sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

 

                  Yuasa sama

     Quando me aposentei resolvi estudar Nihongô e, uma amiga me emprestou um livro de memórias da senhora Yuasa Natsuko. Tentei ler, não consegui. Daí, fui ver a autora para saber mais. Foi um desastre! Ela falava e eu não entendia nada! Nem consegui explicar a razão de minha inesperada visita... Apenas mostrei o seu livro, e ela entendeu! Falou, falou, misturando um pouco de Português, mas decididamente nada captei e me senti totalmente idiota. No final resolvi vir embora. Mas aí ela disse sorrindo: Mata oidenasai! Isso entendi. Falou pra voltar!

Naquela época, eu fugia das batians que cruzavam comigo na rua, por não saber conversar com elas. Passei tanto vexame sem saber como responder às suas perguntas, que resolvi estudar um pouco a minha língua materna, o Japonês.

Então, quando a senhora me disse pra voltar, voltei. Voltei dezenas, centenas de vezes. Durante quase vinte anos  frequentei a sua casa. Ela era fina, culta, educadíssima! Imagino o horror que deve ter sentido ao conhecer uma pessoa tão xucra como eu. Quando a conversa não prosperava, ela pegava um dicionário e falava a palavra em português! Recorria a gestos, a onomatopeia, tudo para que eu a entendesse. E isso se repetia sempre, para vergonha minha. Mas ela queria me ensinar e eu queria aprender. E pouco a pouco, bem devagarinho começamos a nos entender.

 E nossas tardes se tornaram prazerosas. Assistíamos a um pedaço de novela, noticiário e eventualmente a uma sessão de sumô, tudo pela NHK. E ela falava sobre o seu passado no Japão, de onde viera com quinze anos. Um dia, me perguntou se eu era a pessoa que publicava crônicas no Jornal da cidade. Ao ouvir o meu sim, ela começou a chorar. Fiquei desnorteada. Quando se acalmou me disse: “Por quê não veio três anos antes? Meu esposo teria ficado feliz em te conhecer.” Ate três anos antes, seu esposo lia minhas crônicas e as traduzia para ela.  Aí, foi eu que me emocionei. O homem era bastante respeitado, porque escrevia em japonês e em português... Quando achava a minha crônica dizia: Kyou mo notte iru, yomimashou! Hoje tem! Vamos ler! “Reflexões” que eu escrevia para o Jornal O Labor...

Mas ele falecera três anos antes...

A sua solidão me inspirou em criar um Grupo, para levar pessoas solitárias como ela para uma Chácara, onde pudessem aproveitar o ar do campo, ouvir o canto dos passarinhos e conversar com outras pessoas sós... Demorou, mas consegui formar o grupo Ciranda, com a ajuda de uns amigos. Esse grupo existe há treze anos e é um sucesso. Levamos os idosos e passamos a tarde cantando, dançando e conversando. Servimos um lanche e os levamos de volta. Infelizmente, não consegui levá-la nem uma única vez. Ela já estava com a saúde debilitada... Logo depois ela partiria para sempre...

Pela Ciranda já passaram mais de duzentas pessoas. Algumas mudaram de cidade, e muitas foram cirandar no céu, mas antes todos cirandaram felizes. Atualmente estamos com umas sessenta pessoas, ansiosas para se reunirem de novo, porque há quase dois anos interrompemos os encontros por conta da pandemia...

Sou muito grata à senhora Yuasa pelos ensinamentos que recebi. Ela tinha uma cultura sólida e admirável. Escrevia tankas, pequenos poemas de conteúdo profundo com versos de cinco, sete, cinco, sete, sete, totalizando trinta e uma sílabas. Seus tankas eram publicados nos jornais nipo/brasileiros do Estado.

Palavras que aprendi com Yuasa sama: sinsetsu/gentil, meiwaku/aborrecimento, tagaini/recíproco, misuborashii/miserável, tipokena/pequeno, tonikaku/por outro lado, kanshin/admiração, mite gorannasai/veja, kokoroatari/ideia,suspeita e uma dezena de palavras menos comuns. Ela falava a palavra, eu anotava no caderno e procurava a tradução no dicionário em casa.

Depois de ter sido iniciada por Yuasa sama, passei a comprar livros de biografias dos heróis japoneses e li muito. Livros destinados aos alunos do Curso Primário. Aprendi muito com isso.

Sempre que reúno o Grupo Ciranda que tanto consolou os idosos solitários, penso na senhora Yuasa. E quando escrevo, leio ou penso em Nihongô agradeço à bondade dessa senhora, que resgatou em mim o orgulho de ser japonesa. Hokori ni omotte iru.

Yuasa sama, arigatougozaimashita!

Itsuka mata aeru to omoimasu.

Mirandópolis, janeiro de 2022.

kimie oku in

http://cronicasdekimie.blogspot.com


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