quarta-feira, 13 de março de 2013




                       Impressões que ficam


Há um bocado de tempo atrás, eu não sabia nada da língua japonesa. Queria entender o que as pessoas falavam e não conseguia. Eu me sentia completamente idiota, por não saber a língua de meus pais e ancestrais.
Aí, um Professor que viera do Japão, resolveu ministrar aulas noturnas aos adultos, que estivessem interessados. E lá fui eu, mais que interessada. A princípio, porém, me sentia totalmente perdida, porque não captava nada do que ele dizia.
 E passei a assistir aos programas do canal japonês NHK, para ver se absorvia alguma coisa. Mas, esse canal é mais ou menos parecido com a Tevê Cultura do Brasil, e a linguagem é mais culta e refinada que a linguagem do dia a dia, e eu conseguia apenas entender uns vinte por cento do noticiário. E olhem que tinha fotos e outras imagens...

Certa noite, ouvi a expressão “hio tenka” repetidas vezes no noticiário. Fiquei encucada. Procurei no dicionário japonês e não havia essa expressão, mesmo porque há várias maneiras de se escrever uma mesma palavra em japonês, com significados diferentes.
Eu era a pessoa mais ignorante do grupo de pessoas que iam à escola noturna. E vivia fazendo perguntas às colegas, que traçavam a língua com certa facilidade, e conseguiam manter um diálogo com o Professor. Achei normal perguntar a uma delas o significado de “hio tenka”. Não sei o que houvera com a colega, que me tratou com a maior frieza e, disse que “hio tenka” significa frio, abaixo de zero, nível de congelamento. Era como se me dissesse: “Você é tão ignorante que nem isso sabe?”
Nunca mais esqueci o significado, porque à frieza da expressão se juntou a frieza da colega, que também foi abaixo de zero. E toda vez que penso nela sinto essa frieza de gelar.
Foi a impressão que ficou. Impressão muito desagradável.
E passei a notar que algumas impressões marcam e ficam para sempre em nossa memória. Várias vezes fui apresentada a pessoas simpáticas e atenciosas, e eu acabei amando-as de verdade. E a outras que, me esnobaram como se fossem celebridades, e constatei mais tarde que, eram mais ocas e vazias que cabaças.
Eu me lembro que há uns vinte anos atrás, fui a uma conferência da Psicolinguista argentina Emília Ferreiro, seguidora da Teoria do Construtivismo de Jean Piaget. Seus estudos revolucionaram o processo de Alfabetização.  Ela defendia que é possível alfabetizar sem cartilhas e livros, usando somente objetos que existem no meio em que a criança vive.
Os convites para essa Conferência que ocorreu no Anhembi eram limitados, e sabia que eu tivera o privilégio de estar lá.  A expectativa era grande. Todos esperavam ver uma estrela, pois era famosa em toda a América Latina, apesar de a maioria não acreditar em suas pregações.
Havia cerca de 500 participantes e era um zum zum sem fim. Quando anunciaram a palestrante foi uma decepção. A mulher  era enorme como uma matrona, de cabelos longos, lisos e vestia uma simples bata. Perto de mim alguém disse:  “Essa coisa é a Emília Ferreiro?!!!”
Mas, quando ela começou a falar sobre as crianças foi de arrasar. Falava em castelhano, mas falava devagar para todos entenderem. Durante toda a palestra, que durou seguramente  quase duas horas não se ouviu uma tosse sequer. Ela nos deixou fascinados. Disse que, os processos de alfabetização usados em toda a América Latina não respeitavam a criança, como um ser inteligente, que vê, que escuta, que observa e tira conclusões. Disse que toda criança normal é capaz de construir o seu conhecimento, a partir de experiências vivenciadas no dia a dia. Basta o Professor direcionar as atividades para tal fim.

Então, ficou em minha mente a figura de uma mulher corajosa, inteligente que se opunha violentamente às lições decoradas, que transformam crianças em robôs teleguiados, incapazes de pensar. A impressão que ela deixou em mim foi muito forte e percebi o quanto a gente vinha errando, tratando crianças como seres cegos, surdos e mudos, que não percebem o que existe ao seu redor. (Estávamos alfabetizando com a Cartilha Caminho Suave, que não levava em consideração os interesses das crianças!)
E então, foi aquela loucura de levar revistas e jornais para a sala de aulas, e deixar as crianças recortarem letras conhecidas. Algumas logo acabaram montando o próprio nome com os recortes. Era a construção do Conhecimento, dirigida pela própria criança! E tudo parecia uma brincadeira! E elas caminhavam a passos rápidos, reconhecendo letras e palavras vistas no cotidiano, em suas casas, e no caminho da escola. Aprender passou a ser uma atividade prazerosa, pois todos tinham algo a acrescentar às descobertas do dia.
Foi uma pena que, só tive contato com o Construtivismo já no final da minha carreira. Poderia ter ajudado mais os colegas professores na alfabetização.
Hoje já existem materiais mais modernos, coloridos que atraem as crianças para as brincadeiras de formar palavras, e tudo se tornou mais fácil. E espero que os professores alfabetizadores tenham entendido e absorvido o Construtivismo. E estejam aplicando-o nas suas ações pedagógicas.
Mas, já sou aposentada e não devo tentar passar lições para ninguém, mesmo porque meu tempo já era.
Apenas quis passar esses dois momentos de minha vida, cujas lembranças ficaram para sempre gravadas em minha memória. Um momento que deixou uma lembrança gelada, e outro que me deixou mais apaixonada pela educação.

Mirandópolis, março de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com



     

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