sexta-feira, 22 de novembro de 2019


               Prazo de validade

Ultimamente, tenho sentido que os anos estão pesando no corpo. Não aguento carregar pesos, mesmo comprinhas à toa, que muitas lojas fazem a gentileza de entregar em casa. E se fosse só isso, tudo bem. Mas, a coordenação motora não está boa e derrubo coisas facilmente, corto os dedos, tropeço facilmente...
Há um tempinho que estou me observando. E notei que trombo com portas, paredes e pessoas facilmente... Tropico também no próprio chão liso da casa... Será Alzheimer? Será Parkinson? Será demência? Dona Kimie, a coisa vai mal.
Não consigo caminhar em linha retinha nas ruas, ando como bêbada... E as pernas logo ficam cansadas, mesmo com calçados bem confortáveis... E manter o corpo ereto é difícil, ele vai tombando pra frente, mesmo com o firme propósito de andar elegantemente.
Mas cuido do corpo, faço alongamento todos os dias, caminho todas as noites, físio duas vezes por semana... Assim mesmo, lutando todos os dias, o físico da gente tem prazo de validade, e nada vai impedir de chegar ao fim.
Entretanto, ainda faço bordados, crochê, costuro à mão, escrevo, toco piano. Então a coordenação motora fina está indo muito bem, obrigada. Então, por quê as pernas  perderam a agilidade? Por quê os braços não sustentam pesos e não têm a flexibilidade antiga?
Sete décadas bem vividas não são pouca coisa, ainda mais me aproximando das oito. Já carreguei muito peso, já corri, já pulei, já andei quilômetros, já trabalhei aceleradamente... Hoje já não faço mais.
Felizmente, ainda consigo preparar as refeições, manter limpa a casa, lavar roupas, fazer compras, dirigir carro. Mas, tudo em câmara lenta, porque me canso à toa e se me apressar corto os dedos, derrubo os copos, quebro pratos, derramo água... E procuro ruas de menor tráfego para evitar colisões, e jamais tento estacionar em espaços limitados, porque sou barbeira de fato. Minha visão periférica...
Mesmo assim, consigo cuidar de mim mesma sem a ajuda de outrem, e procuro sempre caprichar na higiene, pois gente velha já não é bonita por natureza. E suja não dá para encarar, né?
E eu percebo que os idosos da Ciranda sempre capricham no visual quando há encontros. Cuidam dos cabelos, vestem roupas mais alegres e usam calçados bem confortáveis. Nesse aspecto, a Ciranda provoca um ânimo, porque ninguém quer comparecer mal ajambrado e sujo. Todos, todos vão cheirosos, com um sorrisão estampado e vontade de abraçar todo mundo. Até os homens sempre capricham no visual. Isso é bem animador.
Fico encantada de constatar que tem gente beirando os noventa anos que canta, que ri, que dança e não tem preguiça para fazer um pão caseiro como a dona Fermina, para o nosso lanche. Como a dona Rosinha que encara qualquer saída de casa, porque não gosta de ficar sozinha... Com mais de noventa aninhos... Como o Zeferino que mesmo com noventa e uns anos toca violão para animar os cirandeiros... Eu fico cansada só de vê-los atuando.
Estou velha de fato. Taí, a triste conclusão sobre mim mesma.
Nada impede a ação do tempo, os estragos dos anos...
Aceitar o inexorável é  muito difícil!
Fazer o quê?
Mirandópolis, novembro de 2019.
kimie oku in




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