segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

      Uma viagem surreal
        
        A noite passada tive um sonho estranho.
      Sonhei que viajava de ônibus pela estrada de terra para Tabajara, bairro distante do município de Lavínia. Meu destino era o sítio onde cresci e morei até minha adolescência, a uns quatro quilômetros antes de Tabajara.
        No ônibus havia apenas quatro passageiros, Noboru Sato um amigo de infância falecido há muito, uma mulher preta, um homem branco e eu, além do motorista que nem cheguei a vislumbrar.
     O sonho começa comigo dentro do ônibus (ou jardineira?) já chegando ao destino, numa das curvas do caminho. A estrada era de terra, então era cenário da minha infância, porque hoje a mesma está asfaltada. O Noboru que não consegui definir como era, estava se preparando para apear, numa curva antes de onde eu desceria. Acho que lhe pedi (não tenho certeza) para avisar ao motorista onde eu apearia, ou seja na curva seguinte... E comentamos que sobrariam apenas dois passageiros para prosseguir viagem.
E o sonho foi só isso.
Mas fiquei impressionada.
Não vi o ônibus parando, nem o amigo descendo, nem a minha figura chegando ao destino. Nem o ônibus seguindo adiante.
E o estranho é como explicar essa viagem para um lugar que não mais faz parte de minha vida. O sítio que antigamente tinha cafezais, terreiro para secar café, horta no brejo, um carreador estreito que fazia divisa com o sítio do Baiano, um cavalo branco chamado Brinco, algumas vacas no pasto perto de casa, um poço com água saborosa e uma casa simples e branca com janelas azuis, foi transformada num imenso pasto, reino do gado nelore de outras gentes. E quase nada mais resta daqueles tempos, nem o poço...
Lá só restaram o imenso bambuzal, que papai plantou há mais de setenta anos, o pé de guaivira, que nos forneceu tantos cabos retos de machado e enxadas... E algumas paredes da antiga casa, que virou pousada de gado... E de morcegos...
Nem sinal das duas seringueiras falsas de folhas redondas logo na entrada, do pé de limão galego, com que fizemos jarras e jarras de suco, dos pés de abacate, de manga Bourbon, espada, coração de boi, cujos frutos nos adoçaram a infância; dos pés de tangerina, mexerica, de laranja baiana tão sumarenta e doce! Do pé de amora junto à vasca de lavar roupa... E das fileiras de galpões de telha vermelha, onde gritavam sem parar, as brancas galinhas poedeiras...
Não entendi o meu sonho. O que me motivou para retornar ao passado, como se estivesse vivendo naquela época e viajando de jardineira, e descendo na reta, para caminhar a pé mais de um quilômetro de carreador para chegar até a casa? Para uma casa que nem era mais nossa? E o Noboru que só conheci moleque, porque depois eles se mudaram da vizinhança, e mais tarde acabou falecendo... Nunca mais o vi. E no sonho não consegui definir se éramos crianças, adolescentes ou adultos... Mas acho que éramos crianças, pois só o conheci nessa fase de sua vida.
Mas nada disso importa. O sonho foi um flash de vida vivida quando jovem. Aconteceu porque deve haver em mim, um desejo enrustido de voltar a viver tudo aquilo que vivi lá. Importa pensar que tenho um anelo, como a maioria das pessoas deve ter. O sonho de retornar à infância, de rever os lugares onde fomos felizes, onde reinamos com toda a inocência dos verdes anos... O sonho de resgatar um passado, onde tudo começou. Por isso, as imagens não eram nítidas e parecia uma imagem surreal...
Mas, retornar lá não tem mais sentido. O cenário é outro. Papai e mamãe já partiram para a morada definitiva, assim como um dos irmãos que tanto labutou naquelas terras. Os demais partiram para outras paragens e, levam uma vida completamente diversa, sem pensar em retornar ao passado, como eu.
Mas, eu tenho saudades... saudades.
Saudades das conversas ao pé do fogão de lenha sempre aceso, onde costumávamos assar  batata doce e espigas de milho verde... Da panela de ferro de onde retirávamos o arroz quentinho, do feijão cremoso no caldeirão vermelho de esmalte... Dos ovos fritos com fartura, porque tínhamos granja, dos queijos colocados ali perto para apurar, das linguiças de porco penduradas para defumar... Da bela e imensa mesa de madeira de pés torneados, que não levava toalha porque éramos tão pobres, onde se assentavam  todos(em bancos compridos) para as refeições... Do papai que ficava desenhando os ideogramas japoneses com as gotas de água,  que caiam das tampas (ai, como dói essa saudade!). Dos irmãos que comiam apressados para escaparem da mesa... Para irem chupar mexericas e tangerinas no pomar... Saudades das galinhas e dos pintainhos que ciscavam no quintal... Dos porcos famintos que gritavam pedindo milho... Dos cachorros que latiam anunciando visitas... Saudades das vozes, dos alaridos, da vida...
Saudades da lida na roça, onde nós crianças derriçávamos café maduro dos cafezais, que não acabavam nunca... Ou do terreiro, onde ficávamos rastelando pra lá, pra cá o café colhido para secar... Ou indo ao brejo com papai na Semana Santa para plantar alho, dente por dente... E plantávamos ervilhas... Que davam tantas vagens depois da florada de mimosas flores roxas, entre as folhas verde esbranquiçadas. Ervilha é uma planta elegante, frágil e muito linda. Sempre que consumo ervilhas em vagem, meu coração estremece de saudades do papai...
Saudades das colheitas de arroz. Mamãe comandava o trabalho. Havia uma espécie de jirau feito de ripas grossas, onde os feixes de arroz eram batidos para soltar os grãos dourados, que caiam sobre um encerado no chão. O arroz era plantado e colhido só para o consumo da família. Nunca faltou arroz em nossa mesa.
 Tudo era produzido pela família. Até frangos, ovos, leite e carne de porco. Era uma vida dura, feita só de trabalho e mais trabalho, mas a maioria das famílias era autossuficiente. Apenas o arroz e o café eram beneficiados nas máquinas da cidade. Beneficiar era retirar as cascas. O café era torrado e moído em casa, e o sabor era bem melhor. Torrar café não era brincadeira, uma quentura só! Ficar por horas rodando a torradeira preta, junto do fogão de tijolos improvisado no chão, debaixo das mangueiras... Fiz isso algumas vezes...
Não comprávamos legumes e verduras. Tudo era cultivado em casa. Lembro que o repolho era plantado no meio do cafezal e dava cada repolho imenso! Quiabo e tomate também eram plantados entre os pés de café. Lembro que consumíamos muita acelga fresquinha, que colhíamos ali no quintal. E alface repolhuda, de que comíamos só as folhas brancas... Tal era a fartura. E tomatinhos miúdos que eram usados para fazer molho, salada e tempero... E havia muita berinjela, vagem, cenoura, maxixe, jiló, mandioca, abobrinha, batata doce, batata inglesa e milho verde...
Éramos tão pobres em dinheiro, em roupa e em conforto, mas éramos ricos pela fartura de legumes, frutas e verduras, porque cultivávamos de tudo e trabalhávamos muito. Nem aos domingos descansávamos, porque era necessário retirar o leite das vacas para o consumo da família e, alimentar as galinhas da granja e recolher os ovos, e tratar dos porcos e das galinhas caipiras...
E tirar água do poço, porque era tudo assim rústico, bruto e no muque... E tínhamos que rodar o sarilho dezenas de vezes ao dia, para puxar a água do poço para a cozinha, para a lavagem de roupas e para os banhos... Ninguém desperdiçava água, porque não estava disponível em torneiras como hoje... E recolhíamos água de chuva das bicas dos telhados para lavar roupa. Era mais fácil que tirar do poço...A água de chuva é ótima para lavar os cabelos.
E as roupas eram lavadas sobre uma tábua, onde eram esfregadas com o sabão de soda, feito em casa com as vísceras dos porcos, que matávamos periodicamente, para o consumo de carne. O porco era castrado e colocado para engordar, para produzir a banha que era usada para cozinhar tudo. Não existia óleo vegetal ainda. E o dia da matança de porco era uma festa. Todos participavam com alegria, pois teríamos carne fresca e saborosa logo no almoço. E teríamos muita linguiça, que seria defumada junto ao fogão de lenha. E teríamos por uns dois meses, carne frita conservada em latas de dezoito litros dentro da banha de porco, que era o único jeito de conservá-la, porque ainda não existiam refrigeradores...
Rememorando o passado, percebo que nunca passamos fome nem sede. A comida sempre foi farta, embora fosse frugal, porque se constituía de muitos legumes e verduras. Mamãe fazia conservas de pepinos, de acelgas, nabos e mesmo que a horta estivesse sem produção, nós tínhamos legumes para consumir. Quando faltavam verduras, comíamos cambuquira refogada ou flores de abóbora feito tempurá. Cambuquira é broto novo de abóbora.  E comíamos muita mandioca cozida e frita. Ah! E consumimos muito broto de bambu, isto ocorria mais no final do ano, quando nasciam em profusão, por causa das chuvas.
E quando matávamos porco, levávamos um pedaço de carne especial para a vizinha dona Regina Pascoal, que retribuía da mesma forma quando matava seus porcos. Essa senhora pôs o apelido de Aurora na mamãe Torá, que ficou depois conhecida como dona Aurora... Os vizinhos eram uns italianos alegres e trabalhadores, que acabaram se mudando para o Estado do Paraná, e nunca mais soubemos deles... Um dia, alguém de casa foi até a casa deles e pediu o “salvador” emprestado. E eles ficaram confusos, porque o filho mais velho deles se chamava Salvador. Papai queria emprestado um fole, que jogava inseticida nos buracos dos formigueiros, que devastavam as nossas roças. E os japoneses apelidaram o fole de “salvador” porque realmente salvava as plantações...
Desses tempos duros, a melhor lembrança que tenho eram as idas à escola. Iniciei meus estudos numa escolinha rural, localizada na Fazenda Santa Emília do senhor João de Paula, que ficava distante uns quatro quilômetros de casa. Éramos minha irmã Neide e eu, tão pequenas e indefesas... Atravessávamos uma matinha perto de casa, com o coração suspenso de medo, porque às seis horas da manhã, a mata estava envolta em bruma e mal víamos o carreador...Qualquer barulhinho deixava nossos cabelos em pé... Depois, passávamos na casa do Aristeu, um colega que também ia à escola. Eles tinham uma olaria, que fabricava tijolos...Um animal atrelado a uma roldana, ficava girando em volta de uma caçamba, onde era colocado o barro para ser amassado... Então, era colocado em caixas de madeira, de onde saiam os tijolos depois de secos... Era uma fabriquinha de quintal, mas deve ter sido um sucesso, pois os tijolos eram muito procurados ... Acho que o privilégio deles era o fato de morarem perto de um riacho, onde existia argila, matéria prima para o fabrico de tijolos.
Nossa! Relendo o que anotei até aqui, percebo que fiz uma viagem através do tempo, e revivi partes de minha vida. O sonho permitiu que eu retornasse ao passado, e matasse as imensas saudades que moram em meu coração.
Na realidade já estive lá duas vezes com alguns familiares. Apesar da desolação do cenário, cada canto despertou fatos ali vividos e, chegou a doer por tudo ter passado.
Na última visita que fizemos há uns sete ou oito anos, fomos até o bambuzal que papai plantou há mais de setenta anos. E lá na sombra benfazeja, nos demos as mãos formando um círculo e, oramos por todos que lá moraram e acabaram partindo...
Foi um momento mágico, de comunhão com o passado.
E gratidão por termos sido tão bem acolhidos por aquele chão, onde deixamos para sempre as nossas pegadas...

Mirandópolis, novembro de 2015.
kimie oku in
http://cronicasdekimie.blogspot.com.br/

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