terça-feira, 28 de maio de 2013



                Lojas de roupas e calçados
    
         Antigamente, as roupas eram todas confeccionadas em casa,  ou pelas costureiras e pelos alfaiates.
         Em nossa cidade, os tecidos eram vendidos na Casa Moreira e na Casa Santa Glória. Mais tarde, as Casas Pernambucanas passaram a fazer parte do cenário também. Depois, veio a loja do seu Bizaio, a Tecidos Mirandópolis, que está há tanto tempo no comércio local. O tecido era vendido em metros, e o comprador devia pedir a metragem certa para se fazer um vestido, uma saia, uma camisa ou calças. No começo, usou-se muito a sarja e a chita, um tecido barato e todo estampado, que logo se estragava, porque a trama era rala e grosseira. E as cores se desbotavam com o uso contínuo. As estampas eram imensas e coloridas.
         Os tecidos podem ser feitos de fios naturais retirados do algodão e do linho. Há também os fios de origem animal, retirados da lã e o fio de seda retirado do casulo, confeccionado para sua hibernação por uma lagarta que come folhas de amora.
         No Brasil, houve época de cotonicultura, quando as terras eram adequadas para o cultivo do algodoeiro. Também houve fase de criação do bicho da seda, que deu o sustento a muita gente.
         Quando a nossa região produzia muito algodão, foi instalada na cidade a Firma Esteves e Cia, que comprava toda a safra de algodão, e a revendia para as fábricas de fios e tecidos lá na capital.


         E quando a seda estava em alta, as Indústrias Matarazzo se instalaram aqui para comprar os casulos de seda, que eram exportados para os grandes centros, onde eram transformados em linhas e tecidos de seda.
         Quando as Pernambucanas se firmaram na cidade, passaram a vender tecidos que não desbotavam e a propaganda dizia sempre em “cores firmes”. O tecido mais comum era de algodão, que era colhido em larga escala na região. Mais tarde apareceram as sedas, sedas finas e delicadas, que custavam os olhos da cara. Diziam que era seda do Japão, porque aqui não se produzia ainda.
Recentemente, com a falta de matéria prima, como o algodão e o fio de seda, surgiram os tecidos sintéticos, que utilizam material proveniente do petróleo. São o acetato, o rayon, o poliéster, o elastano, a viscose e outras variedades mais, que fazem o mundo da moda funcionar. Esses sintéticos não amarrotam, duram mais e caem bem no corpo, mas são tecidos que não deixam a pele respirar, então são desconfortáveis. É verdade que há uma variação enorme, e alguns deles são melhores que outros, mas ainda os tecidos de algodão são mais adequados como vestimenta. Um amigo meu, que é químico disse que, os tecidos de algodão protegem a nossa pele da radiação solar, e os sintéticos não. (Tenho alergia à radiação solar)
Com o advento do prêt-à-porter, isto é roupa pronta para vestir, houve uma revolução no mundo da moda. As lojas de tecidos tiveram que fechar as portas, porque todas as pessoas passaram a comprar roupas prontas. Inicialmente, ainda vendiam tecidos e roupas confeccionadas, mas hoje são raras as lojas que ainda continuam comercializando tecidos, para as costureiras e para os alfaiates.
E o que mais me espanta na atualidade é o número de lojas de roupas e calçados, que são inauguradas todos os dias na cidade. Há lojas para todos os gostos, desde roupas de dez reais até as de preços astronômicos. E há lojas se enfileirando, umas atrás das outras, usando a mesma calçada.
Mas, tudo começou quando Adão e Eva desobedeceram a Deus no Paraíso. Após cometerem o pecado, tomaram consciência de sua nudez e foram se cobrir com folhas de plantas. Assim, a humanidade passou a vestir-se, diferenciando dos animais que usam a própria pele como vestimenta natural.
E dali pra cá, muita coisa aconteceu: peles de animais foram as primeiras roupas utilizadas, até descobrirem a tecelagem com lã de carneiro e fios de algodão. Tudo foi sendo aprimorado, e hoje poucas pessoas mandam confeccionar suas roupas, com exceção de trajes para cerimônias especiais, como casamentos e festas sociais. Até para isso existem lojas aqui, que vendem e alugam esse tipo de trajes. Ainda há na cidade dois alfaiates, que confeccionam ternos sob medida, um luxo para poucos.
Para tantas lojas sobreviverem em meio à concorrência geral, é necessário faturar alto. E acho que vendem muito mesmo, porque  nos últimos tempos, as pessoas vivem de aparência. Cuidam e investem mais no visual, esquecendo-se muitas vezes de crescer internamente. Infelizmente.
E muitas vezes, as pessoas usam as roupas para disfarçar suas protuberâncias, formadas por excesso de comida. Mas os tecidos sintéticos de hoje grudam no corpo como uma segunda pele e não disfarçam nada. Pelo contrário, põem-nas em evidência.
Infelizmente, percebo que a humanidade vive mais para comer e para se enfeitar. E o mais deprimente é constatar que, tem gente que insiste em estar na moda, usando as últimas invenções, que muitas vezes tornam a figura ridícula dentro delas. Senhoras imensas usando roupas que “derramam” os seios e os pneus fora da roupa, é   extremamente desagradável mirá-las. (Os homens discretos ficam bastante incomodados, sem ter onde parar o olhar.) Penso sempre que as pobres não devem ter espelhos em casa,  desventuradas... Outras que usam saltos tão altos, que parecem que estão no quinto andar de um prédio, e andam desequilibradas, como se fossem desabar à primeira lufada de vento, ou levantar voo... Mas, gosto é gosto e vamos deixar pra lá.
Essa história de investir só na aparência está bem de acordo com o momento que vivemos. As pessoas fazem de tudo para aparecer, seja nos grupos sociais, seja para estar na “onda”. O sucesso do programa Big Brother diz tudo, e há tantos discípulos dessas aberrações que a tevê faz questão de pregar.
Percebo que a cultura brasileira está cada dia mais pobre, sem ídolos para seguir. Tudo que o povo faz e quer é o imediato, a vantagem instantânea, o lucro. Infelizmente é ínfima a parcela de nossos brasileiros que investem em si próprios, para crescer culturalmente.
O povo vive de disfarces. Pobres disfarces.
O conteúdo é mais pobre ainda.

Mirandópolis, maio de 2013.

kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com

sábado, 18 de maio de 2013




                Os cirandeiros curtindo a vida



         Na última sexta-feira, dia dezessete, aconteceu mais um Encontro da Ciranda. Dessa vez, a reunião foi na Chácara do Professor Gabriel Carbello.
         Como em abril não houve Encontro, todos os cirandeiros estavam ansiosos aguardando mais uma tarde de lazer.
         Ao formar a grande roda da Ciranda, a Kimie lembrou os amigos que partiram Jorge Cury, Walter Sperandio e Aristides Florindo, desejando que eles estejam cirandando no céu, enquanto os demais continuam a cirandar na terra. E acrescentou que enquanto houver pessoas dispostas, a ciranda continuará.
        
Dois fatos marcaram o Encontro: a participação da professora Dimar Martin Menegazzi e do vizinho de chácara Alfredo Zambotti.
         Alternando as cantorias, houve a declamação de um poema dedicado às mães pelo senhor Orlando Serafim. Também a Rachel falou da necessidade de se cirandar para driblar as tristezas da vida.  O Dedé agradeceu ao anfitrião, a gentileza em ceder a sua bela propriedade para acolher a turma toda.
         A chácara é uma espécie de paraíso, com muito verde, flores de diversas cores e pássaros voando e cantando o tempo todo. A tarde estava fresca, com temperatura muito agradável.
         Após a sessão de fotos pela Eloyce do Jornal Diário, foi a hora da cantoria e das piadas e histórias engraçadas.
         O convidado Alfredo Zambotti se revelou um bom contador de histórias e conseguiu fazer os amigos darem boas gargalhadas. Não havia sanfoneiros nem violeiros, mas o pessoal conversou, cantou, e riu bastante. Todos se divertiram a valer.
         Foi servido um lanche reforçado com café feito pelo Milton, e a tarde de lazer terminou já quase escurecendo.
         Todos voltaram contentes para suas casas, por terem aproveitado mais uma tarde cirandando.




Mirandópolis, 18 de maio de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com

sexta-feira, 17 de maio de 2013




                               O país às avessas


            Ultimamente têm acontecido uns fatos que estarreceram os homens de bem. O nosso país está irreconhecível, parece que virou às avessas.
         Assisti um tempo atrás a um antigo filme japonês, em que o herói da trama canta sempre, que o mundo está de cabeça para baixo, que os rios correm pra cima e levam as pedras boiando nas ondas, enquanto vão enterrando as folhas no leito do rio. Achava tudo isso uma brincadeira tola do autor da história.
         Hoje assistindo a tudo que está ocorrendo no Brasil, acho que a canção está certa. O nosso país está de cabeça para baixo. Tudo que é certo e correto está sendo enterrado e tudo que não presta virou ordem do dia.
     Acho que isso começou com os governantes e suas maracutaias. Dinheiro inexplicável em malas, em cuecas, histórias encobertas, nunca devidamente esclarecidas fizeram discípulos espertalhões aprenderem a lição. Afinal, nada é investigado devidamente, e ninguém é punido exemplarmente. Quando muita gente ainda esperava punições severas, veio a história do mensalão, com o próprio Presidente da República, que tinha que ser o Exemplo-Mor de Dignidade e Moral da Nação, comprando votos para se manter no poder. E as investigações enredando os culpados menores e nunca, nunca conseguem chegar até o culpado maior. Por que será?
         Daí aconteceu o caso dos Nardoni jogando a filha pela janela, para se descartarem dela. Depois veio o terrível incêndio da boate em Santa Maria, vitimando centenas de jovens na flor da idade. E outro indivíduo se sentiu no direito de jogar no córrego, o braço de um jovem que atropelou com seu carro... E aí vem a história dos policiais investigados por truculência, no caso do cerco ao bandido Matemático.
           E para completar o cenário de horrores, ocorreu o estupro dentro de um ônibus, diante de uma dezena de espectadores.
         Realmente o país está de cabeça para baixo, está tudo às avessas. Até onde isso irá?
         Como pode um sindicalista que se arrogava ser honesto, defensor dos direitos de cidadãos, que criticava gregos e troianos sem piedade, de repente se julgar no direito de fazer qualquer negociata, para ficar mais tempo no comando do país?
Como pode um pai de verdade agarrar uma garotinha inocente e arremessá-la janela abaixo, sem nenhum remorso?
         Como pode um empresário fazer uma boate-arapuca, para os jovens inocentes, que desejavam apenas se divertir?
         Como pode um cidadão em sã consciência, após atropelar alguém, não lhe prestar socorro e ainda jogar o membro amputado num córrego?
Como pode um jovem assaltar as pessoas de um ônibus, e ainda estuprar uma mulher na frente de todos os passageiros?
Que mundo cão é este?
É o mundo sonhado por Lula em suas pregações pelo Brasil: um mundo de igualdade social, onde todos têm os mesmos direitos? É esse mundo sonhado pela ideologia petista?
Qualquer cidadão em sã consciência sabia que o Brasil anterior a Lula não era o Brasil desejado, que havia muitas irregularidades a serem solucionadas.
O direito de um cidadão termina onde começa o do outro, isto é regra básica de qualquer justiça. Se não se obedecer a essa regra mínima, justiça não se faz. E todos os direitos são pisoteados.
O Brasil que se estabeleceu nos últimos anos só pregou os direitos dos cidadãos: direito a cestas básicas, direito a moradia, direito a terras, direito a bolsas isso, bolsas aquilo.
Esqueceram-se de pregar os deveres. Para se ter direitos é preciso ser honesto, trabalhador, cumpridor de suas obrigações, para que a ordem estabelecida não seja quebrada.
         Quando os governantes fazem o que querem e dão maus exemplos, tudo pode acontecer. Mesmo as pessoas mais ou menos honestas começam a duvidar se vale a pena ser tão correto. Porque os espertalhões é que acabam levando vantagens.
Um baiano famoso, Rui Barbosa já preconizava em 1914:
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer as injustiças, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”
      Esta famosa frase do grande pensador baiano define com precisão absoluta o que está ocorrendo no país. Quando se nivelou a cultura do povo por baixo, sem um modelo digno para servir de exemplo, todos acabaram chafurdando na lama. O que mais dói é assistir todos os dias os jovens se perdendo e desgraçando a vida de tantas famílias, ameaçando, roubando, matando, estuprando, aterrorizando gente que só quer viver em paz. E pergunto: “Como reagir diante de uma cena de estupro, com o bandido apontando a boca da vítima com um revólver? E como ficaram as consciências de quem presenciou a cena?”
         Com certeza, todos devem ter pesadelos por não terem reagido, por terem-se rendido às ameaças do louco. Devem ter remorsos só de pensar que o que ocorreu com a vítima poderia ter sido com uma filha, irmã, esposa... ou com ela própria.
Não estou culpando ninguém, mesmo porque tenho muito dó de quem sofreu essa situação terrível. E mais ainda, da carga de consciência que agora estão carregando.
Então, não está na hora de dar uma guinada de 360º para consertar esse país? Vamos retomar ao que era antes da era petista, que pôs tudo a perder.
Antes dessa onda de concessões sem limites ao povo, e antes dessa roubalheira que os governantes andaram e andam praticando, o país caminhava de forma equilibrada e toda a sociedade tinha segurança. Todos estavam empenhados em trabalhar e, ninguém pensava em se apossar dos bens alheios, como ensinaram os políticos com suas roubalheiras. Ninguém tinha medo de viajar de ônibus, de metrô.
Desejo que a Copa do Mundo aqui no Brasil seja um tremendo fracasso,  uma grande frustração, sem turistas para encher os estádios, sem dividendos para repartir entre os cartolas, porque ninguém é bobo a ponto de sair de seus países seguros, para ser estuprado dentro de ônibus em plena Avenida Brasil.
Se a Copa der em nada, talvez a sociedade desperte.
E salve o Brasil.
Se ainda der tempo.

Mirandópolis, maio de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com

terça-feira, 14 de maio de 2013



                        Trabalhar e aposentar-se


Sempre ouvi gente dizendo que, se descobrisse o inventor do trabalho, o degolaria... Achava engraçado ouvir isso.
O trabalho foi concedido a Adão e Eva no Paraíso como um castigo por terem desobedecido a Deus: “Trabalhai e multiplicai-vos”. “E tirarão o sustento com o suor de seu rosto”...
O homem foi o único ser vivo destinado a trabalhar. Talvez para compensar a racionalidade de que foi provido.
É verdade que os pássaros fazem os ninhos para por os ovos, e buscam o alimento para seus filhotes. Assim como as onças saem à caça para alimentar a prole. Mas, o homem não sai à cata de comida. Ele tem que produzi-la, ou pelo menos fazer dinheiro para adquiri-la. Sua missão é trabalhar.
O homem nasce, cresce, se prepara para arrumar um bom serviço e passa metade da vida trabalhando, trabalhando. Tudo que  faz para a criança que nasce é lhe dar uma boa educação, que a leve a um bom trabalho, que lhe garanta uma boa ocupação, ou seja uma boa profissão. E possa viver uma vida tranquila, sem atribulações.
Resumindo, tudo gira em torno do trabalho. A meta é trabalhar, porque é do trabalho que vem o sustento da família. Sem trabalho, não há proventos e sem estes não há comida.
Então, o trabalho é um bem, sem o qual a humanidade não sobreviveria. Vamos supor que de repente, todos parassem de produzir alimentos. Cada indivíduo sairia à caça de comida onde houvesse... Frutas, legumes, verduras, cereais seriam disputados até à exaustão. E depois, quando tudo acabasse, como seria?
Morreriam todos de fome, porque foi determinado por Deus que o homem teria que viver do suor de seu rosto, isto é, teria que pelejar para sobreviver...
Então, o trabalho é sua missão e não tem como escapar dela. E foi assim com nossos antepassados, com nossos avós, pais, com a gente mesmo e, assim será também com os nossos filhos, netos e bisnetos. Per secula seculorum...
Eu, como todo mundo, escolhi uma profissão e me dediquei a ela até esgotar meu prazo, aliás, fui além, para me aposentar um pouquinho melhor... Como o trabalho foi escolhido por mim, não me deixou frustrada e nem infeliz. Ganhava pouco? Sim! Mas, mamãe nunca teve um salário na vida e criou doze filhos, de graça! Comparando, poderia me considerar afortunada. Por isso, nunca lamentei ser professora. Mesmo porque, os anos em que tive contato com crianças foram muito gratificantes. Aprendi muito com elas e com seus pais, que levavam uma vida dificílima, sem nenhum conforto e sem alternativas. Mas cumpriam sua sina de um jeito ou outro.
Assim, muitos amigos meus também escolheram suas profissões e, passaram a vida toda se dedicando a elas, como balconistas, frentistas, enfermeiros, médicos, bancários, eletricistas, mecânicos, costureiras, garis, farmacêuticos, dentistas, braçais, pecuaristas, funcionários da Prefeitura, do Estado, da União.
Hoje a maioria deles está aposentada, porque cumpriram sua jornada e fizeram jus ao descanso que a Lei permite.
Entretanto, vejo tanta gente aposentada de olhos vazios, sem rumo na vida, lamentando estar esquecido de todos. São pessoas ainda capazes de produzir, que por força da Lei e de sua vontade deixaram de trabalhar. Enquanto trabalhavam, sonhavam com a bendita aposentadoria, que os livrariam de todas as preocupações que a faina diária trazia. Almejavam o descanso como um prêmio máximo, que usufruiriam com prazer, sem limites.
E quando a aposentadoria chegou... As pescarias planejadas ficaram só no desejo, porque os companheiros da aventura continuaram na ativa e não dispunham de tempo. As viagens sonhadas ficaram impossíveis por conta de netos pequenos, que precisavam ser levados e buscados da escola...  Quando não tinham que pajeá-los, substituindo as babás...
E assim o tempo foi passando, com uma aposentadoria sem graça, sem nenhuma aventura, sem ação.  Decepcionante. E quando os outros colegas que serviam de companhia se aposentaram, já estava atacado de artrite, de artrose, de dor na coluna, nos joelhos... Vida dura de dores... Sem condições de nenhuma aventura.
E aí vendo a vida passar, começaram a andar sem rumo, sem alegria, sem sabor. Lamentando a vida sem graça, a inutilidade dos dias sem fim.
E tudo isso por quê?
Falta de objetivo, falta de planejamento.
Em tudo na vida deve haver um planejamento, para evitar as perdas. Mesmo para se aposentar é mais do que necessário um plano bem elaborado, para preencher os anos por viver.
No Japão, os aposentados estão procurando ser úteis, servindo de babás para crianças de vizinhos, que precisam trabalhar. É claro que não é o dia todo, é apenas parte do dia ou algumas horas, em que as crianças não têm onde ficar. São os avós ou netos de empréstimo, que fazem companhia mutuamente sem nenhuma remuneração. Outros cuidam dos monumentos da cidade. Um grupo organizado de aposentados vai periodicamente lavar e cuidar dos monumentos dos heróis da cidade. Outros grupos cuidam de jardins, replantando mudinhas e molhando os canteiros. E há ainda os grupos que vão a hospitais conversar com os doentes, e lhes proporcionar algumas horas de lazer.
Aqui em Mirandópolis há muito que fazer.
A Casa da Criança recebe crianças, cujos pais estão labutando na roça ou em outros empregos na cidade. Tem crianças que choram de saudades da mãe, e não querem nem brincar. Ir lá e contar umas histórias, cantar ou brincar de roda já dá para espantar a tristeza. E o benefício maior é do voluntário que faz isso, porque se sente útil de verdade e salva o seu dia.
No Asilo, há uns velhinhos esquecidos de verdade, que não recebem uma visita sequer. Eles não querem cobertas, eles querem atenção e um pouquinho de carinho. Um amigo meu vai todas as semanas cortar os cabelos e fazer a barba dos internos, sem nenhuma remuneração, só pelo gosto de vê-los mais apresentáveis.
No Hospital há doentes que precisam de uma palavra de alento. Se o aposentado se sente tão inútil, que vá lá e veja as condições dos doentes carentes de tudo. Gente que veio de longe, não conhece ninguém e se sente um verdadeiro estranho no ninho.
A APAE também pode ser uma meta de quem quer ajudar. Um nosso amigo cirurgião-dentista reserva uma manhã em sua agenda, para tratar dos dentes dos alunos de lá. E isso há anos. Outros profissionais aposentados poderiam seguir esse exemplo, como a nossa amiga pintora que, volta e meia vai orientar os alunos sobre  pintura em telas.
Acho que o tempo que Deus reservou para vivermos de aposentadoria é uma bênção e precisa ser bem utilizado. “Carpe diem” é um ditado latino que significa Aproveite o dia, aproveite a vida. Viva-a enquanto Deus permitir.
E viver plenamente, com alegria, com entusiasmo, participando da vida de outros, existe aventura maior?

Mirandópolis, maio de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com

quarta-feira, 8 de maio de 2013




                Gente de fibra – Jaime Perogil


         Tanta gente me pediu para entrevistar o amigo de hoje. É um homem simples, conhecido de todos porque há muito tempo vem servindo a comunidade com seu trabalho.
         Gente de fibra de hoje é o
senhor Jaime Perogil, o último charreteiro de Mirandópolis.
         Seu Jaime nasceu no Bairro rural de Água Limpa, em Araçatuba, em cinco de dezembro de 1926 tendo, pois hoje 86 anos de existência. Tinha quatro irmãos, mas todos já faleceram, restando apenas ele.
         Seus pais eram lavradores e trabalhavam como meeiros nas roças de café. (Meeiro era um sistema de contrato entre o dono do cafezal e o lavrador, que zelava da roça, fazia a colheita e dividia a renda com o patrão, à base de 50% para cada parte).
 Quando tinha aproximadamente uns onze anos, sua família mudou-se para Cambará, no Paraná, mas não deu certo e voltaram para o Estado de São Paulo, mais precisamente em Guararapes, onde também trabalharam nos cafezais.
         Em 1941, seu pai foi contratado para trabalhar como meeiro no cafezal do senhor Joaquim Dornellas, no Bairro Km 52, em Mirandópolis. O menino Jaime, então com apenas 14 anos de idade, saiu um dia de Guararapes às quatro horas da manhã com um carrinho carregado de material de construção, e chegou ao Km 52 às oito horas da noite. Seu pai o esperava para construir a casa onde iriam morar. Naquela época, as estradas eram de terra e ainda havia muita mata ao redor, e o garoto teve  muita coragem para empreender essa viagem sozinho.
         No Km 52, construíram a casa e o paiol, e ali ficaram por seis anos. Daí saíram para morar numa chácara que compraram na Ponte Seca. E o jovem Jaime lamentou com o pai terem construído a casa e o paiol em terras estranhas, porque  foi com sacrifício e quando saíram, tiveram que deixar tudo para trás.
         Em 1941, havia apenas três casas em Mirandópolis. O resto eram algumas palhoças... Mas, no Km 50 florescia uma cidade que prometia ser a futura metrópole da região. Havia armazéns, farmácias, bares, serrarias, capela, escolas... Mas, de repente, tudo isso acabou. É que a Estrada de ferro Noroeste do Brasil, que ligaria o nosso Estado com Mato Grosso, não passou pelo povoado. Tanto a linha como a estação foram instaladas aqui onde é a atual sede do município. Como viajar de trem era muito mais barato, o povo do Km 50 se transferiu para cá e o Bairro Km 50 caiu no esquecimento.
         Aí chegaram o senhor Manoel Alves de Ataíde e o senhor João Mendes que se dedicaram á cultura do café.  Vieram também o senhor Motomiya e o senhor Paulo Nakamura, pai do saudoso amigo Hiroshi Nakamura.

          Mas, a vida que florescia aqui era muito difícil Tudo estava em falta. A Casa Milanesa,  único armazém que vendia secos e molhados não dava conta de atender a freguesia, Faltava açúcar, sal, querosene... Tudo era racionado: para cada família, um quilo de sal, um litro de querosene... Às vezes era necessário ir até Valparaíso atrás de mercadorias, que faltavam  aqui. Seu Perogil lembra que um dia teve que ir até Machado de Mello (Amandaba) para comprar sal. Só conseguiu a muito custo, um quilo de sal fino e dois de sal grosso, que tinha que ser socado no pilão, para uso doméstico. A Casa Milanesa funcionou durante anos na Rafael Pereira, onde mais tarde foi o Bar do Tio Marcos, e hoje está o Restaurante Baobá.
           Na Ponte Seca, a família tinha um pomar de laranjas, e durante a safra, o jovem Jaime vinha de carrinho vender as laranjas pelas ruas da cidade.
          Seu pai vendeu o sítio e resolveu comprar o Hotel São Judas Tadeu, junto do Bar do Ponto, na Rafael Pereira, perto do atual palanque municipal, porque havia muita gente chegando aqui. Mas, a aventura do hotel não deu certo, porque a despesa era demais e não sobrava nada. Com um ano de experiência, venderam o hotel e compraram um pequeno sítio na saída para o Córrego do Boi. Nesse sítio passaram a plantar arroz, feijão,  mandioca verduras e árvores  frutíferas.
            Só que uma tragédia iria afetar a vida do jovem Jaime. Ao arrancar um pé de milho, deslocou a coluna e ficou travado. Ficou internado um ano num Hospital de Campinas e andou durante seis anos com o auxílio de muletas. Era um sofrimento muito grande, porque via o pai pelejando no sítio todos os dias. E ele era o filho mais velho, com quem o pai sempre contara...
             Como não podia fazer serviço braçal devido ao problema da coluna vertebral, o jovem Perogil comprou uma charrete para trabalhar. Isso foi em nove de novembro de 1951. Era o tempo das charretes e das carroças. Como não havia outros meios de transporte, as pessoas se utilizavam de charretes para se locomoverem na cidade ou, mesmo para ir aos sítios e fazendas. Pra transportar as compras feitas nos armazéns e a produção agrícola, usavam a carroça ou carrinho puxado por animais.  E a Prefeitura instalou um bebedouro com água encanada para os animais, na Rafael Pereira. Depois  o transferiram para a beira da linha, onde era costume deixar os animais pastando. À frente dos armazéns era costume ter  argolas na calçada para amarrar os animais, enquanto os cavaleiros, charreteiros e carroceiros faziam compras ou tomavam seus golinhos de cachaça.
              Nos anos 50, havia 35 charretes na cidade, dentre os quais o seu Perogil  se lembra do Abel e do Zé Sitoni. Havia três pontos de charrete na Rafael Pereira. Havia muito serviço e todos tinham que dar duro para dar conta de tantas corridas. Quando chegava o trem passageiro, todos os charreteiros iam ao pátio da estação para conduzir as pessoas que chegavam. Era uma azáfama, porque havia muita gente que chegava, que partia misturada com os vendedores ambulantes de jornais, amendoim, sorvete, pastéis e pipoca.
              Seu Perogil conduziu muita gente em sua charrete. Nos bons tempos levava professoras para as escolas rurais. Como as estradas eram ruins, ele costumava carregar um enxadão e ia tapando os buracos para a charrete passar com segurança. Levava sempre duas professoras da mesma linha e ficava esperando a última terminar de dar as aulas, para trazê-las de volta. Lembra que levou professoras para as escolas da Fazenda Santa Filomena, do Bairro Santo Antonio, das Três Pontes. Esse serviço era bom, porque fazia contratos mensais e garantia uma pequena renda segura.
              Além de transportar gente, pegava sempre serviços de entrega de carvão, de água da mina, de compras dos armazéns, que entregava nas casas.
              Ele se lembra que transportou muitas vezes a dona Sílvia Golmia para a Escola, assim como o Dr. Neif Mustafa. Serviu também a família do senhor Geraldo Braga, do senhor Joaquim Pereira dos Santos e o senhor Manoel Alves de Ataíde. Desse, ele não gostava, porque era mandão e exigia que o chamassem de “Coronel”. Era muito rico, mas foi enganado por mulheres, que se aproveitavam dele quando ficava bêbado... Por isso Mané Ataíde, o fundador da cidade acabou na miséria.
              Lembra com carinho de médicos que utilizaram seus serviços. Dr. Edgar Raimundo da Costa pedia para ele levar os possíveis clientes para seu consultório, que ficava ali perto onde hoje está o Banco Santander. O médico sempre lhe agradecia com gorjetas. Dr. Olímpio de Macedo também era um excelente médico, que curava ferida brava, tracoma, picada de cobras. Seu Consultório era ali na esquina, das ruas Nove de Julho com a Domingues de Souza, onde hoje há o Bar Boi na Brasa. Tinha um filho Dentista, cujo consultório era anexo ao do pai.
            Seu Perogil conheceu também o Dr. Macoto Ono, mas teve pouco contato, porque ele ficava mais no Hospital, lá onde funciona agora o Hospital do Estado.
           Outro médico de quem não esquece é o Dr. Massayuki Otsuki, que tinha consultório ali na João Domingues de Souza. Diz que era um médico excelente e, treinou o seu Perogil para aplicar injeções em pacientes que moravam longe.  E o charreteiro travestido de enfermeiro, lá ia aplicar as injeções nas horas determinadas pelo médico, que não dava conta de tanto serviço.
            Também serviu ao Dr. Pardo, que lembra como uma das pessoas mais generosas que conheceu. E tem em relação ao Doutor Roberto Yuassa, um respeito que chega à veneração.
           Seu Perogil tem muitas lembranças. Um dia transportou um Juiz de Direito, e ficou tão grato pela oportunidade de servi-lo, que não lhe cobrou a corrida.
           Seu Perogil casou-se com Marta Cândido, que morava no Córrego do Boi. Com ela teve cinco filhos, dos quais há quatro vivos. A única filha mora em Araçatuba e é Oficial de Justiça. Um dos filhos é Sargento de Polícia em Dourados, Mato Grosso do Sul, e os outros dois moram em Promissão, onde atuam na Usina e numa fazenda.
           Sua esposa faleceu há dez anos e ele mora sozinho na chácara. Quem lhe dá assistência é a sua filha que está sempre em contato e vem vê-lo todos os meses. Ele é muito grato a ela.
           Dentre outras lembranças, disse que conheceu o senhor Paulo Miki, que foi o antigo dono da Máquina de beneficiar café do Lourencinho. Lembra também que foi contratado pelas Máquinas dos Perez, dos Minari e do Lourencinho para transportar café e arroz.
            Falou do tempo em que havia a Zona de Prostitutas. Eram umas seis casas, e o local era bem movimentado. Havia sempre umas vinte mulheres chegando ou partindo, e os cidadãos respeitáveis costumavam ter algumas delas como “amigadas”. Seu Perogil transportou muitas delas em sua charrete.
            Sobre os animais que utilizou em seu trabalho, disse que uma égua lhe serviu por trinta e cinco anos. Se for bem tratada como ele faz, elas têm longa vida. Todo dia quando chega em casa, ele dá um banho no animal  e o alimenta para deixá-lo descansar. Só então vai cuidar de si.
            Sobre amigos diz que tem muitos, mas há um em especial que o socorre em suas dificuldades. É o seu vizinho Domingos Caldato, que sempre o conduz ao hospital quando não está bem. Ele o leva e espera para trazê-lo de volta. Diz que nunca poderá pagar a atenção e os favores que lhe deve.
            Com oitenta e seis anos de idade e sem muita saúde, não pensa em parar de trabalhar. É que mora sozinho e ficar na avenida, com um amigo carrinheiro, à espera de serviço o ajuda a passar horas. Gosta muito do que faz. Diz que valeu a pena ter sido condutor de charretes, porque conheceu e serviu a muita gente boa nessa vida. Sente que foi útil à comunidade.

            E essa história de dizer que “Quem dorme no ponto é charreteiro” é uma bobagem inventada por gente que não tinha o que fazer. Porque charreteiro trabalha e trabalha muito.
           Jaime Perogil, gente humilde, que por um azar do destino teve a saúde física alterada e foi forçado a ser condutor de charretes, e já pelejou durante sessenta e dois anos nessa lida servindo ao povo de Mirandópolis, é sem dúvida nenhuma, um Homem de Fibra!

          Mirandópolis, maio de 2013.
          kimie oku in crônicas de kimie.blogspot.com

sábado, 4 de maio de 2013




            Lembranças da infância


Moro há tantos anos em Mirandópolis, mas sou laviniense de fato.
         Já me disseram que não se diz laviniense, mas lavinense. Dizem que esta é a forma correta, mas sinto que não estarei dizendo a verdade se disser que sou lavinense. Portanto, sou laviniense e ponto final.
Nasci numa fazenda, lá no Bairro União, na Estrada que vai para Tabajara. Tenho algumas leves reminiscências desse lugar. Era uma fazenda habitada por famílias de japoneses, cujos chefes de família haviam chegado ao Brasil tempos antes, como imigrantes. Lembro que havia a família Fujito, a família Une e outras, das quais nem lembro os nomes. É que vivi ali só até os quatro, cinco anos de idade.
 Lembro-me de um buraco no chão, acho que era um tipo de cacimba para guardar água da chuva para as hortaliças. Quando não havia água, as paredes do buraco ficavam cheias de borboletas. Eram umas borboletas que possuíam um desenho de oito nas asas, e as pessoas chamavam-nas de borboletas 88. Eram bonitas, coloridas de rosa, branco e preto.  Eu ficava fascinada vendo os bichinhos às centenas, batendo as asas e mudando de lugar no fosso.

 Lembro também que a nossa casa era tão pobre, feita de cascas de madeira escura, de cujas frestas se via a máquina de costura de mamãe, a única preciosidade dela. Éramos mais pobres que pobres. A casa ficava no meio de um pasto e eu tinha terror das vacas que vinham pastar no quintal.
Na casa dos Fujito, existia um moço deficiente de idade indefinida, que todo mundo tratava com desprezo. Era muito feio, porque tinha a cabeça raspada, usava um camisolão preto semelhante a uma batina de padre e andava descalço. Os moleques se divertiam levantando sua saia para lhe espiar as partes íntimas, e ele ficava apavorado quando os via. Às vezes, esses mesmos meninos atiravam pedras nele, e ele fugia chorando. Não sei porque faziam isso com ele. Acho que era ignorância pura. O moço que se chamava Yoshio, ou Yoshio-san como o chamávamos era manso e não fazia mal prá ninguém. Todas as tardes, andava devagarinho sob as grandes mangueiras, catando varas e ia juntando-as no braço esquerdo. Quando tinha uma boa porção, ele as ninava, como se fosse um bebê, falando ou murmurando: hiá, hiá, hiá, ha, ha, ha... Isso ele fazia por horas intermináveis.
Aos domingos, havia partidas de beisebol, em que todos os homens adolescentes e adultos participavam. Eram reuniões muito animadas. Só se falava em japonês. Eu andava no meio dos adultos feito barata tonta, sem saber para que eu estava ali.
Foi por essa época que ocorreu a 2ª Guerra, que envolveu o Brasil e o Japão em lados diferentes. Getúlio Vargas era o Presidente, e temendo um levante dos japoneses fanáticos pela pátria distante, que ia perdendo seus soldados e o alento diante dos Estados Unidos, mandou recolher todas as armas dos japoneses.
Por que eles tinham armas?
Porque ao redor tudo era mata, floresta virgem, habitada por onças e outros bichos que metiam medo.
Cumprindo a ordem dos federais, a polícia de Lavínia visitava todos os núcleos de japoneses e fazia uma devassa nas pobres casas à procura de armas. O pessoal do Bairro União, num lance inteligente, resolveu levar as armas voluntariamente, e papai e mais um japonês levaram à Delegacia de Polícia, quatro sacos de espingardas e outras armas de fogo. As melhores, porém, eles as enterraram e não entregaram. (Soube dessa história anos mais tarde).
Eu não tenho certeza, mas no Bairro União, parece que os japoneses cultivavam algodão.
Outra lembrança que tenho é da mudança. As nossas tralhas eram tão poucas, que a mudança foi feita em carroças, puxadas por animais. Caminhões nem existiam no pedaço. Lembro que eu era tão pequena, mas tive que ir a pé, porque havia irmãos menores para serem carregados por mamãe, papai e pelos irmãos maiores. Papai havia comprado um pequeno sítio a uns três quilômetros do Bairro União, na direção de Tabajara. Eram terras de Jeremias Lunardelli, que vendeu vários lotes de dez alqueires para os imigrantes japoneses. E aí se reuniu outro grupo de japoneses que, tiveram que derrubar a mata densa, onde até havia onças, para começar o cultivo do café. O Bairro ficou conhecido como Bairro Oriente e ficava a uns quatro quilômetros de Tabajara.
A lembrança mais forte que tenho dos primeiros tempos nesse sítio é da queimada da mata virgem do vizinho, Paulo Paschoal. Era um quadrado pequeno, mais ou menos equivalente a quatro quarteirões de árvores imensas, acho que centenárias, e se localizava em frente à nossa casa. 
Acho que foi de tardezinha que começaram a incendiar a mata, e eu fiquei muito impressionada. Em pouco tempo, toda a mata ardia e as labaredas pareciam chegar aos céus. Senti um misto de terror e fascinação por aquelas chamas vermelhas, e pelo barulho dos troncos estralando, estralando. Todos os homens andavam em volta da mata, vigiando, talvez para o fogo não se alastrar e ficar descontrolado. Lembro que a gritaria era sem fim, e só tarde da noite  é que tudo se acalmou. O fogo ardeu por dois ou três dias e mamãe nos recomendou muitas vezes para não chegar perto.
Tenho uma lembrança fugidia de um veado vermelho atravessar correndo o arrozal verde numa manhã luminosa. Lembro que tinha a pelagem avermelhada e muito brilhante. Para onde foram os bichos que nós expulsamos da mata?
Quando era época de milho verde, os macacos vinham roubar as espigas, e nós crianças tínhamos a tarefa de escorraçá-los. O milharal estava cercado por mata virgem e os macacos não perdiam a oportunidade para se banquetearem. Depois de algum tempo, nem adiantava jogarmos paus e pedras, porque os bichinhos eram rápidos, roubavam as espigas e voltavam céleres para as árvores, guinchando, como se estivessem zombando de nós.

Lembro também que meus irmãos mais velhos ficavam de tocaia à noite, para matar uma onça que vinha dizimar nosso pequeno rebanho. Nunca ninguém conseguiu pegá-la. Acho que os irmãos se pelavam de medo, passando a madrugada em cima de árvores...
No meio da mata havia uma clareira onde morava um casal, o Dito Vermelho e dona Maria. Já relatei sobre eles em minhas crônicas, mas, vamos lá. Viviam de criar porcos com os cocos de macaúba, cujos pés havia às centenas em volta da pobre cabana feita de troncos de coqueiro. Eles matavam os porcos e iam até Tabajara vender a banha e a carne cozida. Iam a pé, descalços, levando a lata de dezoito litros com a banha e a carne na cabeça para trocar com açúcar, feijão, farinha e fumo de corda. Décadas mais tarde, reencontrei a dona Maria andando descalça como antes, com uma rodinha de pano sobre a cabeça e uma piteira na boca. Vinha até Mirandópolis pedir “um ajutório para a vó”, indo de Banco em Banco, e percorrendo todas as mesas dos funcionários. Aos que lhe davam uns trocados ela abençoava “Deus te abençoe, meu filho!”  Descobri esse final de sua vida por causa do meu esposo que, toda sexta-feira separava uns trocados para a vó.
Esse sítio na estrada de Tabajara pertenceu a nossa família por 37 anos. Inicialmente, foi cultivado o café, mas com a crise da superprodução, cultivou-se algodão, banana-maçã, cebola e manga.
Já se passaram quase três décadas desde que o sítio foi vendido. E movida pelas saudades, voltei duas vezes lá. Tudo se transformara em pastagem para gado.
Antes nem tivesse ido. Das lembranças que havia na memória, nada restava. O poço que havia nos fornecido uma água boa e saborosa fora enterrado. A casa se transformara em habitação de morcegos. O gado nelore entrava por uma porta, punha a cabeça na janela e mugia para fora. Só o velho bambuzal estava firme no lugar. Ah! E o velho pé de guaivira, que fornecera tantos cabos de enxada nos bons tempos. Foi muito triste ver a decadência e o abandono do lugar. Senti que intrusos tomaram posse de um lugar sagrado.
Porque a casa que, nos acolheu na infância, é de fato um cantinho sagrado, que merece ser respeitado.
Ainda bem que a gente tem um pequenino disco rígido na cabeça, para guardar as melhores lembranças.

Mirandópolis, maio de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com