sexta-feira, 24 de novembro de 2017

         
            Abordagens
                 (para todas as Mauras do Mundo) 
     Depois que publiquei a crônica intitulada “Os jovens, os velhos”,  percebi que o tema permite várias abordagens diferentes. Minha abordagem foi sobre o tratamento diferenciado que a sociedade oferece aos jovens e aos idosos. Os mesmos jovens que um dia serão idosos...
      Eu poderia ter comentado sobre os jovens que agem como velhos, nunca tendo experimentado a juventude por serem duros, radicais e exigentes demais. Ou sobre os velhos que nunca tiveram juízo e agem como adolescentes inconsequentes, dando muitos aborrecimentos às famílias. Ou ainda, sobre velhos que agem como velhos ranzinzas desde que foram crianças, e jovens que nunca amadurecem... Honestamente percebi que, a primeira e a segunda abordagens são as que mais ocorrem.
      Em Consciência Negra abordei a inutilidade de um dia dedicado a Zumbi, para acabar com o preconceito racial. Poderia ter defendido a ideia de que uma data pode fazer toda a diferença.
Depois vi publicações denegrindo a imagem do Zumbi, que sucedeu a Ganga Zumba, que formou  reduto em Quilombo dos Palmares, para acolher os negros foragidos das senzalas e, os índios perseguidos por capitães do mato... Acredito que, o reverso dessa medalha de Zumbi foi criado pelos senhores dos engenhos, que não aceitavam sua liderança para acolher os escravos fugitivos. É preciso entender a verdadeira história para não distorcê-la. Zumbi era um guerreiro, descendente de gente nobre da África e, não aceitava servidão por causa da cor da pele, para si e nem para os seus. Houve excessos no Quilombo? Sim, com certeza, pois não deve ter sido fácil controlar uma multidão faminta, revoltada e sem renda. Ele conseguiu afrontar e bater de frente com os escravagistas. Nesse sentido foi um herói africano, defendendo sua gente das garras de gente branca, que se julgava superior e agia como carrascos. E a História oficial do Brasil, aquela mesma História dos compêndios que ensinamos na Escola, está cheia de incongruências e mentiras. Porque foi construída e narrada pelos brancos que mandavam. Versão dos mandantes, sem nenhum respeito para com os africanos. Mesmo agora, os mandantes do país distorcem as verdades em benefício próprio. Sempre foi assim e sempre será, infelizmente. A História oficial sempre é contada pela perspectiva dos dominadores.
Quando eu trabalhava na Delegacia de Ensino em Andradina, havia lá uma funcionária supercompetente chamada Maura. Era Diretora das Finanças da Delegacia. Era uma mulher forte, bonita e totalmente negra. De branco só os dentes perfeitos. Acho que era Professora de Física em alguma Escola. Professora muito capaz! Um dia, a convidei para almoçar comigo num restaurante local. E ela disse que não poderia ir comigo, porque sua irmã que morava na África estava à espera para almoçar junto.
Interessada pela história, lhe perguntei o que essa irmã fazia num país tão distante. Era Irmã de Caridade e desenvolvia um trabalho social lá. Então, lhe sugeri que procurassem as raízes da família lá na África, para descobrir a procedência de seus pais e avós que vieram como escravos. E de repente, ali na calçada em pleno meio dia, essa Maura desatou a chorar. Levei um susto vendo aquele rosto querido devastado pelas lágrimas... Não entendi nada... Fiquei perplexa. 
Quando se acalmou, explicou que haviam tentado várias vezes essa pesquisa. No consulado... E descobriram que o Governo brasileiro havia queimado todos os documentos, para não deixar provas de escravidão no Brasil!!!
 Então, ali na calçada de uma cidade próxima, em pleno meio dia, vendo a dor da minha amiga, senti imensa vergonha da nossa História que, está recheada de mentiras e traições contra o próprio povo de sua terra. Mentiras que roubaram a verdadeira história dos africanos que aqui vieram forçados, para serem subjugados e humilhados. Nem direito à própria história foi respeitado! Mentiras dos coronéis, dos senhores de engenho, dos escravagistas, dos políticos sem caráter e dos “sábios” que escreveram a nossa História... Passagem triste e vergonhosa de nossa História.
E fico pasma de ver gente, que ainda não acordou para a realidade de nossa História, e em pleno século XXI acredita em histórias de carochinha. E divulga que o Zumbi foi um bandido... Puro resquício de preconceito e discriminação racial. Espantoso!
Vamos acordar, meus amigos!
Zumbi foi prepotente? Foi duro com os irmãos escravos que procuravam a liberdade?  Acredito que deve ter sido! Mas, ele estava procurando um caminho livre para todos! Um caminho de luz, de libertação. Liderar uma multidão revoltada, vilipendiada que não queria se submeter a ninguém depois de anos de cativeiro, não deve ter sido fácil. Ao invés de criticar Zumbi, seria mais honesto analisar a atuação dos senhores escravagistas, que trataram os africanos como seres inferiores. Como animais que não sentiam dor, mágoa, tristeza, banzo...
E aí seria mudar a abordagem para a verdadeira face de nossa triste História.
Será que um dia isso acontecerá?
Maura...

Mirandópolis, novembro de 2017.



terça-feira, 21 de novembro de 2017

           THÊ,
         


       Estou entorpecida.
       Não consegui digerir a tua partida...
         Eu te vi coberta de flores, com a mesma expressão amistosa de sempre.
E aí vi teus familiares. Chumbo, Maria Adelaide, o Tato, a Nena, as filhas da Nena, a nora e a neta da Maria Adelaide, a Cecilinha e a Juliana tão doce e toda chorosa... Parecia órfã de mãe...
E vi a Inês. Passada, meio atordoada, como se não entendesse o que estava acontecendo... esticando e enrolando uma toalhinha de mão, como se fosse a mais importante tarefa a executar. Sem parar, estendendo-a sobre os joelhos e olhando pro nada...
E aí veio o Flautides cumprir uma promessa. Ele falou sobre a tua missão aqui na terra, que foi a de servir a todos que te conheceram... Lembro das palavras magnânimo coração, socorrendo os familiares, cristã devota exemplar e defensora da natureza... Disse que estava atendendo a um pedido teu, para não partires em brancas nuvens. E ele falou bonito. Mas, não tão bonito como foi o caminho que trilhaste.
Falou também uma senhora, que um dia acolheste por um longo período em tua casa com o irmãozinho, dizendo da imensa dívida que restou... Dívida de gratidão por tua generosidade...
Depois, pedi licença para falar também da nossa amizade, de tudo que aprendi com o teu convívio, da tua generosidade de olhar e socorrer os que te rodeavam, esquecendo sempre de tuas necessidades... Falei de nossas tardes na “casa da Thê”, lá na esquina, onde as amigas tinham sempre um encontro marcado com um saboroso cafezinho, salgados e bolos. E das conversas sem fim, que eu sempre acabava vindo embora só quando escurecia, deixando o Nori muito apreensivo... Casa da Thê era um dos pontos de referência que eu cultivava, além do pequeno cemitério onde repousam meus pais... Hoje se fundiram num só ponto de referência. Na Casa da Thê, a Thê não está mais...
E a Maria Adelaide me disse da imensa gratidão por ter sido socorrida com os filhos, quando teu irmão foi acidentado. Disse que não era capaz de falar em público, mas seus olhos estavam marejados de lágrimas.
Naquela cozinha de mesa redonda tomei café tantas vezes com a Nena, com a Maria Adelaide, com a Sumiko, com a Harumi, com a Chiquinha, com a Hilda, com a Lili, com a Nívea, com o Chumbo e a Márcia, com a Denise, com a Teresa Fontana, com a Juliana, com a Áurea, com a Cida Pessoa, com meus familiares (lembra-te quando fizemos a missa da mamãe no Kaikan?) Quanta conversa jogada fora, quantas risadas gostosas... E a cachorra que ficava no teu pé, e o gato que subia na pia?
E as orquídeas que tive que podar? Tão belas! Ficaram com quem? E os bordados e os crochês que ficávamos mostrando como tesouros?  E as belas peças com linha Mercer, que crochetaste e guardarei como relíquias...
E hoje foi o teu funeral!
Nunca nessa relação feliz que cultivávamos desejei passar por isso, porque parecias eterna. Nada te derrubaria, porque eras forte, teimosa e querias viver. Tanto que no final com AVC, com pneumonia, com febre, com falta de ar, com a respiração comprometida, teimaste em voltar a reviver e falar palavras de consolo aos familiares...
E o teu funeral foi simples, cheio de sentimentos... Lá compareceram o Jorge Chaim que foi teu amigo e companheiro na Delegacia de Ensino, o Marcondes e a Áurea meio parentes teus, o Zé César teu dentista, a Teresa Fontana, a Ziquinha, a   Maurilia e o Alfredo, o José viúvo da saudosa Odete, o Arthur e a Vergília, o Chumbo, o Tato, a Lili, a Leonilde, os sobrinhos e sobrinhas que não lhes sei nomear... E tantos amigos que não conheço, mas  todos ligados no desejo único de que Deus te receba em sua Glória.
No final, agradeci a Deus porque foste embora em 2016 para longe da gente, porque isso nos forçou a acostumar com tua ausência... Mas, é tão duro pensar que nunca mais vou te ver, Thê.
A morte é muito cruel.
Mas como criatura de Deus, tenho que aceitar e esperar que um dia nos reencontremos.
Adeus, amiga! Que estejas conversando com os anjos.

Mirandópolis, 21 de novembro de 2017.
kimie oku  in




segunda-feira, 20 de novembro de 2017

            Consciência Negra?
          
       Dia de Consciência Negra, 20 de novembro.

Sempre que vejo essa expressão fico matutando...  O que é consciência negra? É uma consciência pesada, de maus pensamentos? É uma consciência suja, cheia de maus desejos?
Porque acredito que o reverso da medalha é consciência branca, consciência leve, consciência limpa cheia de boas intenções...
Então, por que instituíram um dia para relembrar o Zumbi dos Palmares com esse título? Dia de Consciência Negra... Ora, sabemos que Zumbi foi um valente guerreiro que deu a vida, para libertar seus irmãos escravos das mãos dos brancos opressores. Sua pele era negra, mas sua consciência era de compaixão pelos africanos mantidos sob servidão bruta e incompreensível, no Brasil colonial. Sua consciência não era negra e muito menos pesada. Por que consciência negra?
      Acho que essa nomeação do dia está errada. Teria que ser Dia de Despertar Consciências... Despertar para a realidade que não deve existir diferença de tratamento para povos de origem diferente. Brancos, negros, amarelos, vermelhos, azuis são todos filhos de Deus, e foi Deus que os tingiu com essas cores desde os primórdios dos tempos. Todos têm coração, têm cérebro, todos andam, todos falam, todos se comunicam. Então, por quê a discriminação?
Quando eu era criança, sofri discriminação na escola por ser de origem japonesa, me chamavam de “zoio raso”, bodinha, japona... E quando contei pro meu pai, ele disse:  Estude bastante e mostre pra eles que você é capaz! Gambarê!  Foi assim que venci esse tipo de bullying que existia em 1949/50! E eu só tinha 7 anos de idade...
Além da denominação errada do Dia dedicado a Zumbi, tenho outra ressalva: A instituição pura e simples de um dia para os Negros nunca será garantia para vencer o preconceito. Quem pensou nisso está totalmente equivocado, assim como quem determinou que uma certa percentagem de vagas em Universidades deve ser destinada aos calouros negros. Essa destinação está atestando que os candidatos negros não têm competência! Escola deve medir capacidade, dedicação, esforço e desempenho. E nunca olhar a cor da pele. Pois essa abertura teria que também reservar vagas para os calouros de origem indígena, para os orientais, para os árabes, os indianos...
A essência do problema está na sociedade que olha os diferentes com menos apreço. No início, os comerciais que utilizavam os japoneses sempre o faziam de forma cômica. É muito recente a mudança, em que japoneses e seus descendentes aparecem em comerciais sérios. Reparem.
E ultimamente, tenho visto comerciais muito bem elaborados utilizando negros e negras. É assim que deve ser. O Brasil tem 60% de negros e nos comerciais e reportagens de escolas nunca, mas nunca mostram crianças negras.  Só nas notícias de tragédias e assaltos é que elas se evidenciam, mas como vítimas. Isso é muito esquisito! Sabem onde os negros aparecem de fato? Nos campos de futebol, porque ali eles são as estrelas! Mesmo assim, eles ainda sofrem discriminações que envergonham a raça humana! São chamados de macacos e outras denominações humilhantes...
Temos que mudar, gente! Mudar agora! Deixar de ver a cor da pele, a diferença de religião, de cultura, de língua, de nacionalidade! Se os meios de comunicação não discriminassem os negros, acredito que muita mudança poderia ocorrer. Os telespectadores ficam horas e horas vendo a telinha e tudo absorvem. Se as grandes empresas quiserem vencer a discriminação, poderiam fazer comerciais utilizando os negros. Professores negros, alunos negros, donas de casa negras, médicos negros, policiais negros, advogados negros, operários negros, funcionários públicos negros, pois eles existem aos montões. Mas, façam uma pausa agora e pensem comigo, qual é o comercial que você viu com um trabalhador negro? Não lembra, né? É porque quase não existe!
Taí a discriminação maior!
Eles pensam que o produto não venderá se um negro o recomendar? Mas é a maioria negra que irá comprar...
O Brasil é um país de negros!
Bom, para concluir ficam esses dois pensamentos que são os gritos de negros muito, muito inteligentes:
    “Enquanto imperar a filosofia de que há uma raça inferior e outra superior, o mundo estará permanentemente em guerra.”  Bob Marley
“Eu tenho um sonho. O sonho de ver meus filhos julgados por sua personalidade e não pela cor de sua pele.”  Martin Luther King Jr.
Dia de consciência leve!

Mirandópolis, novembro de 2017.
kimie oku in


       

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

                        Eu conheci...
        Eu conheci tanta gente nesse mundo.
        Conheci gente bonita, gente feia, gente boa, gente má, gente sábia, gente vazia, gente implacável, gente amável...
        Conheci gente que cozinhou milho seco, para os filhos não morrerem de fome. E sobreviveram... E amaram muito a mãe.
        Conheci gente que passou fome e ficou tão feliz com um punhadinho de açúcar branco, que uma vizinha doou...
        Conheci gente que mandava o filho cavoucar o chão para roubar batatas, que plantávamos. Essa gente era japonesa...
        Conheci duas mulheres que prometeram colocar uma cédula, se não me engano de mil cruzeiros no caixão daquela que morresse primeiro. Mil cruzeiros era valioso na época, como cem reais de hoje. E a promessa não foi cumprida...
        Conheci uma família inteira que chorou e agradeceu a chuva, que Deus mandou no momento que mais precisava dela.
        Conheci uma senhora meio bruxa, que conseguia afugentar tempestades jogando sal grosso no tempo, quando o céu ficava assustador demais. E o temporal ia embora, de verdade!
        Conheci um aluno que mandou a professora parir primeiro antes de “lhe meter a mão na cara”, como ameaçou. Ela não tinha filhos...
        Conheci um diretor de Escola que consertava armários das salas de aula, para que funcionassem regularmente.
        Conheci uma pessoa que, cuidava do dinheiro e da conta de uma senhorinha interna no Asilo em outra cidade, distante 40 quilômetros. E todo mês, ele levava o valor certinho, sem cobrar a viagem. Arcanjo Gabriel?
        Conheci uma pessoa que cuidou de uma cria de casa, transformando-a em professora, para dar conta da própria vida.
Conheci uma pessoa que veio ao casamento de um irmão meu sem ser convidado, para agradecer um favor que papai havia feito décadas antes... Morava distante e veio de táxi, e o reencontro foi  muito emocionante...
Conheci uma senhora muito educada que me serviu em casa, e corrigiu os modos de meu caçula... Dona Joana.
Conheci uma pessoa inocente, que morreu injustiçada por causa de fuxicos de comadres. Comadres famosas da sociedade...
Conheci um homem casado, que ocupava uma função local e teve a ousadia de bater à porta de uma viúva para dormir com ela. E ela correu atrás dele de madrugada com uma foice na mão. Nunca mais ousou falar com ela.
Conheci um deficiente mental que passava as tardes ninando um punhado de galhos secos no colo, murmurando e andando pra lá, pra cá...
Conheci uma batian, que ensinava as boas maneiras para todas as crianças da vizinhança. E ensinava a dançar e cantar canções japonesas. Gratuitamente...
Conheci um pai que carregava o filho pequeno nas costas cantando canções japonesas para o ninar... Era meu pai.
Conheci uma senhora que andou por mais de trinta anos, ministrando jhorei para as pessoas necessitadas da cidade. Mamãe.
Conheci um homem desapegado de luxo e riqueza, pronto para ajudar qualquer pessoa. Foi enganado dezenas de vezes, mas não perdeu a fé na humanidade. E continua sendo generoso como sempre.
Por tudo isso, posso dizer que fui abençoada pois só conheci pessoas que, de alguma forma me transformaram no que sou agora.
Pessoas que Deus colocou no meu caminho.
Mirandópolis, novembro de 2017.
kimie oku in









quarta-feira, 8 de novembro de 2017

        Os jovens, os velhos...

     Já estou na fase que muita atitude minha pode ser relevada devido à idade. Tenho 75 anos e meio, e sou o que consideram uma pessoa idosa, graças a todas as décadas que vivi.
Mas, como vivi numa fase em que tudo era proibido, tudo era pecado, tudo era atentado ao pudor, passei todos os anos de minha vida me policiando para errar o menos possível. E não foi nada fácil. É verdade que cometi meus pecados e falei bobagens como todo mundo fez um dia, mas foi por ignorância pura mesmo. Na verdade, vivi minha juventude como uma pessoa idosa, sempre cuidando para não cair na boca do povo...
Quem viveu nos anos 60/70 viveu amarrado por regras duras e rígidas estabelecidas pela Igreja, pela sociedade, pelas comadres, pelos parentes, pela vizinhança... E não era fácil escapar da língua dessa gente, que tudo condenava como pecado, como escândalo. Quem se rebelava, ou se destacava afrontando essas regras era considerado um fora da lei, uma vagabunda, uma pecadora...
Então, todo mundo andava numa corda bamba, cuidando para não cair, procurando se equilibrar de alguma forma, mesmo carregando mágoas sem fim no coração. Aos meninos já as coisas eram diferentes.  A permissividade era mais aberta e eles abusavam. De qualquer forma eram homens e tudo era mais liberal para eles. Mesmo assim, os pecados deles eram pequenos e inocentes, se compararmos com os de hoje...
Estive pensando nessas regras, nesse controle que a sociedade exerce sobre os mais jovens. A intenção é sempre para que eles errem menos e andem em linha reta, mas quem nunca teve vontade de se desviar dos caminhos estabelecidos e procurar atalhos? Quem ousava, tinha que enfrentar uns cascudos, uns castigos, uma punição mais ou menos dolorosa e humilhante.
A Escola era o Juizado da molecada. Tudo era errado, feio, condenável. E os alunos pobrezinhos tinham que ficar de joelhos sobre grãos de milho, por horas (Nunca fiquei, mas devia doer muito, pois não?) E havia as varadas nas pernas para exemplificar; muitas vezes o inocente nem sabia porque estava sendo castigado. Porque os alunos deveriam ficar como robôs sentadinhos nas carteiras, sem se mexer, sem levantar dali e sem falar com os colegas. Era um regime militar mesmo. Ora, cada criança vinha de um lar onde nem sempre imperavam as boas maneiras, e não sabia como se comportar numa sala de aula. E justamente aí é que aprendiam a se comportar de forma mais civilizada, menos estúpida. E era costume da época, os pais ameaçarem seus filhos levados da breca: “Você vai ver, quando entrar na escola, a professora irá te castigar!” Isso provava a incompetência dos pais que não sabiam educar seus rebentos, e essas palavras eram o atestado de sua total incapacidade e ignorância.
De lá pra cá muita coisa mudou. Os pais relaxaram na educação de seus filhos, relegando essa tarefa à escola. Nesse aspecto, os pais estão totalmente enganados, pois é obrigação da família educar seus filhos; e os professores só irão aprimorar a educação, oferecendo-lhes conhecimentos que facilitarão a sua vida.
Quando eu fui professora, também era muito ignorante. E os alunos muito mais... Naqueles tempos bravios, as famílias tinham de seis a dez filhos e a labuta dos pais era tão contínua, que não sobrava tempo nem para conversar e orientar as crianças... A educação se fazia com os pequenos copiando as atitudes dos maiores, e dava bons resultados se estes andavam na linha. Não havia os meios de comunicação de hoje que falam sobre problemas psicológicos, depressão e outros males, que todos nós também  superamos  nas pelejas de cada dia, sem a ajuda de ninguém.
Hoje os costumes estão tão avançados que vi aqui mesmo no face, umas postagens orientando os jovens a não cederem lugares para os idosos em metrôs, trens e ônibus... Justificativa: Os idosos têm que superar essas dificuldades para ficarem mais fortes... Isso me deixou atarantada! Tenho 75 anos e sou mais ou menos forte e resistente, porque caminho e faço ginástica todos os dias, mas sinceramente não conseguiria viajar de pé num metrô ou trem lotado. Mesmo os metrôs e trens modernos dão uns solavancos ou freadas, que desequilibram até os mais jovens e fortes.  Eu não entendo de onde partiu essa orientação, mas gostaria que um dia sentissem com o avanço da idade que o corpo enfraquece, fica bambo, desequilibra facilmente, tropeça em qualquer pedrinha ou reentrância das calçadas e cai estatelado no chão. Às vezes, pode até sofrer quebradura de braços ou pernas. Tudo por falta de equilíbrio e fraqueza. Além do mais, a gente não consegue mais carregar objetos pesados. Quando as lojas oferecem a entrega das compras em domicílio, fico muito grata. Não consigo mais carregar três ou quatro quilos por mais de duas quadras... Não é luxo, é o peso da idade mesmo!
Então, quando dou carona para minhas amigas faço questão de entregá-las em casa, porque a maioria está mais ou menos titubeante e pode sofrer um acidente enquanto acabam de chegar, se as deixar na esquina. E sempre aguardo que a pessoa entre em casa com segurança. Gentileza deve ser completa e não pela metade.
Muita gente não atenta para um idoso, que caminha pelas calçadas trocando os passos com dificuldade, e trombando algumas vezes com os capiaus, que fazem rodinhas de fuxico nas esquinas... Atrapalhando o fluxo de gentes...
Pois é minha gente, já fui jovem e já andei rapidinho pelas calçadas e nunca atentei para as dificuldades dos mais fracos, dos mais velhos. Hoje já sinto o peso da idade até para ir ao Banco, que fica lá na esquina... e  no Caixa eletrônico demoramos mais, porque a gente não enxerga direito, as mãos não acham o cartão e apertamos os botões errados na hora de digitar a senha... E tem que começar toda a operação de novo... E o cidadão impaciente de trás fica suspirando como se pensasse: “Por que essa velha demora tanto?”
Só que eu não me importo, não fico afobada porque tenho certeza absoluta que ele ficará igual a mim, um dia...
Velhice é foda mesmo!
Mas vou levando.

Mirandópolis, novembro de 2017.
kimie oku in



quinta-feira, 2 de novembro de 2017

      Brincadeira
     
     Como uso muito o face book, notei que os usuários em sua maioria ignoram totalmente a pontuação em suas postagens. Muitas vezes, tenho que ler em voz alta as observações que fazem nos meus posts, para entender de fato o que tentam me passar, colocando a pontuação que não aparece.
     Ponto final, vírgulas, interrogação, exclamação são sinais tão úteis para expressar nossos pensamentos em textos, mas a maioria ignora. E o estranho é que todos sabem da existência deles e de sua serventia... Todos aprenderam em algum momento na escola, que é necessário pontuar as frases para ser devidamente compreendido pelo leitor.
     Então, só por brincadeira farei hoje um texto sem nenhuma pontuação, para ser lido num fôlego só. Quem usou essa fórmula foi o famoso colombiano prêmio Nobel de Literatura Gabriel Garcia Marquez em “Cem anos de solidão”, que li várias vezes e que possui frases que ocupam páginas e páginas, sem uma pontuação...
É um desafio de verdade!  
Sugiro que leiam o meu texto em voz alta sem parar e depois coloquem as vírgulas e os pontos onde acharem conveniente.
     Começando:
“Estou ouvindo o Ângelus que enche a cidade todos os dias com a Ave Maria vindo da igreja local pela segunda vez no dia porque ao meio dia também aconteceu a mesma coisa antigamente isso era feito pela rádio clube local às dezoito horas e segundo o livro tombo da paróquia que tive a oportunidade de pesquisar sobre o padre Epifânio essa pregação feita pelo pároco um dia foi cortada por desentendimentos políticos entre o padre e os donos da estação local mas enquanto durou os católicos ficavam de mãos postas e persignavam-se onde quer que se encontrassem esse costume também acabou morrendo assim como muita coisa bonita foi esquecida como os sinos da Igreja que se mantiveram silenciosos por décadas e décadas não sei por que razão e que voltaram a bimbalhar há poucos anos com os novos padres que assumiram a paróquia agora com o controle instalado lá na igreja ninguém mais tem que ficar pendurado nas cordas para tocar os sinos basta apertar um botão e os sinos tocam lindamente sem falhar mas sempre que escrevo sobre sinos é inevitável citar uma experiência vivenciada pelo filósofo norte americano Joseph Campbell que estudou sobre Mitos ele disse que sempre que ia a Paris gostava de visitar a Catedral de Chartres onde se sentia realmente em paz como aparecia sempre lá o zelador da igreja o convidou para subir na torre e tocar os sinos e ele foi e lá ficou por um longo tempo pendurado nas cordas suspenso no ar indo e vindo completamente emocionado enquanto a igreja toda vibrava em sons graves dooom doooom doooom dooooom disse que foi uma das experiências mais marcantes de sua vida e falando em sinos os nossos foram doados por gente que construiu a nossa cidade o maior que pesa 530 quilos foi doado pela senhora Cunha Bueno e o menor de 410 quilos pelos irmãos Santa Rosa de Pirajuí que tinham propriedades agrícolas em Mirandópolis esses sinos fundidos em Campinas pela firma Viúva Viscardi e Filhos trazem os nomes de seus doadores no maior está gravada a função de um sino afugento as tempestades congrego o clero reúno os fiéis decoro as festas e pranteio os mortos.
Acho que é bom começar outro parágrafo porque fui dormir e hoje como é dia de finados fui ao cemitério onde repousam os meus pais levar flores e oração  já na entrada vi os mercadores de velas e flores que são bem convenientes para quem se esqueceu de comprar essas coisas mas um rapaz japonês perguntou se poderia cuidar do meu carro em Lavínia também tem isso achei o fim da picada vi também venda de cervejas e outras bebidas que achei um absurdo ninguém vai visitar os mortos e tomar cerveja encontrei uns conhecidos de meu cunhado e alguns familiares o cemitério estava todo florido de flores de plástico e de seda e algumas naturais que os zeladores condenam por causa dos mosquitos da dengue da zika e  chikungunha é assim  que se escreve o vento estava forte e era difícil manter as velas acesas será que as chamas das velas realmente iluminam os caminhos das almas ou é apenas um recurso para consolar os vivos com essa intenção de iluminação percebi que havia túmulos cobertos de coroas de flores sinal de que o finado partira recentemente fui ao túmulo de um familiar e percebi que ninguém esteve lá, nenhum filho nem a viúva e isso me deixou incomodada sete anos se passaram e ele é uma página virada e esquecida como a memória das pessoas é rasa e desrespeitosa não lembrar de quem lhe deu a vida vai se lembrar de quem lhe ajudou um dia ah ingratidão ingratidão funda e inaceitável o homem é uma caixa de pandora com segredos inaceitáveis e assim matutando sobre a ingratidão humana voltei para casa e terminei esse texto sem pé nem cabeça e sem pontuação nenhuma será que alguém vai me entender ou serei mal interpretada por falta de sinais”
E fim!
Mirandópolis, novembro de 2017.
kimie oku in