sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

 

Eu sou duas

Há em mim duas pessoas distintas: uma oriental nisei e uma ocidental, brasileira. As duas são de alguma forma, antagônicas. Em conflito todos os dias.

A kimie japonesa tem origem numa ilha remota chamada Japão no Círculo de Fogo, chacoalhada todos os dias pelos vagalhões do Oceano Pacífico. É exatamente aí que a minha história começou. É nesse lugar que meus pais nasceram e  é aí que repousam meus ancestrais.

 A kimie ocidental nasceu aqui nos trópicos e não conhece neve, só conhece o calor desta terra tupiniquim Brasil, onde estou vivendo desde que nasci.

A parte oriental me leva a estudar a cultura japonesa, seus costumes e tradições, a História registrada. A parte ocidental me fez Professora e passei trinta anos pelejando na Educação, inventando formas de facilitar a compreensão dos alunos. Agora escrevo crônicas do dia a dia...

A minha porção oriental deseja escrever também essas crônicas na língua materna, porque tem coisas que só consigo definir em japonês. Ainda chego lá. Enquanto isso, vou me abastecendo, pesquisando e lendo tudo que se refere à cultura nipônica.

Se de um lado aprecio Manuel Bandeira, Cora Coralina  e Graciliano Ramos, por outro fico fascinada com os poemas de Miyazawa Kenji, e com as biografias de Nobunaga, Hideyoshi, Ieyassu, Noguchi Hideyo.

Se aprecio a música popular do Brasil desde Raul Seixas até as caipiras como Menino da Porteira e Chico Mineiro; por outro lado aprecio demais a música popular japonesa, notadamente as antigas da Era Showa, cantadas por Kitajima Saburo e Murata Hideo.

O instrumento musical brasileiro que me impressiona fortemente é o berimbau, cujo toque é base da capoeira que é uma coreografia sempre movimentada e bela. Do Japão, o mais impressionante é o shakuhachi, ou uma flauta de bambu, que guarda em seu interior sons de arrepiar. O shakuhachi toca o mais profundo de minha alma, e desperta integralmente a minha porção oriental.

Comida brasileira boa de fato é o arroz e o feijão de todo dia, além de um bom churrasco, uma peixada... Do Japão curto o gohan ou arroz branco, sashimi, tsukemono além da sopa de missô.

Tudo isso que existe em mim começou com a Imigração Japonesa no Brasil. Foram cem anos de luta, de adversidades, de discriminação até chegarem a um final, para todos viverem em paz. Com a aculturação, agora todos sabem o que é bom odori, sashimi, tsunami, yakissoba, okanê, e mais uma dezena de palavras que são faladas diariamente, misturadas ao linguajar português de cada dia. Por outro lado, os imigrantes idosos também aprenderam o significado de café, feijão, futebol, samba, Banco e Hospital...

O mais impressionante para mim que é motivo de observação constante é a diferença de comportamento dos japoneses e dos brasileiros em geral. Os brasileiros são alegres, expansivos, chegando a ser até exagerados em suas manifestações de dor, gritando em altos brados ao chorar e dançando e cantando nos momentos felizes.

Os japoneses são comedidos, seguram sua dor e seus sentimentos, porque foi assim que foram treinados de geração em geração, para não incomodarem as demais pessoas. Em geral toda saudação é feita apenas oralmente, sem um abraço, sem um aperto de mão, respeitosamente. Pode ser correto e saudável, mas acho um tanto frio.

Em relação à escrita, a brasileira é fácil porque o alfabeto romano possui apenas vinte e seis símbolos ou letras, e com eles dá para escrever tudo, tudo mesmo. Até em espanhol, inglês, francês...

Na Língua Japonesa a coisa é bem complicada. Há ideogramas tão difíceis que até inventaram um alfabeto paralelo, o hiraganá para traduzi-los... Mesmo lá no Japão, só uma pequena parcela domina todos os ideogramas, que chegam ao total de seis mil...

Viver com essas duas personagens tão contrastantes é muito difícil. O eu oriental exige uma postura mais severa, comedida. O eu brasileiro me faz escrever tudo que me incomoda, que me emociona e me faz feliz. Mas, na revisão, a kimie japonesa tira uma expressão aqui, troca uma palavra ali e o texto perde a originalidade.

 Eu me lembro que um dia, uma amiga disse num desses Cursos de Professores, que por eu ser um tanto expansiva me considerava uma japonesa falsificada. Pode até ser verdade, porque não consigo ser totalmente japonesa e nem totalmente brasileira.

É mole, gente?

Mirandópolis, janeiro de 2022

kimie oku in

http://cronicasdekimie.blogspot.com.br/


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