quarta-feira, 16 de novembro de 2016

      Um Convite...
  
        Estava eu sossegada da vida no meu cantinho, cuidando de meus afazeres, quando o telefone tocou.
      Era a Regina Rosado, a amiga e colega de profissão, que de vez em quando me amola com seus pedidos de frutas bizarras como jatobá, jaca, macaúbas... Às vezes atendo, outras finjo que nem lembro... Né, Regina? Gosta de frutas silvestres e mora na cidade... E eu é que pago o pato...
      Então, ao atendê-la pensei:  “Mais jaca? Mais jatobá?”
      Não era, felizmente. Era um convite.
Não é que de vez em quando ela se lembra de mim?
Convidou-me aliás, intimou-me para a Confraternização dos Professores Normalistas formados em 1965, pela Escola Noêmia Dias Perotti. Comemoração de 51 anos de formatura. Relutei muito em aceitar, porque não sou da mesma turma. Minha turma é mais antiga, pois nós concluímos o Curso Normal em 1960. No ano passado, quando esse mesmo pessoal se reuniu pelo cinquentenário de formatura, tive que participar porque a moça é um grude e não aceita uma resposta negativa.
Mas, o convite não é de graça, ela me cobra uma crônica sobre o evento... E aqui estou a cumprir o pedido. Se bem que o Ademar Bispo, que é um excelente contador de “causos” deveria ser o cronista, porque é da mesma turma de formandos.  E cobrei dele o relato desse acontecimento. No final, acho que haverá duas crônicas, contando as mesmas coisas. Os leitores que nos perdoem.
De qualquer forma, fui... Mesmo porque me pegaram na porta de casa, com direito a entrega em domicílio. Chique, não?

E confesso que foi uma noite agradável, pois conheci as Irmãs Kato, que eram da 1ª Aliança, e revi uma porção de amigos como a Naoe Miyamoto, a Makie Nakamura, a Rosély de Carvalho e seu esposo Luiz, a Zilda Zonzini, o Ademar Bispo, a Margarete Zuin, o Josué Tomás D’Aquino, a Zilda de Lima, a Tereza Veronese, e ainda outras convidadas especiais como a Chisuro Shimosako, a Regina Siminari, a Eloice do Jornal, a Simone Rosado, a Minako Okubo, a Jacira do Bispo, a Prefeita eleita Regina Mustafa  e a anfitriã da festa, Regina Rosado.
Percebi que passados 51 anos de formatura, todos continuam firmes, caminhando sobre os próprios pés e com muita alegria de viver. E olhei com orgulho para essa turma de profissionais aposentados que, cumpriram sua missão corajosamente, e se mantêm com energia para reencontrar os antigos colegas estudantes.  Alguns vieram de longe, viajando a noite toda só para esse Reencontro. E todos estão na fase dos setenta anos de idade. Brava gente brasileira!
Toda vez que reencontro antigos colegas, é inevitável pensar em como foi dura nossa missão como Professores. Todos nós começamos nas décadas de 60 e 70 trabalhando em escolinhas rurais, tão distantes da cidade.     Hoje essas escolinhas nem existem mais. Muitos de nós tivemos que morar nas fazendas, sem conforto algum, sem contato com outros colegas de trabalho. Os professores só se encontravam na Reunião Pedagógica, que acontecia uma vez por mês, na sede do trabalho que era um Grupo Escolar, sob a orientação de um Diretor.  E mesmo os Diretores tinham pouco a oferecer em termos de orientação pedagógica. Estavam sempre preocupados com a administração das escolas, com a papelada, com os funcionários...
     Pois bem, os jovens normalistas recém formados de 19, 20 anos de idade, com a cabeça cheia de sonhos eram enviados a escolinhas rurais, distantes das cidades vinte, trinta quilômetros... As estradas eram de terra, que viravam poeira no Verão e um terrível atoleiro na época das chuvas. As escolinhas ficavam no meio do nada, e o professor era obrigado a morar no local, porque não havia meio de transporte para viajar diariamente. Acabava morando na casa de um peão da fazenda, onde não havia conforto algum. A luz era à base de lamparinas de querosene. Os alunos andavam quilômetros para chegar à escola. Eram todos carentes e não levavam lanche. Mais tarde os professores tiveram que fazer a merenda num fogãozinho à lenha... Alimentar o corpo e a mente, dura missão. Professor cozinheiro sem nenhum abono.

O meio de comunicação local era apenas o rádio... Televisão nem existia, menos ainda telefones e celulares... Jornais nem chegavam lá. Eita, vida dura e sofrida! Até hoje me admiro de ter vencido tudo isso! E todos os professores dos anos sessenta, setenta e oitenta passaram por isso.
  Mas, a parte mais difícil era a pedagógica!
  Na mesma classe estudavam alunos do primeiro, do segundo e do terceiro anos... E o professor sozinho tinha que dar conta de toda a programação para cada turma, em quatro horas diárias de aulas... O processo de Alfabetização era complicado, demorado e muitas vezes infrutífero... Como material pedagógico só a Cartilha Caminho Suave de Branca Alves de Lima, que nada tinha de suave e mais nada... Era desanimador, porque enquanto, o professor escutava a leitura do terceiro ano, os alunos do primeiro começavam uma briga, por não ter o que fazer... E quando ele explicava algo para uma turma, a outra ficava prestando atenção, esquecida de suas obrigações... Professor tinha que ser Malabarista, Artista, Mãe, Orientador, Fiscal, Cozinheiro, Controlador... Era um verdadeiro circo, onde o Professor atuava muitas vezes como o Palhaço Mor... O show tinha que acontecer todos os dias e o professor vivia ansioso, porque o tempo urgia e a programação era extensa. 


Acho que, nenhum professor de escola rural conseguiu dar cabo da programação oficial a contento, mas fizemos o melhor que podíamos. Todos nós tínhamos consciência de nossa missão e  a cumprimos, mesmo através de ensaios e erros. Aliás mais erros que acertos. Muitos erros infelizmente, por total ignorância pedagógica. 
Tudo isso nós vivenciamos, sofremos e jamais esqueceremos. E nunca ganhamos uma medalha por isso. Nem um pagamento extra por trabalhar em classes com 40, 60 alunos. Havia muitas crianças naqueles tempos. Tive uma escolinha com mais de 60 alunos, todos xucrinhos até no linguajar e nos procedimentos, sem uma certidão de nascimento. Todos descalços e maltrapilhos, vindo do Norte em paus de arara... Mas sinto muito orgulho ao me lembrar que, forcei os pais a registrar esses filhos e regularizar sua documentação. E eu tinha apenas dezoito anos de idade! Como teria sido difícil a vida daqueles meninos sem um documento pessoal, se eu não tivesse forçado os pais!
É claro que o ensino ministrado por nós ficava sempre incompleto, por falta de tempo. E trabalhávamos quatro horas por dia, durante seis dias na semana, incluindo os sábados. Só descansávamos aos domingos. E o ano letivo começava no dia 14 de fevereiro e ia até 14 de dezembro, sempre. As férias eram no mês de julho e todo o mês de janeiro e parte de fevereiro. E não havia o costume de fazer pontes, emendando feriados e fins de semana. Dia letivo era dia letivo, religiosamente. E conseguimos passar o básico para aquelas crianças, a leitura e a escrita, as tabuadas, noções de Higiene corporal, e partes mais importantes de nossa História. Todas as pessoas sabiam o significado de 7 de setembro, de 15 de novembro, de 19 de novembro.
Conseguimos de alguma forma alfabetizar crianças e encaminhar muitos meninos na vida. E o maior prazer de um professor é reencontrar ex-alunos, que nos reconhecem e vêm dar-nos um abraço. Às vezes, levamos um susto por receber um abraço de um senhor desconhecido, que lá no passado fora aluno nosso. Isso é muito gratificante.
 51 anos já passaram. E os antigos mestres estão ainda firmes e contentes da vida, relembrando tantos fatos interessantes que preencheram suas vidas no contato com alunos. E todos têm imenso orgulho da profissão que escolheram, porque não há missão mais bonita e gratificante que a de um Professor.
Professor é aquele que abre os caminhos da mente, para os jovens descobrirem os seus caminhos, e realizarem seus sonhos.
O verdadeiro Professor é aquele que sempre tem a mente aberta para aprender e ensinar.
Professor que foi Professor de verdade não viveu em vão!
E nós nos orgulhamos muito por isso.


      Mirandópolis, novembro de 2016.
kimie oku  in
http://cronicasdekimie.blogspot.com.br/


Nenhum comentário:

Postar um comentário