Tabajara
Há tempos que sinto vontade de
escrever sobre esse lugar, que frequentei muito no passado. Como não tinha e
nem tenho ainda o histórico do Bairro, fui protelando, protelando.
Mas, de uns tempos pra cá,
sinto certa urgência em escrever tudo que penso e sinto, como se o tempo
estivesse se esgotando. Premonição, talvez? Então resolvi puxar pela memória e,
registrar tudo que lembro desse lugarzinho perdido de Deus...
Conheci Tabajara em 1951 quando
tinha nove anos de idade, e passei a frequentar a Escolinha que havia ali. Era
uma Escolinha de roça, de tábuas sem pintura e envelhecida pelo tempo. A classe
era composta com alunos de três séries.
A Professora leiga era dona
Engrácia Teixeira Martins, uma senhora já um tanto madura, casada com o
português seu Manuel da venda. Lembro que a senhora usava óculos e conseguia se
impor com respeito, pois era rigorosa nos procedimentos: ficar em pé perfilado para
a leitura de livros, sentar-se corretamente para copiar textos da lousa, ou
quadro negro (não havia lousa verde ainda). A postura dela já impunha respeito,
embora fosse gentil com os alunos.
Ela me ensinou a usar tinta
para escrever. Só na terceira série é que ensinavam a escrever à tinta. Levávamos
um vidro de tinta Parker ou Ink, que encaixávamos no buraco da carteira, e
molhávamos a pena nessa tinta azul para escrever. Era complicado, e manchávamos
a blusa com a tinta, que era difícil de sair. Borrávamos os cadernos, os dedos
e a blusa do coleguinha da frente... Mais tarde inventaram folhas de mata
borrão que absorvia num segundo toda a tinta derramada. Acho que foi o
protótipo do papel toalha. Não existiam as Bics ou canetas esferográficas...
Essa professora que me ensinou
tanto não tinha filhos e, certa vez adotou um menino, que se chamava Pedrinho.
Ela cuidou dele como um Príncipe. Anos mais tarde soube com pesar que, essa
querida Professora acabou falecendo esquecida num Asilo em Valparaíso... Dona
Engrácia Teixeira Martins.
Acho que por essa época foi
instalado o Grupo Escolar de Tabajara, que atendia às quatro séries iniciais em
salas separadas. O Bairro era populoso e havia muitas crianças para estudar.
O quarto ano estudei com uma Professora mulata,
dona Geralda de Almeida, que veio de fora e se hospedava na casa de dona
Engrácia. Dona Geralda era alta, elegante e muito competente como Professora. A
Festa de Formatura que ela promoveu no fim do ano foi a primeira, e foi um
acontecimento no Bairro. O ano era 1952.
Eu e minha irmã fomos com um vestido de organza rosa, muito bonito. Foi o
primeiro traje de gala em nossas vidas, por isso nos marcou para sempre. O que
será que foi feito deles?
Morávamos num sítio no Bairro
Oriente, distante uns quatro quilômetros de Tabajara, e íamos todos os dias
caminhando até a Escola. De casa, éramos minha irmã Neide e eu, mas pelos
carreadores iam se juntando outras crianças. Lembro-me do Noboru Sato, da
Yoshie Takahashi, do Katsuyoshi Watanabe, e muitos mais que esqueci ... Éramos mais ou menos dez crianças. Ao meio dia
saíamos e caminhávamos de volta. Às
vezes, encontrávamos boiadas, e era um Deus nos acuda, correndo pelos cafezais,
com medo das vacas. Os boiadeiros nem se preocupavam com a gente.
Às vezes, o senhor Emílio de Leão passava com
seu caminhão e nos dava carona. Ele nunca negou carona para crianças de Escola.
Os meninos trepavam na carroceria e nós meninas vínhamos na boléia, conversando
com o seu Emílio. Quando mais tarde voltei como Professora, seu Emílio estava
sozinho, solitário e triste. Fui almoçar umas vezes com ele. E ele me agradecia
muito. Mandava sua cozinheira apanhar umas uvas da parreira e, me dava para
distribuir entre os colegas da Escola. Seu Emílio Leão... Sempre passávamos na
casa dos Takahashi, e tirávamos um balde de água fresca do poço, que bebíamos
com prazer...
Tabajara era um lugar bem
pobre, a maioria das casas era de tábuas sem pintura, as ruas eram de terra
batida, que levantava poeira nos tempos secos e ficava lamacenta em dias de
chuva. As famílias se dedicavam à cultura de café. E no lugar havia bares, dos quais se
destacava o do seu Maciel, que era o dono do Bar do Ponto, onde paravam as
jardineiras que conduziam pessoas pra lá e pra cá, isto é para Lavínia e Indaiá
Paulista. Havia uma Farmácia, cujo proprietário se chamava Cesarino, se não me
falha a memória...
Havia Vendas ou Armazéns, que
vendiam de tudo desde alpargatas, tecidos em metros, chapéus de palha, fumo de
corda, pinga ou cachaça e ferramentas para o trabalho na roça, como enxadas,
foices, pás de arado para tombar a terra, máquinas manuais de plantar algodão,
peneiras, baldes, bacias, rolos de cordas, querosene, açúcar cristal... Tudo
era vendido a granel, isto é pesado na balança, ou cortado em metros.
Era uma espécie de
Supermercado, mas sem a organização deste. Tinha um balcão, onde se debruçavam
os fregueses, que normalmente tomavam uma cachaça enquanto faziam seus pedidos.
Eu me lembro que existia o Armazém do seu Manuel Português, que era bem sortido
e vendia até tecidos finos, do seu Emílio Leão, do Redentor e o do seu Fermino
Pavesi. Tinha um Açougue, uma Padaria, Uma Casa de Tecidos, acho que era Casa
Aurora, uma pequena Livraria e a filial do Cartório sob a administração de Dona
Hirtz Brandão, que morava em Lavínia. Essa senhora gostava muito de ler, e como
havia pouco serviço, estava sempre curvada sobre um livro, lendo. Usava uns
óculos fundo de garrafa, isto é de lentes bem grossas... Era culta e eu gostava
de conversar com ela.
Havia também outras portinhas,
acho que havia uma sapataria e a venda da Família Tonhon. Somando todas as
lojas não dava um quarteirão completo. Os fregueses compradores vinham dos sítios
e fazendas e, normalmente traziam uns sacos brancos de tecido, onde colocavam
as compras, que eram transportadas nos animais que montavam. Os animais ficavam
amarrados nos tocos diante dos botecos em plena rua.
Mas, o lugar mais importante
era a Capela de Santo Antônio, construída pelo Padre Epifânio de Mirandópolis.
Ficava num Largo, com árvores que ofereciam sombras nos dias quentes. Era
simples e bonita, e fui batizada ali junto com meus irmãos. No mês de junho, no dia 13, dia de Santo
Antônio havia uma celebração solene, com quermesse e muita festa. Começava com
a missa celebrada pelo padre, que era muito rigoroso, e depois soltavam-se
foguetes ou rojões e a festa enchia as ruas do Bairro, com footing das moças e
dos rapazes, que vinham namorar ou apenas flertar... Era um vai e vem de moças
andando pelas ruas e os rapazes paquerando-as...
Era o tempo das sanfonas que
enchiam o ar com as modas da época, das quais me lembro “Que beijinho doce”, “Encosta
tua cabecinha no meu ombro”. As músicas eram divulgadas através do rádio, que
televisão nem tinha sido inventada ainda. Todo mundo queria ter um rádio, que
era um luxo.
Eu me lembro de um
acontecimento trágico. Um menino de uns quatro anos de idade bebeu muita pinga,
que os moços do Armazém lhe deram como brincadeira. O garoto bebia a pinga e
ficava cambaleando. E os moços se divertiam muito, dando sonoras gargalhadas. À
noite, o garotinho faleceu. Irresponsabilidade total. E nunca fiquei sabendo se
os moços foram punidos. Se não me falha a memória, eram uns moços que
trabalhavam na Venda do seu Emílio Leão...
Das famílias moradoras no
Bairro, lembro de alguns nomes: os Pavesi, os Leão, os Tonhon, os Barranco, os
Gonfiantini, os Muelas, os Molinas, os Maciel, os Bogaz Sagrado, os Santa Terra...
E nos sítios e fazendas moravam os Zequini, os Basso, os Pereira Nunes, os
Martins... Havia muitos mais, mas a memória as apagou...
Os lavradores em geral lidavam
com café, e quando veio a crise da superprodução, em que sacas de café foram
queimadas no país inteiro para segurar o preço, o Bairro entrou em total
decadência. O café deu lugar à Pecuária, mas como requeria pouca mão de obra
para o manejo do gado, as famílias ficaram desempregadas e acabaram se mudando
para a cidade, ou seja para Lavínia. E Tabajara foi encolhendo. Foi o começo do
grande êxodo rural, que inchou todas as cidades do interior.
Em 1964, voltei como
Professora. E o Grupo Escolar funcionava em dois turnos com quatro salas de
aulas, uma Sala do Diretor e uma Sala dos Professores. Fiquei apenas dois anos
lecionando na Escola onde estudei. Foi um prazer enorme voltar como Professora.
O Diretor era o senhor José Corral
Clemente e os colegas José Gomes Moreno, cujo apelido era Zé Groselha, Rubens
Alves Donalonso, Maria Elisa Sanches Cassitas e Hilda Pereira dos Santos
Barroso. (Por onde andarão esses amigos?) O Servente era o senhor Joaquim, a
quem os meninos atormentavam cantando: “Seu Joaquim, qui ririm, quin quin, da
perna torta, rara tatá...” Ele ficava doidinho e corria atrás dos moleques. Mas
era uma pessoa muito boa. No final do ano fomos convidados para almoçar em sua
casa.
Dei aulas para os alunos do
terceiro e quarto anos, e nessa época, as classes eram formadas por uma série
apenas. Assumi classes com mais de quarenta alunos. Antes, nas escolinhas
rurais por falta de crianças, numa só sala havia alunos das três séries iniciais,
e era muito difícil para o Professor dividir o seu tempo, com ensinamentos para
os três grupos. E havia aula aos sábados. As classes de série única ofereciam
mais conhecimento aos alunos, pela disponibilidade de tempo.
O ano letivo começava em 15 de
fevereiro e terminava em 14 de dezembro, com férias no mês de julho. Não havia
paradas e nem se emendavam feriados. Aula era rigorosamente obrigatória e os
alunos não faltavam. Professores levavam tudo muito a sério. Não havia também
pagamento de horas/atividades, que hoje são pagas pelas horas que o Professor
prepara aulas, e corrige os trabalhos dos alunos. Só que o Professor era muito
respeitado pelos alunos, seus pais e comunidade. Outros tempos... Outros
valores...
Lembro também que, chamávamos
o Paulinho Sato do Bar do Ponto de Lavínia para nos substituir, em nossas
faltas abonadas. Ele estava no último ano do Curso Normal e, ficava feliz por
essa experiência. E combinávamos entre os colegas para alguém faltar no sábado,
e outro na segunda feira, para o Paulinho ganhar o Domingo também.
Quando voltei como Professora,
só corria um ônibus, que fazia o percurso de Mirandópolis a Lucélia. Saía às
seis horas daqui e voltava às dezesseis horas de Tabajara. Afora isso, só
carona e, em geral eram caminhões que transportavam boiadas. Muitas vezes
fizemos o percurso até Lavínia a pé, e até hoje me admiro de ter superado isso,
porque eram dezoito quilômetros de terra batida, poeira e sol ardente... Os pés
queimavam na areia quente, e não havia bloqueadores solares para nos proteger.
Hoje nem os alunos caminham, mesmo morando a uns quarteirões da escola.
Duas coisas marcaram essa
estrada cheia de curvas de Tabajara. A primeira era um pau d’alho velho que
existia numa baixada, à beira da estrada. De longe, ele exalava o cheiro de
alho, e quando o sentia ficava aliviada, porque já estaria chegando em casa, daí
um quilômetro mais ou menos. Isso foi na infância.
Outra marca era o Cemitério na
curva do caminho. Era um cemitério rural, onde se enterravam os mortos de
Tabajara. Era tão pobre, cercado de balaústres, e mesmo quando criança nunca
tivemos receio de passar em frente. Apenas calávamos a boca em sinal de
respeito e nos persignávamos. Mas, uma coisa nos incomodava muito. É que o
coveiro plantava milho lá entre as covas... Ficávamos imaginando quem comeria
daquelas espigas...
De lá pra cá já se passaram
décadas, pois estudei em 1951/ 52 e dei aulas em 1964/66, mas as lembranças
nunca se apagam. Tabajara fez parte de minha vida, e tudo que sou hoje foi
forjado ali, na escolinha rural, nos caminhos de areia quente, na pobreza do
lugar, nos desconfortos do dia a dia, nas lições que recebi de Professores, que
eram realmente Mestres de valor.
Em meados de 1966 consegui me transferir
para Amandaba, outro lugar que também mora no meu coração.
Mirandópolis, outubro de 2015.
kimie oku in
Olá Kimie, me chamo Leonardo e pesquisando na internet encontrei seu texto, pesquisava pelo nome da minha avó Dona Engracia. Quero apenas esclarecer que o filho que ela adotou se chama José Carlos, meu pai, que cuidou dela até o fim da sua vida em São José do Rio Preto, onde ela veio a falecer em 1999. Se quiser mais alguma informação entre em contato pelo meu e-mail: leosb25@hotmail.com
ResponderExcluir