sábado, 30 de julho de 2016

                        A alegria de ensinar
           
Estive lendo as autobiografias de alguns professores em Transversais 1 e 2 de Rosa Chimoni, minha amiga virtual do face book e constatei um fato, que me deixou muito triste.
São todas histórias bonitas de professores que dedicaram a vida toda à missão de ensinar. Cada um contou sobre as lutas, os estudos, as dificuldades da vida que tiveram que vencer e realizar o sonho de ser Mestre. Todas sem exceção são histórias de profissionais, que honram e engrandecem o Magistério e a Educação.
Mas... Senti uma tristeza profunda porque ninguém falou da alegria de ensinar e de aprender. Quando penso em minha vida de professora, o que vem à memória são aqueles lances de felicidade, aqueles “momentos/eureka!” que vivenciei vendo crianças descobrindo letras, lendo palavras, formando frases! Crianças tão acanhadas que se encolhiam de medo no início do ano, participando de brincadeiras de tabuadas e respondendo corretamente aos desafios dos colegas... Tímidas demais que de repente, acabam declamando!
Quando penso na minha longa vida de professora (31 anos!) só lembro de coisas que me fizeram feliz, muito feliz! Momentos de encantamento. De magia pura. Ser professora para mim foi descobrir com os pequenos, os segredos mais interessantes da vida.
Lá em Tabajara onde ingressei, tive um aluno chamado Estevão, que resolvia as operações matemáticas murmurando seus cálculos. Ele dizia: “3 vezes sete vinte e um, fica um e vai dois. 3 vezes 9 vinte e sete, fica sete e vai 2, mais os dois 4. Muito bem, Estevão. Parabéns!” Assim ele fazia com todas as operações, e eu achava o máximo! Do jeitinho que eu o havia estimulado!
Numa escolinha à beira do caminho, no meio de uma pastagem verde, onde cabritos berravam o dia inteiro havia mais de sessenta alunos... Todos procedentes do Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas... Todos sem certidão de nascimento! Vieram como retirantes da seca, para plantar e colher algodão com suas pobres famílias. Como obrigar os pais a regularizar a situação de seus filhos? Fiz uma reunião num domingo, porque os pais só tinham esse dia de folga. E lhes disse que essas crianças não existiam para a sociedade, que se morressem seria muito difícil enterrá-las legalmente. Foi o maior alvoroço. Eles ignoravam a necessidade da Certidão de Nascimento! No dia seguinte, nenhum aluno veio à Escola. Aí, enquanto matutava sobre o que acontecera, passou diante da Escola, o caminhão do patrão levando todos os retirantes e seus filhos para os registrar na cidade. E assim pude fazer a matrícula de todos eles! Tenho muito orgulho de ter feito isso. Eu havia contribuído para melhorar a vida dessas crianças. Isso foi há 55 anos... Hoje todos devem ser cidadãos engajados no trabalho. Ou aposentados...
No início do ano letivo, eu tinha o costume de pedir às crianças da segunda série, a certidão de nascimento. E na primeira página do caderno de Estudos Sociais, eu orientava para fazerem a sua ficha de identificação: Nome completo, data de nascimento, idade, nome dos pais, lugar onde moravam. Aproveitava a certidão para escrever corretamente seus nomes e os dos pais. E explicava a importância desse documento.
Numa ocasião em Amandaba, descobri um aluno do sexo masculino que fora registrado como sexo feminino, devido ao nome que confundia. Chamei o pai e expliquei a situação, e como era muito cara a retificação, fizemos um rateio entre os professores para a devida correção.  A família é grata até hoje.
Certa vez, estava ensinando os alunos da segunda série a escrever com canetas esferográficas. Nessa época, só se escrevia a caneta a partir da segunda série. Um menino chamado Samuel tirou a camisa e rabiscou todo o corpo e o rosto. E os colegas começaram a rir. E eu lhe dei uma bronca! “Samuel, você por acaso é índio? Índio é que pinta assim!” E ele: “Sou neto de índio, professora. Minha vó foi pega no laço!” Isso ocorreu há mais de cinquenta anos. Por onde andará esse Samuel Xavier?
Quando meu primogênito foi à Pré-Escola, um dia me perguntou: Mãe, por que tenho que cortar papéis todos os dias na Escola? E eu: Para amolecer os dedos para aprender a escrever. E ele: Então, não vou mais à Escola. Eu corto papel com a mão direita, mas escrevo com a esquerda. E não foi mais...
Quando minha irmã professora de quarta série organizou uma Feira de Ciências, pediu aos alunos que trouxessem ovos diferentes. E um aluno trouxe ovos de calango. Molinhos e pequenos. Quando ela indagou como os conseguira, prontamente respondeu: Apertei a barriga da lagartixa.
E assim, a gente foi aprendendo com os alunos muita coisa que nem passava pela nossa ideia.
Já como Supervisora, visitei uma classe de primeira série, no terceiro semestre. A professora estava toda atrapalhada com a alfabetização. Era a época da aplicação da Teoria de Emília Ferreiro, em que o professor proporciona condições, para os alunos construírem seu conhecimento. Como não sabia trabalhar com essa forma, os alunos não estavam alfabetizados e isso gerava só  indisciplina.  Pedi à direção da Escola que, liberasse os conjuntos de letras coloridas de plástico, que a Secretaria havia enviado às Escolas. Estavam todos lacrados, sem usar e a professora nem os conhecia. E eu havia orientado a Coordenadora Pedagógica, que liberasse esse material para as professoras alfabetizadoras usarem na sala de aula. Imperdoável falha!
Pedi aos alunos que se sentassem no chão e distribuí as letras. Foi uma festa! Cada criança formava os próprios nomes, e palavras que estavam acostumadas a ler no dia a dia como: Pare, papai, leite, Omo, gol, coca cola e outras que não lembro mais. A professora ficou tão emocionada e chorou! E me perguntou: “Por que você não veio antes?”  Como lhe explicar que essa era a função da Coordenadora Pedagógica, que havia na Escola?
Falando em material escolar, assim como essa Coordenadora que, não deixava as professoras alfabetizadoras terem acesso aos materiais pedagógicos, conheci um Diretor de Escola que guardava a sete chaves, as bolas de basquete, de vôlei e de futebol que a Secretaria da Educação enviava para a Escola. Uma das professoras de Educação Física que lá atuava e, completava a carga horária na mesma escola onde eu trabalhava, sempre me dizia que tinha que trabalhar com bolas murchas, rombudas, descascadas, porque o senhor Sete Chaves de lá não liberava as novas... E as bolas quicavam no chão e perdiam a direção a que eram destinadas... E as novas estavam no depósito se deteriorando...  Bolas têm prazo de validade, e acabam colando a borracha externa na câmara interna e aí não prestam mais! Ditadores existem até em Escolas!
Para concluir, um fato muito interessante ficou para sempre em minha memória. Um aluno da Comunidade Yuba, que até hoje só se comunica em japonês, escreveu uma pequena redação sobre o pai. E a professora ficou atarantada, quando o garoto escreveu a fala do pai. Usou o alfabeto japonês para reproduzir a bronca, que o pai lhe dera ao ver as notas do Boletim. Eu me lembro que a professora me perguntou: Como vou avaliar esse trabalho? E eu lhe disse: Dê-lhe a nota máxima, pois sabe se comunicar em duas línguas, professora!
Como vêm, a Escola é um mundo maravilhoso, onde todos aprendem. Os professores ensinam, mas também aprendem com os alunos. Com sua peleja de todo dia, com a persistência em vencer etapas, em decorar tabuadas... em escrever corretamente.
Para mim, Escola significa um campo vasto, onde os milagres acontecem todos os dias. Para mim foi o caminho da Felicidade.

Mirandópolis, julho de 2016.
kimie oku in




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