segunda-feira, 30 de maio de 2016

       Gente de fibra
 RAIMUNDO BEZERRA DE SOUZA
 
     Gente de fibra de hoje é um pernambucano de 92 anos de idade, natural de Granito, cuja Padroeira é Nossa Senhora do Bom Conselho.
     É o senhor Raimundo Bezerra de Souza.

     Seu pai era paraibano e sua mãe pernambucana, e era gente que lidava com gado, lá nas terras de Pernambuco. E assim, o menino Raimundo nem teve tempo para ir à escola, pois tinha que cuidar dos bezerros do rebanho do pai.
     Na década de 40, seu Raimundo conheceu a senhorita Maura Cunha, de uma família que lidava com a lavoura de milho, cana de açúcar e arroz, lá em Rancharia, Pernambuco. Casaram-se e tiveram dez filhos, dentre os quais há um Administrador de Fazenda, um Peão que lida com gado, um Médico, um Agente de Penitenciária, um Advogado, um Contabilista e uma Professora. Havia mais uma Professora, mas infelizmente faleceu há 18 anos, vítima de grave doença. Houve também mais duas crianças, que faleceram quando muito novas.
    Em 1946, seu Raimundo e a família vieram de mudança para Guaraçaí, para trabalhar na lavoura, mas não deu certo. E por quase quinze anos, lidou com gado para o Açougue do seu Bianor, em Guaraçaí. Em 1949 vieram para Mirandópolis.  Nesse tempo, curou feridas de animais doentes, ajudou nos partos, vacinou, separou bezerros, conduziu boiadas de um lugar para outro. Dali, veio para a Fazenda dos Perez, e trabalhou no açougue, cortando os quartos de bois para servir a clientela.
    Trabalhou também no Açougue de Cláudio Martins, na Rua Gentil Moreira, ao lado do Bar do Asman.
    Nessa época, o povo comprava carnes em açougues, porque não havia os mercados atuais, onde se vende toda a variedade de carnes. E os Irmãos Antonio e Joaquim Pereira dos Santos tinham três ou quatro açougues na cidade. Os estabelecimentos se localizavam na Rafael Pereira, na Domingos de Souza e na atual Gentil Moreira.
    Seu Raimundo trabalhou nesses açougues e, somando todo o tempo dedicado ao serviço de peão e de açougueiro, cumpriu 35 anos no total. Aprendeu tudo sobre o ofício, sobre carnes de animais e também sobre os animais.    
    Ele conhece todas as variedades de carnes dos bois: filé mignon, contrafilé, alcatra, patinho, coxão duro, coxão mole, fraldinha, paleta, lagarto, e as reconhece mesmo depois de assadas. Ninguém consegue enganá-lo nas compras, trocando uma espécie por outra.
    Às vezes, levava uma boiada de um lugar para outro.
    Um dia, o senhor Shimoda lhe pediu que, levasse uma boiada de setecentas cabeças, saindo de Guaraçaí com destino a Córrego Azul ou Monte Azul, ele não se lembra direito, perto de Minas Gerais. Ele e mais quatro peões levaram a boiada, e só chegaram ao destino depois de quatro dias de viagem. As estradas eram muito estreitas e de terra batida, e quando duas boiadas se cruzavam, a menor tinha que ceder o caminho para a maior, mesmo que a diferença fosse de apenas uma cabeça. Era lei das comitivas.
    Como a viagem era demorada, havia naqueles tempos, pousadas para o pernoite das boiadas e para seus condutores. Chegava-se ao local e, efetuava-se a contagem das cabeças de gado, para colocá-lo no pasto. Na saída, contava-se novamente para conferir e pagar o aluguel do pasto. Seu Raimundo disse que, antes ninguém conferia, pois se acreditava na palavra dada, mas houve desentendimentos por conta de gente desonesta, que não queria pagar o que devia de fato. E assim, foi adotado esse sistema de contar cabeça por cabeça, para sanar dúvidas.
    Para os peões também havia lugar para descansar e fazer a bóia. Havendo espaços, armava-se a rede e ali mesmo descansava. Outras vezes, tinha que se deitar no chão sobre os pelegos usados nas montarias, e dormir enrodilhado nas capas.

  
    Nessas paradas, qualquer peão funcionava como cozinheiro, e o cardápio consistia de arroz, feijão, charque ou linguiça e farofa, invariavelmente. E muita água. Não se levava bebida alcoólica.
    Numa boiada, havia sempre o Ponteiro, que ia à frente, tocando o berrante, dando os avisos necessários. Seu Raimundo era o Berranteiro que ia à frente da comitiva. Atrás iam os Culatreiros, que não deixavam os bois se dispersarem. Geralmente, na frente ia o boi Sinceiro, com um sininho pendurado no pescoço, para conduzir os demais.
    Seu Raimundo com 92 anos tem um fôlego de dar inveja em qualquer jovem, pois toca o berrante, como se estivesse soprando uma cornetinha. E ele me explicou os diferentes toques: Na hora da Saída há um toque, convocando todos os peões e os animais para começarem a caminhada; outro toque para Acelerar; outro para Perigo à vista; outro para não Trotear ou andar mais devagar nas descidas das encostas; e outro para Parar. São toques bem diversificados, um tipo de código de comunicação, que os peões calejados no ofício reconheciam facilmente e atendiam de imediato.

Como nunca imaginei que o berrante possibilitasse essas diversificações, fiquei fascinada, ouvindo o seu Raimundo tocar. Disse-me que o berrante é uma coisa preciosa para ele. Já teve convites para tocar em Festas de Peão, mas não se interessou.
     Hoje, seu Raimundo está aposentado, e repito com 92 anos de idade, mas vai ao sítio e à fazenda da família, volta e meia. E lá, cura um bezerro, ajuda a vacinar o gado... Tem paixão pelos animais, e não gosta que os maltratem. Nunca bateu nos animais rebeldes. Nunca usou o chuço para aguilhoá-los, mas uma varinha verde com folhas nas pontas. É terminantemente contra shows, em que os peões maltratam os animais. Diz que estes devem ser respeitados.
    Dona Maura diz que, a maior dor de sua vida foi a perda de sua filha mais velha, a professora Riseuva que após muito padecimento, partiu deixando 3 crianças. Crianças que, os avós criaram com bastante amor, e hoje já são adultos e bons netos.   Ela diz que a sua vida foi muito dura, porque estava sempre sozinha com um bando de crianças, e muita roupa para lavar.   
     Roupa das crianças e roupa sujíssima de seu esposo, ora do açougue e ora do serviço de peão. A roupa era sempre difícil de lavar, porque ele se ocupava de serviço duro e bruto. E naqueles tempos não havia máquina de lavar...
     A maior alegria é a família que conseguiram formar, apesar das mil dificuldades que passaram. Dona Maura ficava só, enfrentando as tarefas do dia a dia, com o marido sempre ausente, trabalhando, trabalhando, dando duro nos difíceis e ásperos serviços que desempenhou. Todos os filhos herdaram essa paixão pelos cavalos e boiadas, sinal de respeito pela profissão do pai.
    E assim conseguiram criar os filhos e netos nos preceitos da educação, da confiança e do respeito. E seu Raimundo se orgulha muito da família que tem. Diz que os filhos sempre voltam à casa dos pais para vê-los, e isso é um grande conforto.  Seu Raimundo e dona Maura moram sós, mas há uma auxiliar que ajuda nos serviços domésticos, graças à atenção dos filhos.
     Quando eles aparecem, o pai e os filhos jogam um carteado animado e tudo vira uma festa. Só não apostam nada, ele diz que jogo com aposta destrói até a família, por isso ele ensinou os filhos assim, para jogarem apenas como diversão.
    Seu Raimundo tem muitas saudades dos amigos com quem conviveu nos tempos duros das comitivas, especialmente do saudoso Mané Rosa.
    Em casa, junto com a dona Maura, seu Raimundo curte a aposentadoria, olhando um para o outro: “prá ver quem é mais bonito, mas ela sempre perde, porque é mais feia” diz ele.
     E após muita brincadeira, seu Raimundo brindou-me mostrando a coleção de facas, os arreios dos animais, o rebenque e a famosa capa de montaria. E então, encerrou a nossa conversa com o som potente de seu berrante, que não esquecerei mais.
      Foi lindíssimo!
      Cidadão Raimundo Bezerra de Souza, que foi açougueiro e boiadeiro, nordestino calejado pelas tarefas ásperas e necessárias, que executou nesta vida e possui ainda a alegria de viver, é Gente de Fibra!
        Mirandópolis, 27 de maio de 2012.
               kimie oku in



   

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