sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Tabajara

Há tempos que sinto vontade de escrever sobre esse lugar, que frequentei muito no passado. Como não tinha e nem tenho ainda o histórico do Bairro, fui protelando, protelando.
Mas, de uns tempos pra cá, sinto certa urgência em escrever tudo que penso e sinto, como se o tempo estivesse se esgotando. Premonição, talvez? Então resolvi puxar pela memória e, registrar tudo que lembro desse lugarzinho perdido de Deus...
Conheci Tabajara em 1951 quando tinha nove anos de idade, e passei a frequentar a Escolinha que havia ali. Era uma Escolinha de roça, de tábuas sem pintura e envelhecida pelo tempo. A classe era composta com alunos de três séries.
A Professora leiga era dona Engrácia Teixeira Martins, uma senhora já um tanto madura, casada com o português seu Manuel da venda. Lembro que a senhora usava óculos e conseguia se impor com respeito, pois era rigorosa nos procedimentos: ficar em pé perfilado para a leitura de livros, sentar-se corretamente para copiar textos da lousa, ou quadro negro (não havia lousa verde ainda). A postura dela já impunha respeito, embora fosse gentil com os alunos.
Ela me ensinou a usar tinta para escrever. Só na terceira série é que ensinavam a escrever à tinta. Levávamos um vidro de tinta Parker ou Ink, que encaixávamos no buraco da carteira, e molhávamos a pena nessa tinta azul para escrever. Era complicado, e manchávamos a blusa com a tinta, que era difícil de sair. Borrávamos os cadernos, os dedos e a blusa do coleguinha da frente... Mais tarde inventaram folhas de mata borrão que absorvia num segundo toda a tinta derramada. Acho que foi o protótipo do papel toalha. Não existiam as Bics ou canetas esferográficas...
Essa professora que me ensinou tanto não tinha filhos e, certa vez adotou um menino, que se chamava Pedrinho. Ela cuidou dele como um Príncipe. Anos mais tarde soube com pesar que, essa querida Professora acabou falecendo esquecida num Asilo em Valparaíso... Dona Engrácia Teixeira Martins.  
Acho que por essa época foi instalado o Grupo Escolar de Tabajara, que atendia às quatro séries iniciais em salas separadas. O Bairro era populoso e havia muitas crianças para estudar.
 O quarto ano estudei com uma Professora mulata, dona Geralda de Almeida, que veio de fora e se hospedava na casa de dona Engrácia. Dona Geralda era alta, elegante e muito competente como Professora. A Festa de Formatura que ela promoveu no fim do ano foi a primeira, e foi um acontecimento no Bairro.  O ano era 1952. Eu e minha irmã fomos com um vestido de organza rosa, muito bonito. Foi o primeiro traje de gala em nossas vidas, por isso nos marcou para sempre. O que será que foi feito deles?
Morávamos num sítio no Bairro Oriente, distante uns quatro quilômetros de Tabajara, e íamos todos os dias caminhando até a Escola. De casa, éramos minha irmã Neide e eu, mas pelos carreadores iam se juntando outras crianças. Lembro-me do Noboru Sato, da Yoshie Takahashi, do Katsuyoshi Watanabe, e muitos mais que esqueci ...  Éramos mais ou menos dez crianças. Ao meio dia saíamos e caminhávamos de volta.  Às vezes, encontrávamos boiadas, e era um Deus nos acuda, correndo pelos cafezais, com medo das vacas. Os boiadeiros nem se preocupavam com a gente.
 Às vezes, o senhor Emílio de Leão passava com seu caminhão e nos dava carona. Ele nunca negou carona para crianças de Escola. Os meninos trepavam na carroceria e nós meninas vínhamos na boléia, conversando com o seu Emílio. Quando mais tarde voltei como Professora, seu Emílio estava sozinho, solitário e triste. Fui almoçar umas vezes com ele. E ele me agradecia muito. Mandava sua cozinheira apanhar umas uvas da parreira e, me dava para distribuir entre os colegas da Escola. Seu Emílio Leão... Sempre passávamos na casa dos Takahashi, e tirávamos um balde de água fresca do poço, que bebíamos com prazer...
Tabajara era um lugar bem pobre, a maioria das casas era de tábuas sem pintura, as ruas eram de terra batida, que levantava poeira nos tempos secos e ficava lamacenta em dias de chuva. As famílias se dedicavam à cultura de café.  E no lugar havia bares, dos quais se destacava o do seu Maciel, que era o dono do Bar do Ponto, onde paravam as jardineiras que conduziam pessoas pra lá e pra cá, isto é para Lavínia e Indaiá Paulista. Havia uma Farmácia, cujo proprietário se chamava Cesarino, se não me falha a memória...
Havia Vendas ou Armazéns, que vendiam de tudo desde alpargatas, tecidos em metros, chapéus de palha, fumo de corda, pinga ou cachaça e ferramentas para o trabalho na roça, como enxadas, foices, pás de arado para tombar a terra, máquinas manuais de plantar algodão, peneiras, baldes, bacias, rolos de cordas, querosene, açúcar cristal... Tudo era vendido a granel, isto é pesado na balança, ou cortado em metros.
Era uma espécie de Supermercado, mas sem a organização deste. Tinha um balcão, onde se debruçavam os fregueses, que normalmente tomavam uma cachaça enquanto faziam seus pedidos. Eu me lembro que existia o Armazém do seu Manuel Português, que era bem sortido e vendia até tecidos finos, do seu Emílio Leão, do Redentor e o do seu Fermino Pavesi. Tinha um Açougue, uma Padaria, Uma Casa de Tecidos, acho que era Casa Aurora, uma pequena Livraria e a filial do Cartório sob a administração de Dona Hirtz Brandão, que morava em Lavínia. Essa senhora gostava muito de ler, e como havia pouco serviço, estava sempre curvada sobre um livro, lendo. Usava uns óculos fundo de garrafa, isto é de lentes bem grossas... Era culta e eu gostava de conversar com ela.
Havia também outras portinhas, acho que havia uma sapataria e a venda da Família Tonhon. Somando todas as lojas não dava um quarteirão completo. Os fregueses compradores vinham dos sítios e fazendas e, normalmente traziam uns sacos brancos de tecido, onde colocavam as compras, que eram transportadas nos animais que montavam. Os animais ficavam amarrados nos tocos diante dos botecos em plena rua.
Mas, o lugar mais importante era a Capela de Santo Antônio, construída pelo Padre Epifânio de Mirandópolis. Ficava num Largo, com árvores que ofereciam sombras nos dias quentes. Era simples e bonita, e fui batizada ali junto com meus irmãos.  No mês de junho, no dia 13, dia de Santo Antônio havia uma celebração solene, com quermesse e muita festa. Começava com a missa celebrada pelo padre, que era muito rigoroso, e depois soltavam-se foguetes ou rojões e a festa enchia as ruas do Bairro, com footing das moças e dos rapazes, que vinham namorar ou apenas flertar... Era um vai e vem de moças andando pelas ruas e os rapazes paquerando-as...
Era o tempo das sanfonas que enchiam o ar com as modas da época, das quais me lembro “Que beijinho doce”, “Encosta tua cabecinha no meu ombro”. As músicas eram divulgadas através do rádio, que televisão nem tinha sido inventada ainda. Todo mundo queria ter um rádio, que era um luxo.
Eu me lembro de um acontecimento trágico. Um menino de uns quatro anos de idade bebeu muita pinga, que os moços do Armazém lhe deram como brincadeira. O garoto bebia a pinga e ficava cambaleando. E os moços se divertiam muito, dando sonoras gargalhadas. À noite, o garotinho faleceu. Irresponsabilidade total. E nunca fiquei sabendo se os moços foram punidos. Se não me falha a memória, eram uns moços que trabalhavam na Venda do seu Emílio Leão...
Das famílias moradoras no Bairro, lembro de alguns nomes: os Pavesi, os Leão, os Tonhon, os Barranco, os Gonfiantini, os Muelas, os Molinas, os Maciel, os Bogaz Sagrado, os Santa Terra... E nos sítios e fazendas moravam os Zequini, os Basso, os Pereira Nunes, os Martins... Havia muitos mais, mas a memória as apagou...
Os lavradores em geral lidavam com café, e quando veio a crise da superprodução, em que sacas de café foram queimadas no país inteiro para segurar o preço, o Bairro entrou em total decadência. O café deu lugar à Pecuária, mas como requeria pouca mão de obra para o manejo do gado, as famílias ficaram desempregadas e acabaram se mudando para a cidade, ou seja para Lavínia. E Tabajara foi encolhendo. Foi o começo do grande êxodo rural, que inchou todas as cidades do interior.
Em 1964, voltei como Professora. E o Grupo Escolar funcionava em dois turnos com quatro salas de aulas, uma Sala do Diretor e uma Sala dos Professores. Fiquei apenas dois anos lecionando na Escola onde estudei. Foi um prazer enorme voltar como Professora.
O Diretor era o senhor José Corral Clemente e os colegas José Gomes Moreno, cujo apelido era Zé Groselha, Rubens Alves Donalonso, Maria Elisa Sanches Cassitas e Hilda Pereira dos Santos Barroso. (Por onde andarão esses amigos?) O Servente era o senhor Joaquim, a quem os meninos atormentavam cantando: “Seu Joaquim, qui ririm, quin quin, da perna torta, rara tatá...” Ele ficava doidinho e corria atrás dos moleques. Mas era uma pessoa muito boa. No final do ano fomos convidados para almoçar em sua casa.
Dei aulas para os alunos do terceiro e quarto anos, e nessa época, as classes eram formadas por uma série apenas. Assumi classes com mais de quarenta alunos. Antes, nas escolinhas rurais por falta de crianças, numa só sala havia alunos das três séries iniciais, e era muito difícil para o Professor dividir o seu tempo, com ensinamentos para os três grupos. E havia aula aos sábados. As classes de série única ofereciam mais conhecimento aos alunos, pela disponibilidade de tempo.
O ano letivo começava em 15 de fevereiro e terminava em 14 de dezembro, com férias no mês de julho. Não havia paradas e nem se emendavam feriados. Aula era rigorosamente obrigatória e os alunos não faltavam. Professores levavam tudo muito a sério. Não havia também pagamento de horas/atividades, que hoje são pagas pelas horas que o Professor prepara aulas, e corrige os trabalhos dos alunos. Só que o Professor era muito respeitado pelos alunos, seus pais e comunidade. Outros tempos... Outros valores...
Lembro também que, chamávamos o Paulinho Sato do Bar do Ponto de Lavínia para nos substituir, em nossas faltas abonadas. Ele estava no último ano do Curso Normal e, ficava feliz por essa experiência. E combinávamos entre os colegas para alguém faltar no sábado, e outro na segunda feira, para o Paulinho ganhar o Domingo também.
Quando voltei como Professora, só corria um ônibus, que fazia o percurso de Mirandópolis a Lucélia. Saía às seis horas daqui e voltava às dezesseis horas de Tabajara. Afora isso, só carona e, em geral eram caminhões que transportavam boiadas. Muitas vezes fizemos o percurso até Lavínia a pé, e até hoje me admiro de ter superado isso, porque eram dezoito quilômetros de terra batida, poeira e sol ardente... Os pés queimavam na areia quente, e não havia bloqueadores solares para nos proteger. Hoje nem os alunos caminham, mesmo morando a uns quarteirões da escola.
Duas coisas marcaram essa estrada cheia de curvas de Tabajara. A primeira era um pau d’alho velho que existia numa baixada, à beira da estrada. De longe, ele exalava o cheiro de alho, e quando o sentia ficava aliviada, porque já estaria chegando em casa, daí um quilômetro mais ou menos. Isso foi na infância.
Outra marca era o Cemitério na curva do caminho. Era um cemitério rural, onde se enterravam os mortos de Tabajara. Era tão pobre, cercado de balaústres, e mesmo quando criança nunca tivemos receio de passar em frente. Apenas calávamos a boca em sinal de respeito e nos persignávamos. Mas, uma coisa nos incomodava muito. É que o coveiro plantava milho lá entre as covas... Ficávamos imaginando quem comeria daquelas espigas...
De lá pra cá já se passaram décadas, pois estudei em 1951/ 52 e dei aulas em 1964/66, mas as lembranças nunca se apagam. Tabajara fez parte de minha vida, e tudo que sou hoje foi forjado ali, na escolinha rural, nos caminhos de areia quente, na pobreza do lugar, nos desconfortos do dia a dia, nas lições que recebi de Professores, que eram realmente Mestres de valor.
Em meados de 1966 consegui me transferir para Amandaba, outro lugar que também mora no meu coração.

Mirandópolis, outubro de 2015.
kimie oku in



Um comentário:

  1. Olá Kimie, me chamo Leonardo e pesquisando na internet encontrei seu texto, pesquisava pelo nome da minha avó Dona Engracia. Quero apenas esclarecer que o filho que ela adotou se chama José Carlos, meu pai, que cuidou dela até o fim da sua vida em São José do Rio Preto, onde ela veio a falecer em 1999. Se quiser mais alguma informação entre em contato pelo meu e-mail: leosb25@hotmail.com

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