segunda-feira, 15 de junho de 2015

                       Lazinho - por Milton Lima  
  
Trabalhando na Enfermaria de um Hospital, veio para os meus cuidados um pobre e desidratado caminhante. Chamava-se Lázaro, mas era conhecido como Lazinho.
      Não queria tomar banho nem aceitar os tratamentos. Convenci-o com muita astúcia dizendo que, eu era barbeiro profissional e cortava o cabelo de todos os pacientes. Ele acreditou com a confirmação de outro paciente, meu cúmplice. Concordou e tomou banho, cortei os cabelos, as unhas e apliquei os medicamentos necessários para a sua recuperação, que não demorou muito. Antes, porém consegui com o chefe da Lavanderia que, guardasse um cabo de enxada e um sacão com tudo que pertencia ao paciente. O homem insistia em jogar tudo no incinerador. Fui até a sua sala e disse que aquilo tinha muito valor. Valor altíssimo, pois era o mundo do Lazinho. Era tudo que ele possuía. O chefe não gostou, mas atendeu ao meu pedido e guardou.
      Como havia aprendido com a Professora Irmã Lacy, naquela profissão eu devia me inteirar dos problemas do paciente, interessar pelo seu mundo, do qual ele estava afastado temporariamente, ajudá-lo o máximo possível e assim ganhar sua confiança. Dizia ela em suas aulas: “Quem não conseguir isso, troque de profissão!”
      Assim aconteceu e o Lazinho ficou sendo meu amigo. Me chamava de Armito (meu nome é Milton). Tornou-se um paciente maravilhoso para o bem de sua recuperação, que demorou menos do que os médicos calculavam. No dia de sua alta, eu estava de plantão. Ele não conversava com a equipe. Comigo conversava o necessário. “Seu Armito, cadê o saco com as minhas coisas, o senhor guardou?” “Sim” Fui buscar e lhe entreguei. Entreguei também o pau.
      E ele foi embora por caminhos sem rumo...
      Um dia, encontrei-o a dois quarteirões de minha residência. Cabeça baixa, só olhava a metade do corpo de outra pessoa, mas me reconheceu. Aproximou-se e:
      “Seu Armito, o senhor está bom?”
      “Bem, e você Lazinho?”
      “Onde o senhor mora?”
Abaixei um pouco a coluna e mostrei no descampado de dois quarteirões, a casinha branca onde eu morava. E completei: “Vai lá” Ele olhou e fez: ”Hum”
      E já distanciando resmungou: “Tou indo pra Aliança!”
      Aliança era um bairro bem distante. Respondi: “Vai com Deus!”
Lazinho era um andarilho conhecido nos sítios e fazendas. De vez em quando aparecia na cidade, e desaparecia do mesmo jeito. Às vezes, demorava tanto que surgiam histórias mentirosas relatando com detalhes a sua morte.
Passado muito tempo fui avisado que o chefe da Enfermaria queria falar comigo. Fui até a sua sala e:
“Pois não! O que deseja de mim?”
“Estamos com um problema sério no ambulatório e fiquei sabendo que só o senhor pode ajudar.”
“De que se trata?”
“Tem um paciente lá embaixo que precisa urgentemente de internação. Encontraram-no caído numa valeta de enxurrada. Situação periclitante! Está muito bravo, até ameaçando pessoas e diz que só ficará internado aqui, se seu Armito for lá! Seu Armito é você?”
“Sim, sou eu. Deixe comigo, eu sei de quem se trata, estou indo para lá.”
Cheguei e pedi que todos saíssem. Estava quase morto, um molambo, um trapo de gente balbuciando palavras sem nexo. Se achava perdido. Magrinho de fazer dó, cor de palha. Anemia profunda. A pele parecia um pano branco encardido. De fraqueza e frio tremia ainda encharcado de barro. Fechei a porta para conversar. Segurei firme uma das mãos, com calma ele me reconheceu. Enrolei-o da cabeça aos pés com um cobertor grande. Aqui vou resumir o relato para apenas dizer que, depois de alguns minutos ele já estava calminho na Enfermaria, tomando soro sob meus cuidados.
O chefe veio saber e queria vê-lo. Não consenti e expliquei:
“Não entre aqui agora, o paciente pediu isso a mim e eu prometi que faria isso por ele. Ele está calmo mas poderá se alterar novamente.” O chefe compreendeu e foi embora.
Novamente acontecera o que já relatei da outra internação. Mas desta vez no dia da alta, ele fez um comentário. Aproximou-se para que eu compreendesse bem, e falou:
“O senhor é bom, igual seu Geromo.”
Seu Geromo a que ele se referia era um fazendeiro da região.
Perguntei: “Por que?”
“Seu Geromo não atiça cachorro, dá café e deixa eu dormi no rancho dele. Ele é bom, o senhor tamém é bom.”
Aquilo me fez refletir: “Seu Geromo é bom mesmo. Eu estou fazendo apenas a minha obrigação, sou pago para cuidar dos pacientes. Preciso melhorar."
Depois dessa segunda passagem pelo Hospital, o Lazinho sumiu novamente. Temporada longa sem notícias...

Do livro “Um pouco de açúcar branco” de Milton Lima.

Milton Lima é um cidadão que morou muitos anos em Mirandópolis, onde exerceu diversas atividades como Enfermeiro e como funcionário da CESP. No livro que publicou recentemente há crônicas e poemas, que falam das saudades da vida do campo. Foi um dos fundadores do Grupo Ciranda, que tem o objetivo de proporcionar momentos de lazer, para os idosos solitários da cidade. Atualmente, mora em Campo Grande e está sempre ligado com os cantores e compositores que cultivam a música caipira de raiz. Sua qualidade maior é a generosidade de seu coração, que exerce acompanhando amigos idosos e solitários para tratamento no Hospital de Barretos...

Mirandópolis, junho de 2015.
kimie oku in





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