Albertino. E a cantoria afinada ficou por conta dos cirandeiros, que se esbaldaram de cantar e dançar.
E temos gente nova na Ciranda. Desde junho está participando do grupo o senhor Orozimbo, que mora sozinho.
E como acontece sempre parentes visitando os cirandeiros também participaram desse encontro.
A tarde foi de cantoria e muito som de violão e sanfona. E entre uns lanches e bolos, as horas passaram e todos foram para suas casas com o coração cheio de alegria.



Mirandópolis, julho de 2015.
kimie oku in






sexta-feira, 17 de julho de 2015

            A viagem
Por Milton Lima
       
     Fazia tempo que o nosso pai estava ausente e nem dava notícia. Nossa mãe sabia através de recado de gente conhecida que, ele estava trabalhando numa fazenda distante. Era uma nova empreitada. As crianças não sabiam de nada.
       Naquele tempo era assim, ninguém devia perder um dia de serviço. Muitas vezes de madrugada, debaixo de muita chuva, ele jogava um saco de plástico nas costas, amarrava no pescoço, arregaçava as calças até os joelhos e saía para o serviço. Geralmente eu não via quando retornava. A vida de roceiro sempre foi assim muito dura. Desaparecia nos sertões, nas matas, nas levas, nas empreitadas, nas colheitas, nas construções de cercas e pontes das estradas e outras coisas...
     A família ficava em algum ponto da estrada ou fazenda, esperando a volta do chefe, que demorava muito. Muitos nem voltavam.
   Desta vez, não podendo vir, nosso pai mandou um rapaz buscar a gente. Não eram nove horas, não tínhamos almoçado ainda. Um carreiro, moço novo com seu carro de duas juntas de bois parou em frente ao nosso rancho.
     _ Vim buscar a mudança.
   Coitada da mãe! Ela ficou desesperada, porque tinha que fazer aquilo que julgava não saber fazer. Ajeitar tudo sozinha, às pressas. E as crianças? Oh! Meu Deus!
     O carreiro ainda advertiu:
     _ Vamos depressa que preciso chegar lá ainda hoje! É longe! Vamos, vamos!
    Eu era pequeno, quase nada podia fazer, mas larguei ali no chão os meus brinquedos e, depressa arrastei uma cadeira para o terreiro. Depois mais uma, uma lata, uma vassoura, etc. Minha irmã Clarice e o Irineu que eram os mais velhos também devem ter carregado alguma coisa mais leve. Não me lembro. O povo falava que serviço de criança é pouco, mas quem perdia era louco. Por isso acredito que eles ajudaram.    Carro de bois também chamado de carreta ou carroção, condução importante no transporte sertanejo, porque entrava em qualquer lugar. Tudo feito de ferro e madeira grossa. O carro que foi lá em casa era de rodas raiadas e não cantava.
   Minha mãe clamou aos céus e aos Santos que ajudassem, e junto com o moço foi pondo nossos cacarecos em cima do carro. Não era muita coisa e logo terminou tudo. Por fim o moço passou uma corda para dar firmeza à carga. Uma vizinha veio dar tchau. Nossa mãe e ela se abraçaram e soluçaram. Sabiam que nunca mais iriam se ver. Tchau meninos, vão com Deus, gente! Tchau dona Joana! O peito apertou... A porta da casa deixamos amarrada com arame do lado de fora. Atarantada, nossa mãe esqueceu o balde do poço, que iria fazer tanta falta. Um vidrinho com que eu brincava, duas tampinhas e um carrinho feito à mão com rodas de carretel ficaram embaixo do pé de sabugueiro. Esqueci. As galinhas também ficaram. Minha mãe gritou de última hora: 
    _ Dona Joana, pegue dois frangos para a senhora, se puder prenda o resto que depois meu marido vem buscar!  Nunca foi...
    Com o almoço ninguém se incomodou, com o atropelo ninguém se lembrou de comida.
   _ Vamos embora! Vamos! gritou o carreiro. Bateu com a vara no corrimão do carro: _ Vai boiada, vai! O moço chacoalhou o ferrão por cima dos chifres dos bois e deu a ordem. O carro rodou vagarosamente, porque carro de boi só anda devagar mesmo...
   Ainda próximo da moradia, com cuidado o carreiro guiou a passagem do carro por cima de umas taboas de um corguinho de pouca água. Com os solavancos dos buracos, a carga balançava pra lá pra cá. Na parte de baixo dentro do carro, colocaram as caixas e alguns sacos com nossos apetrechos. Por cima colocaram as camas, um bercinho, um banco de madeira, a mesa da cozinha e as cadeiras com as pernas para cima. Resumindo, era tudo um monte de tranqueiras, mas eram nossos aqueles cangais. A carga parecia um transporte de ferro velho, de tão feia e mal arrumada. Lotou tanto que, não sobrou espaço para ninguém subir no carro.
       A nossa mãe ficou nervosa com a mudança e a aflição que aquilo lhe causava. Em silêncio acompanhava o transporte, enquanto a crise de enxaqueca arrancava lágrimas de seus olhos. Sentia-se fracassada, por não ter tido tempo para arrumar um almoço, para os seus pequenos. Talvez desconfiasse que iríamos comer só no outro dia. O lugar do destino era muito longe e a estrada deserta.
    Para não atrapalhar eu fingia firmeza e esforçava para não ser o último da fila. Minha mãe me chamou e pediu baixinho, para que o carreiro não ouvisse:
     _ Corre meu filho, e veja se encontra umas folhas de mamona para colocar na minha cabeça. Não aguento de tanta dor. (Aquela dor eu conhecia, era tão incômoda e intensa que ela até vomitava. E eu implorava para Deus que tirasse aquela dor e a passasse para mim. Eu queria ajudar minha mãe, salvá-la da maldita dor. Ficava revoltado porque Deus não atendia meu pedido.)
   Rapidamente passei a cerca e entrei no pasto procurando pés de mamona.  Folhas de batata também serviam. Como conhecia o local, não foi difícil achar o que procurava. Escolhi as folhas mais novinhas, que eram as suas preferidas. Colhi um monte e corri para alcançá-los, que já iam distantes. Alcancei-os meio esbaforido. Ela forrou a testa com as folhas de mamona e amarrou um lenço branco, cobrindo boa parte da cabeça. Minha mãe sofria de enxaqueca crônica com crises violentas, que a deixavam prostrada chorando por até dois dias. Ela sofreu disso por muitos e muitos anos. Imaginem ter essas crises e ter que dar conta dos afazeres da casa e de suas crianças... E naquele dia, devido ao inesperado da mudança, a dor surgiu mais violenta que nunca. Oh Deus! Mas era preciso suportar, por isso caminhava em silêncio.
    Debaixo de um sol escaldante, todos caminhavam quietos, apenas o carro rangia na puxada e batida da caminhada. A tarde ensolarada queimava aquele mundo e a nossa mudança.
    Lembro-me, deviam ser umas três horas da tarde, teve um momento que não aguentei mais, eu era o mais pequeno, o mais fraco. Não consegui acompanhar o cortejo, parei. A areia espessa e mole queimava pra valer os meus pés. Sem chapéu, a cabeça parecia que ia ferver, gritei:
     _ Eh! Eh!  Vem cá!
    Minha mãe veio socorrer. Debaixo do lenço, as folhas de mamona já secas estavam grudadas na sua fronte.
    _ O que foi?
    _ Tá queimando, não aguento! Não quero ir! Não quero ir!
    _ Deixe de moleza, menino!
    _ Não aguento mais! Me dá um pouco de água, pelo amor de Deus!
        Aí foi que ela se lembrou que, não havia trazido água para a nossa viagem. Nenhuma gota. Ela gritou para o moço do carro. Ele parou a boiada e revirando a porunga seca, disse:
  _ Eu também estou morrendo de sede. A minha água acabou faz tempo! Não temos água, não podemos parar, não podemos perder tempo. Ainda está muito longe, vamos chegar só de madrugada.
    E tocou os bois e o carro rodou. Como eu disse, era um moço novo e não se preocupou com a preparação da viagem. Talvez nem tivesse prática no transporte, era possível.
     Já havíamos andado bastante e não tínhamos passado nenhum rego d’água na estrada. Eu já havia observado várias baixadas com arbustos característicos de água, mas ninguém falou nada de parar para bebermos. Ninguém reclamava nada, eu também não queria reclamar para não dar trabalho, mas minhas pernas bambearam. Eu me entreguei e quis chorar, mas minha mãe bronqueou chacoalhando meus ombros:
     _ Aguenta firme seu moleza! Todos nós estamos com sede, você não é homem, não? Aguente firme que logo chega. Vamos embora! Fica firme!
   Aquela chacoalhada de braços me fez firmar um pouco e me fez acreditar sim, sou homem e por isso devo aguentar mais um pouco. O menino sempre gosta de ser comparado a um homem. Caminhei com dificuldade, mas caminhei. Fui em frente, me arrastando, seguindo a mudança bem lá na retaguarda já sem interesse em mais nada. Eu só queria parar, só queria água. Água! Água! Água! Minha mãe de vez em quando olhava para trás para ver se eu não havia caído, se eu estava de pé. O sol de meio dia havia queimado com força e o da tarde parecia assar a pele bem devagarinho. Doía muito. A boca seca e a fraqueza inibia a voz da gente. Por isso o cortejo seguia em silêncio e a quentura ardia tudo ........................................................................ ..........................................................................................................
      Água. Água somente isso era o que eu queria. Não tinha.
   Passaram as roças, passaram os campos, passaram os pastos, passaram as baixadas, passaram as reservas, passaram os barrancos, passaram os montes, passou a tarde mas a sede não passou. De tardezinha parece que o sol tombou de vez. Bateu uma fresca. Sem preâmbulo de esperança de matar a sede que era insuportável, com o chegar daquela brisa parece ter amenizado um pouco o desespero.  Não posso afirmar, pois não lembro se pararam ou diminuíram a marcha, mas acabei alcançando o carro e os cacarecos da mudança. Caminhei um pouco junto deles.
        ................................................................................................. O carro prosseguia com seu toque preguiçoso e com as batidas das cangas, e o rangido dos tentos do couro cru presos nas argolas e nas pontas dos canzis..................................................... As gargantas ressequidas pediam urgentemente um pouco d’água. Estas foram as últimas cenas que guardei na lembrança no final daquele dia. O dia que mais passei sede em minha vida. 
     Escureceu rapidamente. Agora somente vultos se moviam no vão da estrada. Eu não conseguia enxergar nada, mas nessas horas nossas vistas começam a distinguir um vulto escuro dentro da própria escuridão. Assim andamos um bom trecho na imensa escuridão. Andava e cochilava, cochilava e andava. Balançando pra lá pra cá perdi o rumo e a noção de direção. Hoje imagino que se passou muito tempo até que voltei à cena da viagem, quando me encontrava sentado num barranco à beira da estrada. Quase dormindo, abri os olhos e vi uma luz que se acendeu e apagou à meia distância. Era fogo de binga. Alguém tentava iluminar o local. Percebi o vulto de minha mãe bem perto de mim, perguntei:
     _ Chegamos, mãe?
     _ Não, ainda está bem longe. Aqui é um cemitério.
     Assustei. _ Cemitério aqui, mãe? Como assim?
   Nesse exato instante, aproximou-se de mim um homem com uma moringa d’água, retirou o sabugo da tampa e colocou o bico na minha boca. Aí então eu pude beber água à vontade. Repeti. Respirei. Repeti e bebi mais uns goles, novamente respirei e por fim fiquei satisfeito. _ Que delícia, gente! Que delícia! Não consigo explicar.
        .................................................................................................             Muitos anos depois, revivendo esse episódio, ficamos sabendo que o tal homem   era um trabalhador, que se atrasou na execução de uma tarefa ali no cemitério. Um cemitério no meio do mato, antigamente existiam vários, Nunca pudemos confirmar a veracidade dessa informação. Hoje fico me indagando _ Seria um anjo que o Senhor colocou em nosso caminho?
  Quando aquela noite terminou acordei de um sono gostoso e comprido. O sol da manhã iluminava tudo ao meu redor. Amanheci deitado no chão, em cima de um saco de estopa estendido na areia fresquinha.
     _ Que gostoso! Com certeza adormeci ali, ou fui colocado por alguém naquele local. Era o terreiro em frente à nossa moradia. A casa era simples com escadinha de duas tábuas. No terreiro uma enorme paineira. Nesse dia não havia flores, admirei somente as casinhas de joão de barro. Os passarinhos gritavam agradecendo aquela linda manhã.
     Para mim, lugar novo, estranho, mas senti que transmitia paz. Era apenas o início de um novo dia, e eu ainda sentado ali no chão, recebia uma lição de humanidade dos nossos futuros vizinhos, que vieram ajudar.
   Aquelas pessoas vendo e reconhecendo nossa dificuldade deixaram seus afazeres, e ali estavam colaborando com seu auxílio. Uma das senhoras havia acordado mais cedo e matado uma galinha, e preparava comida para a nossa alimentação. Todos eles vieram ao nosso socorro, e ia nos ensinando que, mesmo estando na fila dos miseráveis, sempre temos ou encontramos alguma coisa para doar. Não precisamos de tanto... Precisamos apenas de uma iniciativa, vontade e coragem para ajudar o próximo, o irmão necessitado. É sempre grandioso aprender e divino sentir o que o outro sente. A ação daquelas pessoas que não nos conhecia naquele momento de muita precisão, foi tão importante, que logo observei na face de minha mãe um brilho de agradecimento, e andando para lá e para cá ajeitando nossos cacarecos transmitia calma e aquilo me deixou também contente.
    A casa estava iluminada pelo sol da manhã e recebia vida. A fumaça rodeou os cômodos e subia pela chaminé do fogão de lenha. Sinal que aquela mulher tomara a frente e já preparava alguma coisa para comer e beber. As demais pessoas ajudavam nossa mãe, ajeitando as coisas que estavam jogadas ali na grama. Não havia mais carro nem carreiro. Mais uma vez, nosso pai não estava presente. Eu sabia que ele estava no campo trabalhando. O trabalho dele era importante para a Fazenda.
    Eu não estava mais com sede. Caminhei pelo terreiro e encarei o quintal da casa cheio de mamoneiras, importante praça de exploração de crianças da roça. Encarei também a realidade de mais um dia simples e duro de minha infância...

        
   P.S. : Esse texto foi retirado do livro “Um pouco de açúcar branco” de Milton Lima. É um livro de poemas e crônicas, em que relata a vida dura do camponês pobre e abandonado pelos governantes... É uma catarse que, o autor faz para se livrar das lembranças tristes de um passado sofrido, que ao mesmo tempo lhe traz muitas saudades... Certas passagens chegam a doer na alma... Tão dolorosas e sem esperança...  (kimie oku)

       
        Mirandópolis, junho de 2015.
        kimie oku in