sexta-feira, 17 de julho de 2015

            A viagem
Por Milton Lima
       
     Fazia tempo que o nosso pai estava ausente e nem dava notícia. Nossa mãe sabia através de recado de gente conhecida que, ele estava trabalhando numa fazenda distante. Era uma nova empreitada. As crianças não sabiam de nada.
       Naquele tempo era assim, ninguém devia perder um dia de serviço. Muitas vezes de madrugada, debaixo de muita chuva, ele jogava um saco de plástico nas costas, amarrava no pescoço, arregaçava as calças até os joelhos e saía para o serviço. Geralmente eu não via quando retornava. A vida de roceiro sempre foi assim muito dura. Desaparecia nos sertões, nas matas, nas levas, nas empreitadas, nas colheitas, nas construções de cercas e pontes das estradas e outras coisas...
     A família ficava em algum ponto da estrada ou fazenda, esperando a volta do chefe, que demorava muito. Muitos nem voltavam.
   Desta vez, não podendo vir, nosso pai mandou um rapaz buscar a gente. Não eram nove horas, não tínhamos almoçado ainda. Um carreiro, moço novo com seu carro de duas juntas de bois parou em frente ao nosso rancho.
     _ Vim buscar a mudança.
   Coitada da mãe! Ela ficou desesperada, porque tinha que fazer aquilo que julgava não saber fazer. Ajeitar tudo sozinha, às pressas. E as crianças? Oh! Meu Deus!
     O carreiro ainda advertiu:
     _ Vamos depressa que preciso chegar lá ainda hoje! É longe! Vamos, vamos!
    Eu era pequeno, quase nada podia fazer, mas larguei ali no chão os meus brinquedos e, depressa arrastei uma cadeira para o terreiro. Depois mais uma, uma lata, uma vassoura, etc. Minha irmã Clarice e o Irineu que eram os mais velhos também devem ter carregado alguma coisa mais leve. Não me lembro. O povo falava que serviço de criança é pouco, mas quem perdia era louco. Por isso acredito que eles ajudaram.    Carro de bois também chamado de carreta ou carroção, condução importante no transporte sertanejo, porque entrava em qualquer lugar. Tudo feito de ferro e madeira grossa. O carro que foi lá em casa era de rodas raiadas e não cantava.
   Minha mãe clamou aos céus e aos Santos que ajudassem, e junto com o moço foi pondo nossos cacarecos em cima do carro. Não era muita coisa e logo terminou tudo. Por fim o moço passou uma corda para dar firmeza à carga. Uma vizinha veio dar tchau. Nossa mãe e ela se abraçaram e soluçaram. Sabiam que nunca mais iriam se ver. Tchau meninos, vão com Deus, gente! Tchau dona Joana! O peito apertou... A porta da casa deixamos amarrada com arame do lado de fora. Atarantada, nossa mãe esqueceu o balde do poço, que iria fazer tanta falta. Um vidrinho com que eu brincava, duas tampinhas e um carrinho feito à mão com rodas de carretel ficaram embaixo do pé de sabugueiro. Esqueci. As galinhas também ficaram. Minha mãe gritou de última hora: 
    _ Dona Joana, pegue dois frangos para a senhora, se puder prenda o resto que depois meu marido vem buscar!  Nunca foi...
    Com o almoço ninguém se incomodou, com o atropelo ninguém se lembrou de comida.
   _ Vamos embora! Vamos! gritou o carreiro. Bateu com a vara no corrimão do carro: _ Vai boiada, vai! O moço chacoalhou o ferrão por cima dos chifres dos bois e deu a ordem. O carro rodou vagarosamente, porque carro de boi só anda devagar mesmo...
   Ainda próximo da moradia, com cuidado o carreiro guiou a passagem do carro por cima de umas taboas de um corguinho de pouca água. Com os solavancos dos buracos, a carga balançava pra lá pra cá. Na parte de baixo dentro do carro, colocaram as caixas e alguns sacos com nossos apetrechos. Por cima colocaram as camas, um bercinho, um banco de madeira, a mesa da cozinha e as cadeiras com as pernas para cima. Resumindo, era tudo um monte de tranqueiras, mas eram nossos aqueles cangais. A carga parecia um transporte de ferro velho, de tão feia e mal arrumada. Lotou tanto que, não sobrou espaço para ninguém subir no carro.
       A nossa mãe ficou nervosa com a mudança e a aflição que aquilo lhe causava. Em silêncio acompanhava o transporte, enquanto a crise de enxaqueca arrancava lágrimas de seus olhos. Sentia-se fracassada, por não ter tido tempo para arrumar um almoço, para os seus pequenos. Talvez desconfiasse que iríamos comer só no outro dia. O lugar do destino era muito longe e a estrada deserta.
    Para não atrapalhar eu fingia firmeza e esforçava para não ser o último da fila. Minha mãe me chamou e pediu baixinho, para que o carreiro não ouvisse:
     _ Corre meu filho, e veja se encontra umas folhas de mamona para colocar na minha cabeça. Não aguento de tanta dor. (Aquela dor eu conhecia, era tão incômoda e intensa que ela até vomitava. E eu implorava para Deus que tirasse aquela dor e a passasse para mim. Eu queria ajudar minha mãe, salvá-la da maldita dor. Ficava revoltado porque Deus não atendia meu pedido.)
   Rapidamente passei a cerca e entrei no pasto procurando pés de mamona.  Folhas de batata também serviam. Como conhecia o local, não foi difícil achar o que procurava. Escolhi as folhas mais novinhas, que eram as suas preferidas. Colhi um monte e corri para alcançá-los, que já iam distantes. Alcancei-os meio esbaforido. Ela forrou a testa com as folhas de mamona e amarrou um lenço branco, cobrindo boa parte da cabeça. Minha mãe sofria de enxaqueca crônica com crises violentas, que a deixavam prostrada chorando por até dois dias. Ela sofreu disso por muitos e muitos anos. Imaginem ter essas crises e ter que dar conta dos afazeres da casa e de suas crianças... E naquele dia, devido ao inesperado da mudança, a dor surgiu mais violenta que nunca. Oh Deus! Mas era preciso suportar, por isso caminhava em silêncio.
    Debaixo de um sol escaldante, todos caminhavam quietos, apenas o carro rangia na puxada e batida da caminhada. A tarde ensolarada queimava aquele mundo e a nossa mudança.
    Lembro-me, deviam ser umas três horas da tarde, teve um momento que não aguentei mais, eu era o mais pequeno, o mais fraco. Não consegui acompanhar o cortejo, parei. A areia espessa e mole queimava pra valer os meus pés. Sem chapéu, a cabeça parecia que ia ferver, gritei:
     _ Eh! Eh!  Vem cá!
    Minha mãe veio socorrer. Debaixo do lenço, as folhas de mamona já secas estavam grudadas na sua fronte.
    _ O que foi?
    _ Tá queimando, não aguento! Não quero ir! Não quero ir!
    _ Deixe de moleza, menino!
    _ Não aguento mais! Me dá um pouco de água, pelo amor de Deus!
        Aí foi que ela se lembrou que, não havia trazido água para a nossa viagem. Nenhuma gota. Ela gritou para o moço do carro. Ele parou a boiada e revirando a porunga seca, disse:
  _ Eu também estou morrendo de sede. A minha água acabou faz tempo! Não temos água, não podemos parar, não podemos perder tempo. Ainda está muito longe, vamos chegar só de madrugada.
    E tocou os bois e o carro rodou. Como eu disse, era um moço novo e não se preocupou com a preparação da viagem. Talvez nem tivesse prática no transporte, era possível.
     Já havíamos andado bastante e não tínhamos passado nenhum rego d’água na estrada. Eu já havia observado várias baixadas com arbustos característicos de água, mas ninguém falou nada de parar para bebermos. Ninguém reclamava nada, eu também não queria reclamar para não dar trabalho, mas minhas pernas bambearam. Eu me entreguei e quis chorar, mas minha mãe bronqueou chacoalhando meus ombros:
     _ Aguenta firme seu moleza! Todos nós estamos com sede, você não é homem, não? Aguente firme que logo chega. Vamos embora! Fica firme!
   Aquela chacoalhada de braços me fez firmar um pouco e me fez acreditar sim, sou homem e por isso devo aguentar mais um pouco. O menino sempre gosta de ser comparado a um homem. Caminhei com dificuldade, mas caminhei. Fui em frente, me arrastando, seguindo a mudança bem lá na retaguarda já sem interesse em mais nada. Eu só queria parar, só queria água. Água! Água! Água! Minha mãe de vez em quando olhava para trás para ver se eu não havia caído, se eu estava de pé. O sol de meio dia havia queimado com força e o da tarde parecia assar a pele bem devagarinho. Doía muito. A boca seca e a fraqueza inibia a voz da gente. Por isso o cortejo seguia em silêncio e a quentura ardia tudo ........................................................................ ..........................................................................................................
      Água. Água somente isso era o que eu queria. Não tinha.
   Passaram as roças, passaram os campos, passaram os pastos, passaram as baixadas, passaram as reservas, passaram os barrancos, passaram os montes, passou a tarde mas a sede não passou. De tardezinha parece que o sol tombou de vez. Bateu uma fresca. Sem preâmbulo de esperança de matar a sede que era insuportável, com o chegar daquela brisa parece ter amenizado um pouco o desespero.  Não posso afirmar, pois não lembro se pararam ou diminuíram a marcha, mas acabei alcançando o carro e os cacarecos da mudança. Caminhei um pouco junto deles.
        ................................................................................................. O carro prosseguia com seu toque preguiçoso e com as batidas das cangas, e o rangido dos tentos do couro cru presos nas argolas e nas pontas dos canzis..................................................... As gargantas ressequidas pediam urgentemente um pouco d’água. Estas foram as últimas cenas que guardei na lembrança no final daquele dia. O dia que mais passei sede em minha vida. 
     Escureceu rapidamente. Agora somente vultos se moviam no vão da estrada. Eu não conseguia enxergar nada, mas nessas horas nossas vistas começam a distinguir um vulto escuro dentro da própria escuridão. Assim andamos um bom trecho na imensa escuridão. Andava e cochilava, cochilava e andava. Balançando pra lá pra cá perdi o rumo e a noção de direção. Hoje imagino que se passou muito tempo até que voltei à cena da viagem, quando me encontrava sentado num barranco à beira da estrada. Quase dormindo, abri os olhos e vi uma luz que se acendeu e apagou à meia distância. Era fogo de binga. Alguém tentava iluminar o local. Percebi o vulto de minha mãe bem perto de mim, perguntei:
     _ Chegamos, mãe?
     _ Não, ainda está bem longe. Aqui é um cemitério.
     Assustei. _ Cemitério aqui, mãe? Como assim?
   Nesse exato instante, aproximou-se de mim um homem com uma moringa d’água, retirou o sabugo da tampa e colocou o bico na minha boca. Aí então eu pude beber água à vontade. Repeti. Respirei. Repeti e bebi mais uns goles, novamente respirei e por fim fiquei satisfeito. _ Que delícia, gente! Que delícia! Não consigo explicar.
        .................................................................................................             Muitos anos depois, revivendo esse episódio, ficamos sabendo que o tal homem   era um trabalhador, que se atrasou na execução de uma tarefa ali no cemitério. Um cemitério no meio do mato, antigamente existiam vários, Nunca pudemos confirmar a veracidade dessa informação. Hoje fico me indagando _ Seria um anjo que o Senhor colocou em nosso caminho?
  Quando aquela noite terminou acordei de um sono gostoso e comprido. O sol da manhã iluminava tudo ao meu redor. Amanheci deitado no chão, em cima de um saco de estopa estendido na areia fresquinha.
     _ Que gostoso! Com certeza adormeci ali, ou fui colocado por alguém naquele local. Era o terreiro em frente à nossa moradia. A casa era simples com escadinha de duas tábuas. No terreiro uma enorme paineira. Nesse dia não havia flores, admirei somente as casinhas de joão de barro. Os passarinhos gritavam agradecendo aquela linda manhã.
     Para mim, lugar novo, estranho, mas senti que transmitia paz. Era apenas o início de um novo dia, e eu ainda sentado ali no chão, recebia uma lição de humanidade dos nossos futuros vizinhos, que vieram ajudar.
   Aquelas pessoas vendo e reconhecendo nossa dificuldade deixaram seus afazeres, e ali estavam colaborando com seu auxílio. Uma das senhoras havia acordado mais cedo e matado uma galinha, e preparava comida para a nossa alimentação. Todos eles vieram ao nosso socorro, e ia nos ensinando que, mesmo estando na fila dos miseráveis, sempre temos ou encontramos alguma coisa para doar. Não precisamos de tanto... Precisamos apenas de uma iniciativa, vontade e coragem para ajudar o próximo, o irmão necessitado. É sempre grandioso aprender e divino sentir o que o outro sente. A ação daquelas pessoas que não nos conhecia naquele momento de muita precisão, foi tão importante, que logo observei na face de minha mãe um brilho de agradecimento, e andando para lá e para cá ajeitando nossos cacarecos transmitia calma e aquilo me deixou também contente.
    A casa estava iluminada pelo sol da manhã e recebia vida. A fumaça rodeou os cômodos e subia pela chaminé do fogão de lenha. Sinal que aquela mulher tomara a frente e já preparava alguma coisa para comer e beber. As demais pessoas ajudavam nossa mãe, ajeitando as coisas que estavam jogadas ali na grama. Não havia mais carro nem carreiro. Mais uma vez, nosso pai não estava presente. Eu sabia que ele estava no campo trabalhando. O trabalho dele era importante para a Fazenda.
    Eu não estava mais com sede. Caminhei pelo terreiro e encarei o quintal da casa cheio de mamoneiras, importante praça de exploração de crianças da roça. Encarei também a realidade de mais um dia simples e duro de minha infância...

        
   P.S. : Esse texto foi retirado do livro “Um pouco de açúcar branco” de Milton Lima. É um livro de poemas e crônicas, em que relata a vida dura do camponês pobre e abandonado pelos governantes... É uma catarse que, o autor faz para se livrar das lembranças tristes de um passado sofrido, que ao mesmo tempo lhe traz muitas saudades... Certas passagens chegam a doer na alma... Tão dolorosas e sem esperança...  (kimie oku)

       
        Mirandópolis, junho de 2015.
        kimie oku in


Um comentário:

  1. Kimie agradeço voce colocar aqui um trecho do meu livro. Depois de lerem a viagem as pessoas que me conhecem se interessaram mais pelo livro. Suas palavras também incentivam muito. Obrigado AMIGA. Abrcss...

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