Vocação
Acontece que na pobre casinha onde moravam,
só havia duas preciosidades: uma máquina Singer de costura e um velho
despertador, movido a corda. Aqueles despertadores antigos faziam muito barulho
com seu tic tac, tic tac intermitente.
Ora, os dois moleques de seus seis, sete anos
trancados em casa, ficaram olhando o relógio e quiseram ver como ele
funcionava. Pegaram a coisa e fuçaram daqui e dali pra verem de onde vinha o
barulho... Curiosidade natural de criança.
Quando meus pais voltaram da roça, o
despertador já era. Um monte de pecinhas espalhadas no chão, que eles não
conseguiram montar de novo. Com certeza, levaram uma surra.
Mas, papai contou essa história dezenas de
vezes, porque se orgulhava de ver como os meninos eram espertos e curiosos
desde crianças...
Um dia, quando meus filhos ainda eram
crianças, fomos ao antigo Play Center que havia em São Paulo. E o Hideo meu
irmão foi junto com seus filhos. E toda a criançada se esbaldou na roda
gigante, nas enormes xícaras que rodavam com a gente dentro e outros
brinquedos. Mas o sobrinho Walter não parecia curtir a diversão. Estava
inquieto, olhando aqui e ali como se procurasse algo. E o pai lhe perguntou o
que o incomodava. E ele muito sem jeito, disse que só queria saber como essas
máquinas funcionavam... Curiosidade de criança.
Quando o Presidente
Juscelino Kubitschek de Oliveira trouxe a Indústria automobilística para o
Brasil, lá pelos idos de 1960, papai disse que em breve haveria necessidade de
mecânicos para consertar carros. E mandou os meus irmãos deixarem a lavoura
para aprender essa profissão.
E foi assim que começou a vida dos
graxeiros...
Na família Osaki, há muitos varões entre os
nisseis e sanseis, gerações descendentes de papai e mamãe. E grande parte deles
gosta de graxa. Graxa mesmo! Essa graxa que suja os macacões e encarde as mãos.
Tive quatro irmãos mecânicos, que passaram a vida consertando carros. Quem
gosta de graxa, gosta de por a mão na massa e, sente o desafio de fazer a
máquina funcionar... Sofri muito para lavar os macacões...
Aquele menino que no Play Center queria saber
como as rodas funcionavam virou mecânico e gosta do que faz. Tenho um filho que
não mexe com carros, mas é louco por motocicletas... E outros sobrinhos também
escolheram as motos para sujar suas mãos.
E tive um sobrinho que passou a vida a
consertar motos e mais motos. Sempre diante do desafio de novos modelos, novas
velocidades. E como as motos atraem motoqueiros, ficou conhecido como o Hata
que conserta motos. Aqui ficou conhecido pela Oficina Motomira, onde serviu a
vasta comunidade de motoqueiros da região. Mais tarde em Araçatuba, passou a
preparar motos para competições, realizando com certeza um grande sonho. E
participava de um grupo imenso de gente que gosta de duas rodas... Foi ele que
iniciou o meu filho como graxeiro...
Mas, de repente, ele que vivia acelerado
(qual motoqueiro não vive acelerado?) parou no meio do caminho...
Tão de repente...
E foi acelerar no céu...
Todo motoqueiro gosta de viver intensamente.
Imagino como essa febre deve atingir quem sabe das engrenagens, e conhece o
funcionamento da máquina. Mas, a máquina humana é muito vulnerável. É muito
frágil. Muitas vezes, o profissional fica tão envolvido no desafio de consertar
as máquinas, que acaba se esquecendo das urgências de sua máquina pessoal... E
foi o que aconteceu.
Mas, não podemos lamentar.
Foi breve? Foi muito breve!
Gostaríamos que tivesse continuado a
caminhada, porque partiu na flor da idade. Mas, quem sabe dos desígnios de
Deus? E quem sabe, ele não sonhava acelerar entre as nuvens???
Ficou na família uma estranha sensação de que ele não terminara
a corrida. Porque parou com apenas sessenta anos de idade. Tinha muito que
produzir ainda, tinha muito que viver ainda, tinha muito que usufruir da vida.
Mas... Um vírus deu o Stop.
E eu olhando as velhas fotos da família achei
esta que, já prenunciava o futuro dele. Era pequenino, mas “arteiro” como se
dizia na época. Tinha que fuçar nos brinquedos para descobrir como
funcionavam... Com uma ferramenta transformou o seu mundo. Transformou sua vida.
E a vida de muita gente.
Tal como os meus irmãos que desmancharam o
despertador, o Walter que queria saber como os brinquedos do Play Center
funcionavam, ele também tinha essa curiosidade natural, que preencheu a sua
vida.
Tenho certeza que foi muito feliz fazendo o
que gostava.
Que esteja feliz lá no infinito, de onde
possa visualizar este vasto mundo e proteger as pessoas que amou.
Sérgio Hikuo Hata, que esteja com Deus.
Mirandópolis, abril de 2021.
kimie oku in
http://cronicasdekimie.blogspot.com.
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