segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

 

Corpo e alma

Há uma frase japonesa que me incomodava muito.

体に気を付けなさい

"Karada ni ki wo tsukenasai!"

Significa: "Cuide bem do seu corpo!"

Essa frase era sempre dita ao se despedir de uma pessoa.

Para pessoas que iam embora.

Para outras que iam viajar.

Ou simplesmente para pessoas que precisavam se ausentar...

Eu na minha total ignorância ficava pensando: 

“Por quê só cuidar do corpo? E a alma? Não importa?

Japonês tem cada uma!”

Agora no limiar da vida penso diferente...

O corpo é a morada da alma, o seu repositório. Então, é necessário cuidar do corpo, porque ele é a morada. Mesmo sendo de barro, que ao pó voltará, ele é a casa, onde habita a alma.

Ora, se não se cuidar do corpo a alma irá sofrer.

Um corpo machucado terá uma alma sofredora.

E o nosso contato com as almas se faz através de corpos.

Corpos materializados, que enchem nossos olhos.

Porque representam almas viventes.

Almas que preenchem nossas vidas...

Por tudo isso, a gente sofre quando alguém parte.

Porque um corpo levou a alma que amávamos...

Somos muito materialistas ainda.

Precisamos conferir com os olhos as presenças...

Mesmo sabendo que elas estão diante de nós.

Porque quem nos amou um dia, nunca irá nos abandonar.

Apenas o corpo irá se desmaterializar. Porque a matéria tem prazo de validade.

A alma não.

Então, para continuarmos vendo as pessoas queridas, devemos repetir:

体に気を付けなさい!

Karada ni ki wo tsukenasai.

Então, amigos,

Por favor, karada ni ki wo tsukenasai!

Mirandópolis, 09 de novembro de 2020.

kimie oku in

http://cronicasdekimie.blogspot.com


sábado, 26 de fevereiro de 2022

 

               Dr. Roberto Yuasa

 

 Era um homem simples, sem luxo, que não se destacava no meio da multidão. Tão comum que passaria como um simples trabalhador.  Cabelos compridos, sempre com uma jaqueta velha, andava num Gol cinza, modelo antigo. Nunca era visto nos points da moda.

   Mas, nos Hospitais e na sua modesta Clínica era presença constante. Além dos Hospitais daqui, atendia em Valparaíso e em Lavínia. E tanto aqui como lá era venerado pelos pacientes. Mesmo agora, após quatro anos de sua passagem, sua memória permanece na lembrança de todos os cidadãos daqui. Sua Clínica que vivia sempre lotada de clientes só tinha um luxo. Era uma parede forrada de fotografias de sua família, especialmente do filho de dezoito anos que partira de repente. Filho em quem depositara todos os sonhos de continuação de sua missão. Porque o jovem era estudante de Medicina. Depois dessa perda, Dr. Roberto ficou mais calado, mais arredio, mais triste...

     Eu pessoalmente tinha alguns contatos com ele, porque era filho da minha amiga Yuasa sama, com quem aprendi muita coisa sobre o Japão e a Língua japonesa.

     Dr. Roberto era clínico geral, e volta e meia eu o procurava para curar meus achaques. Sempre, sempre atendia a todos com a paciência de Jó. Era um médico às antigas, tocava na parte física que doía, auscultava o coração, media a pressão arterial, conferia a garganta e só depois avaliava o que estaria acontecendo. Pedia para fazer uns exames, mas geralmente o seu diagnóstico inicial batia. (Os médicos de hoje nem olham o paciente, mal e mal escutam as queixas e só pedem uma série de exames, que analisam rapidamente no retorno, receitam alguma coisa e chau! Eles têm pressa para ganhar din din...)

 Dr. Roberto não cobrava dos pacientes que não podiam pagar e, os tratava com a atenção que eles precisavam. Daí a devoção dos pobrezinhos e da clientela em geral. E sempre, sempre pedia para todos não se esquecerem de retornar... Mesmo quando ele não tinha mais o convênio médico que me servia, dizia: Se precisar, volta aqui.  Ele era assim, simples, atencioso e amigo mesmo.

Ele tinha um hobby. Um carro amarelo, com que ele gostava de circular pela região quando estava de folga. Todos conheciam o carro e diziam: Lá vem o Dr. Roberto!

Volta e meia eu o encontrava no mercado e de repente, ele me dirigia a palavra: Como vai?  Tudo bem?  Uma vez, comentando sobre as mortes que estavam ocorrendo em profusão, ele disse: “Ninguém é indispensável neste mundo, a não ser as pessoas que amamos”

Dr. Roberto serviu a comunidade durante toda a sua vida adulta. Só parou porque Deus o levou para descansar.

Doutor Roberto, um médico a serviço da humanidade.

    

Mirandópolis, fevereiro de 2022.

kimie oku in

http://cronicasdekimie.blogspot.com

 

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

 

        Sakurá, Sakurá!      


            

Há mais de dez anos, certo jornalista nihonjin veio aqui em Mirandópolis.

Queria conhecer a Comunidade Yuba, que já foi famosa por seu Balé, que nos tempos áureos fizera turnês por várias partes do mundo, inclusive no Japão.

O cidadão estava curioso para conhecer não só as pessoas, mas especialmente a natureza diferente daqui das terras tropicais.

Então, pediu ao anfitrião que o levasse a dar uma volta pelo campo. E lá foram eles, observando as plantações, as pastagens, a amplidão dos campos, e o gado que o deixava pasmo pela quantidade...

Estavam indo bem conversando, mas num determinado trecho da estrada, ele gritou para o motorista: Pare! Pare!

O amigo parou o carro preocupado, imaginando que o nihonjin estivesse passando mal.

Mas, quando o carro parou, o cidadão desceu sem dizer uma palavra e, desembestou  por uma pastagem verde  correndo como um doido.  O motorista ficou perplexo, sem entender nada.  Só ficou observando o que o japonês iria fazer...

No meio da pastagem tinha um maravilhoso ipê coberto de flores cor de rosa. O nihonjin foi até lá correndo e ficou algum tempo rodeando e admirando a árvore. E com a câmera tirou uma porção de fotos.

Quando voltou, perguntou tudo sobre  os ipês que nunca tinha visto. E quando soube que há ipês rosa, amarelo e branco em profusão no Brasil, ele disse:

“Doshite, nikeijin tachi ha NIppon no sakurá, sakura bakari ni shuuchaku suru no? Burajiru ni konna lippana ki ga arunoni...”

Por quê os japoneses daqui são tão apegados ao sakurá do Japão, se existem tão belas árvores aqui?

Mirandópolis, fevereiro de 2022.

kimie oku in

http://cronicasdekimie.blogspot.com

 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

 

         Quem seriam?

Acho que todos os meus amigos devem ter no fundo de uma gaveta, umas fotografias antigas de gente que conviveu com seus pais ou avós... De gente que nunca conheceram...

Eu também tenho umas fotos lindíssimas do século passado, dos primeiros imigrantes japoneses que não tenho coragem de descartar, porque parecem pessoas vivas... São fotos caprichadas preservadas em capas especiais, com o timbre da loja que as fotografou. Fotos das décadas de 1920 e 1930.

Algumas têm até dedicatórias tão caprichadas para o meu pai, datadas de 1925... Por onde andarão seus descendentes? Que foi feito de seus familiares? Será que há alguém dessas famílias convivendo entre nós? E que ligação havia com meu pai, além de uma boa amizade? Trabalharam juntos? Ou se conheceram por outras circunstâncias? Foram profissionais ligados à área da saúde? Papai trabalhou com o médico Dayan nessa época... Então penso em médicos e farmacêuticos... Só por Deus.

Cada foto guarda na imagem, uma época, uma história, uma vida, que só os próximos testemunharam. Os chapéus, os óculos, os trajes são de outro tempo, mas são bem elegantes e bonitos. Como as famílias moravam distante umas das outras, e não havia meios de comunicação como telefones e meios de locomoção, os contatos se perderam... Naqueles tempos ninguém tinha carros, alguns raros remediados possuíam caminhões, que eram usados para transportar a produção agrícola para a cidade...

Sempre que vejo essas fotos, fico me perguntando por quê nunca perguntamos aos nossos pais sobre esses amigos? Quem eram? Onde moravam? Como se conheceram? Nomes, nível de amizade, relação de trabalho... Talvez ele tenha nos contando, mas acho que não demos importância... E assim suas histórias se perderam nas brumas de um passado distante...

Mas, acredito firmemente que seus descendentes estejam por aí, pelejando pela vida, exercendo alguma função importante na sociedade e, cuidando de seus familiares, assim como nós.

Assim também creio que os descendentes de Dr. Dayan devem estar em algum lugar, levando uma vida tranquila como nós...

E apenas como um simples arquivo, resolvi publicar essas fotos, para a posteridade. Quem sabe, alguém se manifeste e revele alguma ligação.

E para maior segurança, vou doá-las para Ana Caldatto, Colecionadora de Emoções, que está organizando um belo Museu aqui na cidade.

Assim serão preservadas.

Para sempre.

Mirandópolis, fevereiro de 2022.

kimie oku in

http://cronicasdekimie.blogspot.com

 

 


























 

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

 

                  Yuasa sama

     Quando me aposentei resolvi estudar Nihongô e, uma amiga me emprestou um livro de memórias da senhora Yuasa Natsuko. Tentei ler, não consegui. Daí, fui ver a autora para saber mais. Foi um desastre! Ela falava e eu não entendia nada! Nem consegui explicar a razão de minha inesperada visita... Apenas mostrei o seu livro, e ela entendeu! Falou, falou, misturando um pouco de Português, mas decididamente nada captei e me senti totalmente idiota. No final resolvi vir embora. Mas aí ela disse sorrindo: Mata oidenasai! Isso entendi. Falou pra voltar!

Naquela época, eu fugia das batians que cruzavam comigo na rua, por não saber conversar com elas. Passei tanto vexame sem saber como responder às suas perguntas, que resolvi estudar um pouco a minha língua materna, o Japonês.

Então, quando a senhora me disse pra voltar, voltei. Voltei dezenas, centenas de vezes. Durante quase vinte anos  frequentei a sua casa. Ela era fina, culta, educadíssima! Imagino o horror que deve ter sentido ao conhecer uma pessoa tão xucra como eu. Quando a conversa não prosperava, ela pegava um dicionário e falava a palavra em português! Recorria a gestos, a onomatopeia, tudo para que eu a entendesse. E isso se repetia sempre, para vergonha minha. Mas ela queria me ensinar e eu queria aprender. E pouco a pouco, bem devagarinho começamos a nos entender.

 E nossas tardes se tornaram prazerosas. Assistíamos a um pedaço de novela, noticiário e eventualmente a uma sessão de sumô, tudo pela NHK. E ela falava sobre o seu passado no Japão, de onde viera com quinze anos. Um dia, me perguntou se eu era a pessoa que publicava crônicas no Jornal da cidade. Ao ouvir o meu sim, ela começou a chorar. Fiquei desnorteada. Quando se acalmou me disse: “Por quê não veio três anos antes? Meu esposo teria ficado feliz em te conhecer.” Ate três anos antes, seu esposo lia minhas crônicas e as traduzia para ela.  Aí, foi eu que me emocionei. O homem era bastante respeitado, porque escrevia em japonês e em português... Quando achava a minha crônica dizia: Kyou mo notte iru, yomimashou! Hoje tem! Vamos ler! “Reflexões” que eu escrevia para o Jornal O Labor...

Mas ele falecera três anos antes...

A sua solidão me inspirou em criar um Grupo, para levar pessoas solitárias como ela para uma Chácara, onde pudessem aproveitar o ar do campo, ouvir o canto dos passarinhos e conversar com outras pessoas sós... Demorou, mas consegui formar o grupo Ciranda, com a ajuda de uns amigos. Esse grupo existe há treze anos e é um sucesso. Levamos os idosos e passamos a tarde cantando, dançando e conversando. Servimos um lanche e os levamos de volta. Infelizmente, não consegui levá-la nem uma única vez. Ela já estava com a saúde debilitada... Logo depois ela partiria para sempre...

Pela Ciranda já passaram mais de duzentas pessoas. Algumas mudaram de cidade, e muitas foram cirandar no céu, mas antes todos cirandaram felizes. Atualmente estamos com umas sessenta pessoas, ansiosas para se reunirem de novo, porque há quase dois anos interrompemos os encontros por conta da pandemia...

Sou muito grata à senhora Yuasa pelos ensinamentos que recebi. Ela tinha uma cultura sólida e admirável. Escrevia tankas, pequenos poemas de conteúdo profundo com versos de cinco, sete, cinco, sete, sete, totalizando trinta e uma sílabas. Seus tankas eram publicados nos jornais nipo/brasileiros do Estado.

Palavras que aprendi com Yuasa sama: sinsetsu/gentil, meiwaku/aborrecimento, tagaini/recíproco, misuborashii/miserável, tipokena/pequeno, tonikaku/por outro lado, kanshin/admiração, mite gorannasai/veja, kokoroatari/ideia,suspeita e uma dezena de palavras menos comuns. Ela falava a palavra, eu anotava no caderno e procurava a tradução no dicionário em casa.

Depois de ter sido iniciada por Yuasa sama, passei a comprar livros de biografias dos heróis japoneses e li muito. Livros destinados aos alunos do Curso Primário. Aprendi muito com isso.

Sempre que reúno o Grupo Ciranda que tanto consolou os idosos solitários, penso na senhora Yuasa. E quando escrevo, leio ou penso em Nihongô agradeço à bondade dessa senhora, que resgatou em mim o orgulho de ser japonesa. Hokori ni omotte iru.

Yuasa sama, arigatougozaimashita!

Itsuka mata aeru to omoimasu.

Mirandópolis, janeiro de 2022.

kimie oku in

http://cronicasdekimie.blogspot.com