sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020


            Estratégia 作戦 (sakusen)
    Tudo na vida é aprendizagem.
     Os tombos que a gente dá, as cassetadas que a gente leva são lições para a aprendizagem.
     Passei um dia incomodada porque alguém censurou as minhas crônicas no Grupo Caligrafia e Kanji. Cheguei a pensar em deixar o Grupo, mas graças ao forte apoio dos membros decidi ficar, e continuar com as postagens aqui.
     E de repente me lembrei de Wabi Sabi/侘び寂び, que publiquei acerca da aceitação da vida, com toda a sua beleza e todas as imperfeições. 侘び寂び deixa o nosso cotidiano mais leve, porque através desse sentimento aceitamos a brevidade da vida, das coisas que nos cercam, das pessoas que amamos... Aceitar o inexorável não é ser derrotista, é encarar tudo com tranquilidade, e enxergar a vida e a natureza como elas são, só harmonia.
     Posto isto, tenho que agradecer à pessoa que me censurou, porque despertei para um fato muito importante, que o Grupo é de Caligrafia e Kanji. E o mui gentil amigo Kyotaro Tsukui comentou certa vez que, é possível estudar Nihongô/日本語 e ao mesmo tempo conhecer a História/ 歴史(rekishi) oficial do Japão. E eu tenho experiência nesse assunto. Enquanto estudava Nihongô/日本語 li as biografias dos mais famosos samurais/ japoneses. Takeda Shingen/武田信玄, Minamoto Yoritomo/ 頼朝Oda Nobunaga/織田信長, Toyotomi Hideyoshi/豊臣秀吉 e Tokugawa Ieyasu/徳川家康. Biografias/伝記 (denki) superficiais, mas que me deram uma visão geral de como foram esses heróis japoneses.
     Então para escapar das possíveis censuras, passarei a introduzir sempre que possível, a caligrafia japonesa nos meus textos. Assim contentarei a gregos e troianos, né? Só que é muito mais trabalhoso para mim: teclar o Português depois teclar o Japonês e voltar ao Portuga, ao Japa dezenas e dezenas de vezes...
Mas descobri uma imensa vantagem nisso! Meu sonho sempre foi escrever as crônicas em Nihongô também. Agora vou praticando... Quem sabe, devagarinho chego lá? Sonho quase impossível, que poderá se realizar graças à intervenção de uma censura. Isso é Wabi Sabi! Aceitar a crítica, reposicionar as baterias e procurar outra estratégia/. Vou continuar com as crônicas usando temas e palavras japonesas escritas em Japonês. E irei passando minhas experiências aprovadas pela Profª de Japonês Nair Kazue Gashu, e opiniões de cunho sócio, político e cultural. Não sei escrever ou pensar de outra forma. Mesmo porque acho impossível estudar uma Língua sem conhecer o lado sócio, político e cultural de seu povo. Se alguém souber, me ensine.
Com essa crônica, começa uma nova fase para mim.
O que acharam do meu作戦 (sakusem ou estratagema)?
Mirandópolis, fevereiro de 2020.
kimie oku in



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020


               日の丸 Hinomaru
               
         Bandeira do Brasil,
         ninguém te manchará!
        Teu povo varonil
        isso não permitirá!

Trecho de uma canção que ensinei as crianças a cantarem nos meus idos de professora. Era jovem e tinha paixão pelas coisas da terra, do Brasil. Havia respeito e veneração pelos símbolos da Pátria, e tentei passar alguma coisa assim para os educandos. Ensinei que no país temos três símbolos nacionais, a Bandeira, o Hino Pátrio e o Selo Nacional. E cobrava dos alunos para que não se esquecessem.
O tempo passou e tudo mudou. Banalizaram a Bandeira, o Hino é cantado mascando chicletes, e o Selo está carimbando negociatas escusas por nossos “honrados políticos”.
Decepcionada? Demais!
A Bandeira é um emblema para distinguir países ou nações. Ela sempre foi considerada o símbolo máxima de um povo, e tratada com respeito e certa veneração. Não se hasteia a bandeira por motivos torpes, banais e nem por brincadeira. Sempre exige solenidade.
Hoje tudo é diferente. As pessoas usam a Bandeira nacional como um objeto qualquer, se enrolam nela como se fosse apenas um pano barato e todo mundo aceita. A Bandeira ficou popular? Ficou! Mas, gostaria que fosse tratada com mais respeito.
Descobri há pouco no grupo Caligrafia Japonesa e Kanji que, a Bandeira do Japão não é um retângulo branco com um círculo vermelho no centro. De verdade mesmo, é um retângulo branco com um círculo carmesim ao centro. Isso significa que o vermelho é mais forte. Sinceramente eu não sabia...
E pensando bem, percebi que os japoneses não usam bandeiras do Japão em tecido para saudar outras pessoas, mesmo que autoridades visitantes. As bandeirinhas são sempre de papel pregada numa varinha para segurá-las. De tal forma que descartá-las não se constitui num problema. O tratamento é bem diferente. Bandeira de tecido só nos mastros e junto de lugares oficiais.
Mas o quê significa aquela bola carmesim no fundo branco? Significa o Sol, pois conforme uma lenda, o Japão é o país onde o Sol nasce e o Imperador descende de Amaterasu, a Deusa do Sol. Lendas... Apenas lendas... O maior símbolo do Japão nasceu de uma lenda! Nada tem de concreto nessa história, e eu acho isso muito estranho... Inacreditável.
A primeira bandeira com um sol no centro foi ofertada ao Imperador, que partiu para enfrentar os mongóis por Nichiren, um sacerdote budista que acreditava na divindade do Imperador.  E em 701, o Imperador Mommu a teria usado, assim como o Xogum Tokugawa Ieyasu no século XIII.  Ela passou a ser usada com mais frequência a partir da Era Meiji, que modernizaria o Japão. E somente em 13 de agosto de 1999, foi adotada oficialmente junto com o Hino Nacional Kimiga yo. A bandeira japonesa é conhecida popularmente como Hino Maru, bandeira do sol nascente, mas oficialmente se chama Nisshoki ou bandeira do sol.
Há uma versão de Hinomaru, que foi adotada pela Marinha Japonesa. A diferença é que do círculo carmesim saem 16 raios sobre o fundo branco. É muito bonita e marcante. Infelizmente ela acabou se tornando símbolo de guerra, porque foi usada pelo Exército, em suas investidas contra a Rússia, a China e a Coréia do Sul. E desventuradamente, os soldados japoneses cometeram atrocidades por onde passaram, que até hoje essa bandeira é tão odiada pelos russos, chineses e coreanos tanto quanto a suástica o é pelos judeus do mundo inteiro... A marca que ficou...
Pelo Tratado de Paz de São Francisco assinado em 1949 pós guerra, entre o Japão e as Forças Aliadas, essa Bandeira do sol nascente foi banida. Entretanto, grupos radicais contrários à presença estrangeira no Japão, gostam de usá-la em seus protestos e manifestações. Acho que é mais para provocações...
O que penso disso tudo?
É bonito ter um emblema para definir um povo, uma nação, assim como antigamente as tribos usavam totens e máscaras... Mas, a bandeira por ser emblemática nunca deve ser usada para arrasar povoações, destruindo vidas preciosas. As vidas dos inimigos são preciosas para seus familiares, assim como são preciosas as de nossos soldados e familiares. Então, pra quê serve a bandeira? 
Para identificar um povo que trabalha, que constrói, que produz. A imagem mais bonita que temos da bandeira brasileira tremulando, com certeza é a de Ayrton Sena em suas voltas vitoriosas. Saudades e gratidão imensa pelos momentos gloriosos que nos proporcionou, Ayrton Sena!
Pela bandeira Hinomaru, membros da Shindo Renmei quiseram matar um Cabo de Polícia aqui no Brasil. E mataram seus conterrâneos, movidos por uma fé cega e destruidora. Fanatismo exacerbado que tomou conta daquela gente. Por um pedaço de pano... Então, que dizer das guerras?
Guerra? É a maior tragédia que o homem inventou. Numa guerra nunca há vitoriosos. Só vencidos. Só destroçados, só arrasados... Então, qual seria a solução?
“Imagine que não houvesse nenhum país.
Não é difícil imaginar.
Nada por que matar ou morrer.
E nenhuma Religião também.
Imagine todas as pessoas
vivendo a vida em paz.”  
John Lennon (1940/1980)
Uma vida é mais preciosa que qualquer bandeira do mundo.
Bandeira é criação do homem.
E vida é obra de Deus!

Mirandópolis, fevereiro de 2020.
kimie oku in
 

sábado, 22 de fevereiro de 2020

       O bambu

Por ter ascendência nipônica, cresci em sítios, onde havia moitas de bambu. Anos mais tarde, soube que antigamente os japoneses do Japão se refugiavam durante os terremotos, nas moitas de bambu. As touceiras do bambuzal formam um enraizado todo trançado como uma rede bastante firme no subsolo, que os terremotos mais comuns não conseguem desmanchar. E assim, serviam de refúgio e proteção, quando os cataclismos chegavam e, rachavam o chão em valetas assustadoras.
Os imigrantes japoneses chegando ao Brasil plantaram muitos bambuzais, mesmo sabendo que aqui não ocorriam essas tragédias.
Ah! A sombra fresca dos bambuzais... Mas, a serventia deles para nós estava ligada à alimentação. Brotos de bambu foram muito consumidos por todas as famílias de imigrantes naqueles tempos difíceis, e de alguma forma sustentou a nossa saúde, fornecendo-nos fibras ricas em proteínas vegetais, aminoácidos, cálcio, fósforo e vitaminas. Além disso, dizem que o consumo de bambu pode prevenir doenças cardiovasculares e o câncer.
Todos os pequenos proprietários rurais japoneses tinham moitas de bambu no quintal. As varas flexíveis eram utilizadas para se fazer cestas para colher frutas, verduras e ovos; e balaios para a colheita do algodão. Os próprios japoneses confeccionavam essas cestas e esses balaios, que foram muito úteis naquela época. Mais tarde, as longas varas de bambu por serem ocas, foram utilizadas como canaletas para levar água às galinhas das granjas. Ainda não existiam esses cochos de plástico, que facilitaram bastante o trabalho do granjeiro. Até hoje, as varas ainda são usadas para a pescaria.
Atualmente são raras as pessoas que conseguem confeccionar balaios e cestas. E os sítios onde há moitas imensas de bambu com certeza, já foram pertences aos japoneses. Nos tempos atuais, em que o homem devastou todas as florestas, acabando com as árvores que forneciam madeiras de lei como jequitibá, aroeira, cedro, peroba, cabreúva e outras, a alternativa que restou foi o bambu. E tem gente especializada analisando essa madeira leve e reta, que está sendo largamente utilizada na confecção de móveis, e na edificação de prédios resistentes a terremotos.
O bambu é muito aproveitado nos países orientais, como a China, a Coréia e o Japão. Pesquisando descobri que existem cerca de 1250 variedades de bambu, que podem ser lenhosos ou herbáceos. Há bambus de diversas cores, que vão do amarelo, verde, mesclado de verde e amarelo, roxo, marrom e até vermelho. Eu só conheço os verdes e os verde/amarelo. Cada tipo tem a sua serventia.
Os brotos de bambu são muito utilizados na culinária oriental  consumidos como saladas, ou refogados com frango, com carne de porco, em yakisobas... Há uma infinidade de pratos, e até são aproveitados como picles, que são deliciosos.
Os sábios da China e do Japão tiraram muitas lições observando o desenvolvimento de um bambuzal.  A qualidade mais decantada é a flexibilidade de seus galhos. Por serem flexíveis, os galhos não se quebram facilmente, como os galhos de outras árvores conhecidas. Os homens também têm que ser flexíveis para conviver com as diferenças nesse mundo. Outra qualidade que se destaca é que o bambu só se desenvolve em touceiras, com galhos se apoiando em outros galhos, formando um emaranhado difícil de derrubar. Se crescesse sozinho, não teria forças para vencer os ventos e os temporais, mas em formação de moitas conseguem parar e vencer os vendavais.  O homem sozinho nada é, nada pode. Mas, em grupo, unidos no mesmo ideal, podem conquistar o mundo. Além disso, o bambu cresce sempre para cima, para o alto, buscando a luz do sol e suas varas chegam a comprimentos incríveis. O homem deve também ter seus objetivos, e procurar sempre crescer, para se aperfeiçoar.
Como o bambu tem um talhe elegante, com talos finos e folhas longas e delicadas, foi muito usado como modelo nas pinturas zen. Nas pinturas de sumiê, ou a carvão, o motivo bambu está sempre presente, assim como nas porcelanas orientais, famosas no mundo inteiro. Eu mesma tenho porcelanas com motivos de bambu, e recentemente ganhei um joguinho de saquê com desenhos de bambu. Eu os aprecio muito.
O que dizer mais? Ah! Os primeiros instrumentos musicais devem ter sido feitos de bambu, por causa da sonoridade natural que há nos canos ocos. Há uma flauta de bambu, o shakuhachi japonês, feito de um bambu rústico, que tem uma sonoridade de arrepiar. Ele reproduz com perfeição os sons do vento, das águas do rio, da chuva... Aprecio muito o shakuhachi.
Gosto de ficar perto de bambuzais, porque eles têm uma sonoridade diferente. Os galhos se sacodem agitados e gemem gué, gué, gué... quando há vendavais. Mas quando tudo está quieto, parece que eles sussurram ou cochicham segredos... É lindo! Repousante.
E para encerrar, nada melhor que isso:
“Quisera que a minha vida fosse igual a uma flauta de bambu: simples, reta e plena de música”
Quem dera!
Mirandópolis, fevereiro de 2013.


kimie oku in
    http://cronicasdekimie.blogspot.com.br/

        Observação: Reescrito em 20 de fevereiro de 2020

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020


Bon Odori
          Há muitos e muitos séculos, existiu um Monge budista na Índia, chamado Mokuren que tinha um poder extraordinário. Ele possuía uma visão transcendental e podia ver o que acontecia em qualquer dimensão.
       Quando sua bondosa mãe faleceu acreditava que ela estaria no Nirvana, junto de Buda. E se concentrou para visitá-la e confirmar sua suposição. Mas... qual não foi sua surpresa ao constatar que ela estava no Mundo dos Gakidos, ou Demônios famintos...
         Desolado ao ver a mãe nessa condição, resolveu levar comida para ela. Mas, tudo que ela tentava consumir se transformava em fogo e lhe queimava a boca...  Mokuren se retirou e orou bastante para o Buda aliviar o sofrimento de sua querida genitora. Então, o Buda lhe disse para recolher todos os Monges do Mosteiro no dia 15 de julho e os mantivesse enclausurados o dia todo, sem sair para não pisar nos insetos e nas flores. Um dia inteiro sem pisar nos insetos e nas flores... Buda amava demais a natureza...
         Mokuren convidou os parceiros para prestar uma homenagem a sua mãe e fez tanta comida, que os manteve ocupados em comer e descansar o dia todo. Ninguém se lembrou de sair do Mosteiro.
         Quando o dia terminou, sua mãe apareceu tão linda e luminosa como um chochin (lanterna japonesa usada nas festas) flutuando leve e feliz... Encantado, Mokuren a seguiu e começou a dançar de felicidade. Os monges também fizeram uma grande roda e saíram dançando felizes... Foi assim que surgiu o Bon Odori, ou a Dança para os Mortos.
De acordo com os preceitos budistas, os espíritos dos mortos têm três dias para revisitar os vivos. É o Obon, que significa o Dia dos Finados, dos Mortos. No Japão, é comemorado em agosto. Nesses dias as famílias retornam aos vilarejos, e fazem uma romaria aos túmulos da família levando flores, incensos e comida para os antepassados ali enterrados. A comida tem um significado doloroso: É um consolo espiritual para aqueles que morreram de fome em épocas de guerra e pós guerra...
Além dessa romaria, os familiares se visitam para rever parentes que ficaram morando na terra natal. É época de recordar o tempo passado, de relembrar os membros que já partiram, de lhes prestar uma homenagem com uma celebração religiosa e jantares em família.
No terceiro dia, antes que os espíritos retornem ao seu mundo espiritual, realiza-se uma grande dança. É o Bon Odori, que tem a finalidade de saudar os antepassados que já partiram para o paraíso. E ao anoitecer, todos se juntam à beira de rios e riachos para lançar uns barquinhos de papel com velas acesas. A intenção é iluminar o caminho de volta dos espíritos. Assim é em algumas partes do Japão, até hoje.
O Bon Odori já faz parte do calendário festivo de todas as cidades, onde ainda residem alguns remanescentes dos imigrantes japoneses, que para cá vieram há mais de um século.
Aqui é cultivado como uma festa pagã e faz a alegria de muita gente, descendentes de japoneses, ou não.
Daquela lenda do Monge Mokuren, ainda estão preservados alguns costumes: a imensa roda de pessoas dançando ao som de taikô e shakuhachi, os happi, os chochin coloridos e a comida típica japonesa.  A comida se compõe de udon quentinho, que é uma deliciosa sopa especial com macarrão branco, sushi e doces...  Só que não tem mais a conotação religiosa que tem no Japão. É uma festa simplesmente.
A música que repete sempre Yaren soran, soran, hai, hai  provoca uma reação interessante. Parece que as pessoas estão realmente perguntando onde estão os arenques que os pescadores buscam... Mas, todos dançam ao som desse Soran Bushi sem saberem o significado da música, da dança, dos gestos... Importa é dançar, e se divertir.
Mesmo os nikkeis não sabem o significado do Obon odori. Menos ainda os brasileiros, pois é encarado mais como uma grande festa de origem japonesa.
Acredito que, se Mokuren pudesse retornar à Terra e visse o nosso Obon odori, ficaria encantado de ver a diversidade de pessoas, de ver as mudanças do significado dessa celebração, de ver como uma dança sua se tornou universal.
E viva o Bom Odori!
Eternamente!
Mirandópolis, julho de 2017.
kimie oku in






          植民地 - Shokuminchi
   Após abordar sobre assuntos terríveis como a Guerra e a Shindo Renmei, quero me redimir escrevendo sobre a coragem, e o empenho em vencer dos primeiros imigrantes japoneses no Brasil.
      A Imigração Japonesa começou com a chegada do navio Kasato Maru em 1908. A razão primeira para os japoneses se aventurarem pelo mundo foi a fome.  O Japão tinha poucas terras cultiváveis, por ser formado de ilhas montanhosas, que não possibilitavam o cultivo do arroz, alimento básico do povo. A população crescia muito pois não havia planejamento familiar, e não havia comida para todos. Então o Governo começou a acenar com programas no Exterior, oferecendo vantagens como colônias essencialmente japonesas, para manter os costumes e tradições aos que aceitassem partir. Além disso, propagaram que no Brasil havia uma árvore que produzia dinheiro em pencas. Era o cafeeiro, que estava em alta na época. O Brasil seria o maior produtor de café do mundo.
Muitas famílias vieram iludidas, com o propósito de trabalhar dez anos e retornarem à Pátria distante. Mas...Muito poucas famílias conseguiram voltar...
Quando aqui chegaram, tiveram que enfrentar situações inomináveis. Minha avó materna me contou que chegando aqui, foram encaminhados para uma fazenda na região de Araraquara.  A Fazenda estava sofrendo por falta de mão de obra, pois os escravos africanos tinham sido alforriados, e não havia quem fizesse o trabalho duro da roça. Os recém chegados japoneses foram colocados para morar na Senzala, que era um barracão imenso sem conforto nenhum, sem divisórias, sem nada... Dezenas de famílias foram alojadas ali. E alimentadas com abóbora cozida na água e posta em cochos, como esses cochos de madeira que eram usados para tratar porcos... Os japoneses comem arroz, mesmo que seja só arroz com sal, mas arroz de verdade. E eles não aguentavam de fome e desejo de comer arroz. Então de madrugada, quando na Casa Grande se apagavam as luzes, todos os homens saíam com embornais e iam para a roça colher cachos de arroz, que estava madurando no brejo. Eles colhiam cachos aqui e ali para não dar na vista. Esse arroz era socado no pilão e depois cozido. E de manhãzinha eles comiam bolinhos de arroz com sal... Foi assim que sobreviveram. Tempos heroicos... Se eles vieram livres para trabalhar e foram assim tratados, imaginem o que sofreram os africanos...
Muitas famílias pelejaram bastante e conseguiram comprar um pedaço de terra. Mas, tudo era floresta e então tiveram que derrubar imensas árvores, para começarem a plantação de café. E tudo era feito em conjunto. Porque era impossível vencer a mata sozinho. Então se formaram Colônias de Imigrantes, que conversavam em japonês e mantiveram os costumes da terra natal.  Eram os Shokuminchis ou Colônias de Japoneses. A vida se tornou mais animada.
Apesar de ter sido terrível para se assentarem, as famílias foram se agrupando, trabalhando incansavelmente e se ajudando, facilitando a vida de todos. Eu me lembro que no Bairro União em Lavínia (eu tinha apenas 4 anos!) havia jogos de beisebol e todos se reuniam aos domingos para as disputas; havia ainda meninos que praticavam lutas marciais não tenho certeza se era taikondô; havia uma escolinha de língua japonesa, que meus irmãos frequentavam, e mais uma Escola brasileira cheia de alunos japoneses e a professora era brasileira...
Os japoneses provaram ser gregários desde o começo, e tudo era feito consultando uns e outros. Assim foi que nasceram os shokuminchis/colônias e mais tarde os kumiais/cooperativas. Em todas as regiões onde havia colônias de japoneses, havia cooperativas para recolher a produção agrícola, que negociavam melhores preços e ajudavam os produtores. E os imigrantes plantaram muitas verduras e legumes. Até hoje grande parte dos produtores de frutas e verduras no Brasil é de origem japonesa. Lembro que em tempos difíceis para todos, nunca faltou um legume, uma verdura, uma fruta em casa. E nem ovos, nem frangos e nem carne de porco. E éramos mais pobres que pobres... Tínhamos poucas roupas e poucos calçados, nenhum conforto. Mas, tínhamos saúde para dar e vender.
Por se manter unida, a colônia conseguiu preservar muitos costumes japoneses. Todas as casas exibiam as fotos do Imperador Hiroíto e da Imperatriz Nagako em quadros na sala de visita. Uma foto do navio Yamato, couraçado de guerra que afundou com 3055 tripulantes e jovens marinheiros. Também tínhamos um quadro com a estampa dos Deuses da Fortuna, da Pesca e da Agricultura. Tudo isso era tratado com o maior respeito. A religião era Xintoísta que reverenciava o Deus Kamisamá e  Budista, para seguir os preceitos do filósofo Buda, e tínhamos o Butsudam e o altar de Kamisamá.
No dia do aniversário do Imperador Hiroíto, havia uma grande festa na cidade. Era o Undokai, muito concorrido. Todas as famílias compareciam, carregando vasilhas cheias de comida preparada na madrugada... Na abertura hasteava-se a Bandeira do Japão e cantava-se o Hino Nacional Japonês, "Kimigayo wa, Chiyoni yachiyoni, Sazare-ishino Iwao to narite Koke no musu made" significando: Que o  Imperador dure até que os pedregulhos se transformem em rochas cobertas de musgos. Ou seja eternamente.... Havia competições variadas de corrida, de saltos e outras brincadeiras. Havia a participação por categorias e todos eram premiados. Ganhar um caderno era o supra sumo naqueles tempos difíceis! Música japonesa enchia os ares e, os manda chuvas faziam discursos e mais discursos.  A melhor hora era a da comida. Todo mundo estendia os lenços de seda no chão e abriam as marmitas, que eram compartilhadas com os amigos, parentes e vizinhos... Os imigrantes eram pobres em sua maioria mas procuraram sempre preservar a língua, a música e a cultura japonesa.  Saudades.
Desde o início da chegada de japoneses já se passaram mais de cem anos, e certos costumes ainda se mantêm. Os japoneses trouxeram para o Brasil o exemplo de dedicação ao trabalho, o trabalho em grupo, o Clube Nipo ou Kaikan, os Templos Budistas, a Seichonoiê, as Cooperativas, o Beisebol, as lutas marciais como Judô, Kendô, Taikondô, as Escolinhas de Língua Japonesa, o Bom Odori, a deliciosa Culinária e a Língua, que hoje todo mundo quer aprender.
Diante de tudo isso, a Shindo Renmei foi um grande e lamentável engano que nunca deveria ter ocorrido.
Houve muitas vantagens que os japoneses trouxeram para o Brasil, e acredito que contribuíram bastante para o progresso e bem estar de todos.
E Banzai Japão!
E Banzai Brasil!

Mirandópolis, fevereiro de 2020.
 kimie oku (nipo/brasileira) in


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020


臣道連盟Shindo Renmei 

    
     A Segunda Guerra Mundial foi entre os países Aliados: Estados Unidos, Inglaterra, França e Rússia contra os países do Eixo: Alemanha, Itália e Japão. O Brasil estava fora dessa briga internacional, mas os alemães afundaram quatro navios mercantes brasileiros e não deu outra, o nosso país se alinhou com os Aliados. Ora, estar com os Aliados significava estar contra o Japão.
     E o mais estranho é que essa guerra lá no Pacífico provocaria uma guerra entre os imigrantes japoneses radicados aqui no Brasil.
   Inicialmente afetaria bastante a relação dos brasileiros e dos japoneses aqui residentes, porque o Brasil e o Japão estavam em posições contrárias. Além disso, muitos jovens foram convocados pelo Império Japonês, para os campos de batalha. Eles partiram para a terra natal, deixando aqui muitas famílias apreensivas. O medo pairava no ar entre os japoneses.
E o Presidente Getúlio Vargas baixou Leis duras restringindo a liberdade dos imigrantes italianos, japoneses e alemães: era proibido conversar na língua materna, eram proibidas reuniões sob qualquer pretexto, suas armas foram confiscadas e a polícia estava sempre de olho para evitar manifestos e levantes.
Um conflito mais sério ocorreu em Tupã, interior de São Paulo entre japoneses e policiais brasileiros, que quase resultou no assassinato de um Cabo.  Havia uma festa e policiais foram conferir. O Cabo que comandava o grupo mandou os japoneses encerrarem a reunião, pensando que estavam tramando algo. O Cabo recolheu a bandeira do Japão e a pisoteou com botas sujas... Os japoneses ficaram furiosos. Foram à Delegacia com intuito de matá-lo, mas foram presos. A comunidade nikkei ficou  revoltada pelos maus tratos dispensados aos japoneses. Já havia acontecido muitos incidentes a propósito do Regime de Exceção... Foi então que o senhor Junji Kikawa de 67 anos, ex Coronel do Exército Imperial Japonês, resolveu criar em 1942 uma Associação de caráter nacionalista, lá em Tupã... Essa Associação recebeu o nome de Shindo Renmei, ou Caminho dos Súditos (do Imperador) e seu objetivo era unificar a Colônia Japonesa em torno do Yamato Damashii, ou Espírito Japonês. Tinha o objetivo de fortalecer a colônia.
Inicialmente teve o propósito de unir os mais de duzentos mil japoneses que aqui moravam. Todos os japoneses queriam que o Japão ganhasse a guerra, pois era a sua Pátria, sua terra natal. Mas, toda a comunicação com o Japão estava proibida, não havia cartas nem jornais para relatar o que estava acontecendo do outro lado do mundo. Agências americanas e brasileiras começaram a divulgar que o Japão havia se rendido após os ataques a Hiroshima e Nagasaki. Os chefes da Shindo Renmei não admitiram essa derrota e passaram a soltar panfletos que pregavam a vitória do Japão... Alegavam que as notícias eram mentirosas e quem acreditasse nelas era executado. Japoneses matando japoneses! Seus membros jamais duvidaram da vitória do Japão. E quando o Imperador Hiroíto fez a declaração de rendição em 1945, eles não acreditaram e começaram a divulgar notícias falsas sobre o fim da guerra. Acredito que o Imperador e os Dirigentes lá do Japão nada sabiam sobre a ação da Shindo Renmei, e estavam inocentes de seus crimes... Mas aqui formaram-se dois grupos, o Kachigumi  comandado pela Shindo Renmei que acreditava na vitória do Japão e o Makegumi que sabia que o Japão perdera a guerra.  O poder de coerção da Associação era tão forte que quase 90% acreditava em suas mentiras. Diziam que os americanos estavam invertendo a situação, que o Imperador mandaria navios buscarem os imigrantes para voltarem ao Japão. Muita gente vendeu seus bens a preço de banana e foram para Santos, à espera desse navio, que nunca chegaria... 
Lembro que nessa época se falou muito que Fulano era “haisen”... Haisen era o termo que classificava os makegumi, porque significa “perder a guerra”. Inicialmente papai foi dos kachigumi e condenava os haisen... Mas, percebeu que estava errado. Enquanto isso o grupo da Shindo Renmei passou a executar os “haisen” ou makegumi que não queriam aderir ao grupo. Japoneses matando japoneses por causa de um fanatismo exacerbado. Na época havia muitos japoneses criando o bicho da seda, que era exportada para os Estados Unidos. Então, os fanáticos da Shindo Renmei passaram a atacar as firmas que recebiam os casulos de seda, e os enviavam para São Paulo. Em Pereira Barreto e em Guaraçaí botaram fogo nessas instalações, alegando que o fio de seda era usado para confeccionar os paraquedas para invadir Japão...  A violência e os atos terroristas aconteceram em Bastos, Osvaldo Cruz, Marília, Tupã, Penápolis, Cafelândia, Araçatuba, Guaraçaí e na capital São Paulo. Os tokottais chegavam nas casas das pessoas que comentavam sobre a derrota do Japão, e as executavam com tiros de revólver ou com espada, chamando-as de traidores... A coisa foi num crescendo incontrolável durante 13 meses, que o governo de Getúlio teve que intervir. Mais de 30 mil imigrantes foram presos, pois haviam assassinado 23 e ferido 147 patrícios...
Foi a página mais desonrosa da história dos Imigrantes Japoneses no Brasil e até hoje, ninguém gosta de comentar sobre isso. Alguns seriam deportados para o Japão, mas isso nunca aconteceu. Os chefes da Shindo Renmei ficaram presos por dez anos, e mais tarde anistiados por Juscelino Kubitschek.
Há vinte anos, o jornalista Fernando Moraes produziu um livro cheio de depoimentos de gente que sofreu ou foi vítima da Shindo Renmei. O livro se chama “Corações Sujos” e foi publicada pela Cia das Letras em 2000. Sua leitura é dolorosa demais para qualquer descendente de japoneses. Eu me lembro que um dicham parente nosso leu esse livro quando tinha uns oitenta anos, e chorou muito...
Tudo isso foi o resultado de idolatria exacerbada que os antigos japoneses cultivaram ao longo dos séculos. Idolatria para com o Imperador, que diziam ser divino. Foi necessária uma guerra terrível, foi necessário o holocausto de Hiroshima e de Nagasaki para o povo tirar as vendas dos olhos.
Japão atualmente é uma Monarquia democrática e o Imperador com poderes limitados é o Símbolo de Unidade do Estado e do Povo. Mas quem governa mesmo é o Parlamento. Seus representantes são eleitos pelo povo.
O que Japão aprendeu com a guerra?
     Que nenhum país pode viver isolado.
Que a guerra é o pior caminho para resolver problemas de relações internacionais.
Que o Imperialismo absoluto não é capaz de tornar um povo feliz.
E que a divindade era pura fantasia.

Mirandópolis, fevereiro de 2020.
kimie oku in






quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020


             
       戦争  - Guerra!

Não gosto de guerras, mas tenho que abordar sobre a participação do Japão na Segunda Guerra Mundial, porque a próxima crônica tem a ver com guerras...
A Segunda Guerra Mundial começou em 1939, com a invasão da Polônia pela Alemanha. A Alemanha era comandada por Hitler, um austríaco que se infiltrara no Exército alemão e chegou à Presidência do país. Hitler havia anexado a Áustria sua terra natal, atacara a Tchecoslováquia e agora invadira a Polônia. Porém, seus vizinhos franceses e ingleses preocupados com esse movimento expansionista da Alemanha, partiram para o ataque, para conter o poderoso exército alemão. E logo, com a adesão da Rússia, dos Estados Unidos e de outros países acabou se tornando um conflito internacional.
Era a Segunda Guerra Mundial!
Contra os Países do Eixo composto pela Alemanha Nazista de Hitler, Itália Fascista de Benito Mussolini e Japão de Monarquia absoluta do Imperador Hiroíto. Todos esses três países ambicionavam expandir seus territórios. Japão estava tentando conquistar territórios na China e na Coréia. Hitler queria ter a Europa toda sob seu comando...
Do outro lado estavam os Aliados Inglaterra, França, Rússia e Estados Unidos. O Brasil aderiu a essa Guerra, porque os alemães afundaram quatro navios mercantes brasileiros. Nessa altura, vários países se envolveram, temendo Hitler e Mussolini. A Segunda Guerra Mundial seria a maior tragédia perpetrada pelos humanos contra a própria humanidade.
Com o posicionamento do Brasil contra os países do Eixo, estava declarada a guerra contra o Japão. Isso afetou demais os duzentos mil japoneses radicados aqui. Muitos jovens maiores de idade foram convocados, para se alinharem ao Exército Japonês... Convocados, voltaram ao Japão para defender a pátria distante. Foi um frisson e a agitação só tendia a crescer. Os japoneses imigrantes torciam pela vitória do Japão, mesmo morando no Brasil... É que seus filhos, irmãos ou esposos  estavam combatendo no front. Contra os anseios dos brasileiros, que torciam pelos Aliados. Então, começaram os conflitos entre brasileiros e japoneses, por conta da guerra lá no Pacífico.
O Presidente Getúlio Vargas temendo um levante, baixou  leis duras proibindo os estrangeiros alemães, italianos e japoneses que aqui residiam de falar a língua materna, e de se reunirem em grupos. Fechou todas as Escolinhas japonesas que ensinavam a alfabetização. Muitas colônias japonesas transferiram essas escolas para o meio da floresta, porque não admitiam criar os filhos sem o conhecimento da língua materna. Como eu nasci em 1942 não pude estudar, porque onde nós morávamos não havia mais essas Escolas...
O governo mandou recolher todas as armas em poder dos imigrantes. As armas de fogo eram necessárias porque moravam no meio da mata virgem, onde havia animais ferozes. Conforme depoimento de um irmão meu, os moradores da Colônia Japonesa do Bairro União em Lavínia se anteciparam às ordens da Polícia local, que ameaçava ir às casas buscar as armas. Juntaram dois sacos de armas, e a cavalo papai e um amigo foram entregá-las às autoridades... Entretanto por um acordo tácito entre os patrícios, as melhores armas foram enterradas, para não serem confiscadas. As outras nunca mais veriam...
Também teve um lance de prenderem todos os jogadores de beisebol, que estavam jogando em comemoração ao aniversário do Imperador do Japão, lá no Bairro Oriente, onde morávamos... Eram proibidas pelas Leis de Getúlio reuniões e festas, mas os japoneses não deixariam de comemorar o aniversário do Imperador, que mesmo de tão longe reverenciavam como súditos fieis... Aí chegou um caminhão e levou todo mundo preso, inclusive papai e dois irmãos meus que eram menores de idade. Em Lavínia ficaram todos amontoados na Cadeia Pública, que não havia tantas celas para umas trinta pessoas. Então, à noite os japoneses da cidade prepararam uma boa refeição, e a levaram para os presos em solidariedade. E esses mesmos japoneses se acamparam diante da Delegacia pedindo para o Delegado liberar os presos. Depois de uma noite e um dia de negociações, ele acabou cedendo. Mesmo porque a Delegacia nem comportava tanta gente. Essa prisão gerou mais revolta e começaram os desentendimentos mais sérios entre japoneses e brasileiros.
A Polícia tinha ordem de prender todos os japoneses, italianos e alemães que estivessem se reunindo em grupos e falando na língua de origem. Ora, os japoneses não sabiam se comunicar em outra língua, e volta e meia alguém era advertido. As rixas se multiplicavam a cada dia. E havia também policiais e policiais... 
Em Tupã, estado de São Paulo, policiais foram averiguar uma reunião de japoneses. Devido à guerra, o sentimento nacionalista japonês estava à flor da pele, pois muitos tinham familiares pelejando na guerra... Um Cabo chegou e deu ordens para encerrarem a reunião, porque suspeitou que estavam tramando alguma coisa. Havia uma Bandeira japonesa bem na entrada, para reafirmar o sentimento de devoção à pátria distante. Mandou retirá-la e, quando ouviu que ela era sagrada para os japoneses, ele os provocou pisoteando-a com botas cheias de excremento de bois...
Isso foi o estopim para uma guerra aqui no Brasil.
Depois eu conto o resto.
Mirandópolis, fevereiro de 2020.
kimie oku in









domingo, 9 de fevereiro de 2020


                  外国人 ou Estrangeiro

      Gaijin é uma abreviatura da palavra Gaikokujin, que significa pessoa de outro país ou estrangeiro. Gai é fora, koku é país e jin é pessoa.
Essa palavra Gaikokujin era usada lá no Japão para se referir aos estrangeiros. E foi trazida pelos imigrantes japoneses que para cá vieram a partir de 1908. Entretanto, aqui no Brasil o uso foi subvertido desde o começo. Os gaikokujin eram eles que chegaram do Japão. Mas, nossos pais se referiam aos brasileiros nascidos e residentes daqui como os gaijin. E até hoje, há gente que ainda usa essa palavra ao se referir aos brasileiros daqui. E muitos a usam com sentido pejorativo, como se os gaijin fossem pessoas inferiores. Ou inimigos. Discriminação...
Nós e nossas famílias japonesas estávamos fora de nosso domínio, e éramos os estranhos do ninho, os invasores... Essa subversão da palavra aconteceu porque havia um forte preconceito para não misturar as raças... E os japoneses não deveriam se misturar aos de fora, à gente de outra nacionalidade, raça ou cor... Isso era uma cultura arraigada desde os primórdios dos tempos, em que os japoneses inventaram lendas sobre a origem do Japão, e de seus monarcas os Imperadores. Essas lendas falavam que o Japão tinha o privilégio único de ser o local onde nascia o poderoso Sol. E os Imperadores descendiam diretamente de Deus. Isso foi cultivado por milênios... Acreditava-se e pronto!  A divindade dos Imperadores só seria questionada recentemente... O reconhecimento da terrena humanidade do Imperador só foi confirmada num momento doloroso, com a derrota do Japão, na Segunda Guerra Mundial. Foi quando o Imperador Hiroito fez ao mundo, a declaração de rendição às Forças estrangeiras, após o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki...
O Imperador e seus familiares não eram divinos! Eram simples mortais como os demais súditos, e não tinham poder nenhum para fazer frente à força dos gaikokujin. Não conseguiram proteger seus súditos... Mas, esse reconhecimento não foi aceito facilmente, e muitos anciãos acabaram cometendo suicídio, por terem destituído o Imperador Hiroito de sua suposta divindade. Fanatismo exacerbado...
Entretanto esse orgulho e esse preconceito não acabariam tão facilmente. Foram cultivados pelos isseis ou  imigrantes e nisseis até hoje. Felizmente, os sanseis já pensam diferente, mesmo porque estão todos se misturando com os brasileiros, trazendo ao mundo uma geração de mestiços de japoneses e brasileiros, de japoneses e africanos, de japoneses e índios e de japoneses e gente de outras nacionalidades como chineses, alemães, coreanos...
E essa mistura toda em nada diminui o valor e o caráter de um descendente oriental. Tanto é que há tantos jovens no mundo fascinados com a Cultura e a Língua Japonesa.
Houve choque de culturas quando os japoneses saíram pelo mundo? E como houve! Preconceitos, discriminações, apartheid, desprezo, separações, humilhações e muito sofrimento...
Atualmente porém, chegamos ao nível excelente de Aculturação, com a troca de informações, de costumes e tradições, que só enriquecem os participantes.
O mundo vai ser povoado por muitos gaikokujapajins!
Gaikokujin?
Somos todos nós!

Mirandópolis, fevereiro de 2020.
kimie oku in



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020


                Ongaeshi
     Ongaeshi é uma palavra de suma importância para os antigos japoneses. Ela é composta de duas palavras: ON que significa favor, ajuda, gentileza; e GAESHI ou KAESHI que significa devolução, pagamento, reconhecimento. Significa reconhecer o favor recebido e fazer algo em troca. E se não puder, pelo menos ser grato para sempre.
     Não sei se ainda esse costume é válido hoje no Japão, mas foi bastante cultivado entre os imigrantes que vieram de lá para cá. Um favor recebido jamais deveria ser esquecido, E a pessoa que ajudava a outra era chamada de Onjin ou Benfeitor.
     Os primeiros imigrantes que vieram se radicar aqui no Brasil a partir de 1908 sofreram muito, porque além de virem para uma terra estranha, sem conhecer ninguém, sem entender o Português, foram mandados para lugares distantes, cercados de mata virgem, cheia de onças e outros bichos perigosos. Tiveram que derrubar árvores seculares para plantarem o café, que era a base da economia da época. E para sobreviver se juntaram em colônias de japoneses e procuraram manter os costumes orientais, como a fala, a Religião, a comida e as tradições. É evidente que houve muito desentendimento com os brasileiros, por falta de comunicação adequada. Com o passar do tempo, tudo foi se acomodando pouco a pouco e acabou ocorrendo essa aculturação que hoje existe, que faz os anciãos japoneses comerem uma boa feijoada e os brasileiros não dispensarem um bom sashimi.
     Um hábito muito bonito que os japoneses trouxeram foi esse ongaeshi, que consiste em nunca esquecer um favor recebido. A cultura ocidental trata isso como uma coisa trivial, sem dar muito valor. Os japoneses não.
     Aprendi desde cedo que devemos ser gratos para sempre com as pessoas, que nos socorreram em momentos difíceis. E assisti a uma cena que ficou marcada para sempre.
     Na década de 50, um irmão meu estava se casando e havia uma pequena comemoração no terreiro da nossa casa, que era num sítio distante da cidade. Japoneses amigos da vizinhança e parentes presentes... De repente, apareceu um carro preto que era a novidade da época, pois ninguém possuía carro. A festa parou e todo mundo ficou intrigado com a súbita visita. Do carro alugado desceu uma família inteira de japoneses. Quando papai reconheceu a família, foi logo recebê-los, e conduziu à barraca da festa, apresentando–os aos presentes. E então, o recém chegado disse que soube, através de um programa japonês numa Emissora de Rádio que, o filho de papai estava se casando, e que não poderia deixar de vir cumprimentá-lo numa data tão especial. E chorando copiosamente, disse que devia um favor imenso ao papai, que nunca poderia lhe pagar. E explicou que tempos atrás esteve numa situação crítica, precisando ir embora de mudança com a família para uma cidade distante, mas que não tinha como pagar um caminhão para fazer isso. E o nosso pai que era tão pobre como ele, arrumou um caminhão de um amigo e fez a mudança... E ao finalizar a fala, os dois amigos se abraçaram e choraram e muitos dos presentes também se emocionaram. Eu era uma adolescente, que mal entendia a língua japonesa, mas não sei porquê entendi toda a cena, que ficou para sempre em minha memória. Daquele dia, só me lembro desse fato.
     Muitos anos depois ao estudar a língua de meus pais, descobri a palavra Ongaeshi e como num sonho voltei aquele sítio, àquela casa, àquela festa e revivi toda a cena... Os protagonistas já estavam no céu, mas a lembrança ficara... Então, percebi a força dessa palavrinha ongaeshi - Jamais esquecer um favor recebido.
     E, ao longo desses anos como cronista, não me canso de repetir essa história, para que todos aprendam a cultivar esse hábito, que é muito bonito.
     Se todos nós cultivássemos esse hábito de pagar a graça com outra graça, a vida seria uma bênção, e não haveria tantos desentendimentos, tantas separações, tantas tragédias.
E aí amigos, vamos adotar o Ongaeshi?

Mirandópolis, fevereiro de 2020.
kimie oku in