Quando comecei a dar
aulas, fui parar numa escolinha de roça, lá no fim do mundo, onde o Judas
perdeu as botas.
Era uma escolinha pobre à beira de
estrada, onde não passava ninguém. De vez em quando passava uma jardineira,
dessas antigas, que levava o povo para a cidade e o trazia de volta à
tardezinha.
Pois bem, a escolinha de tábua pintada
de azul claro ficava no meio de um pasto, onde pastava o gado nelore do
fazendeiro.
E no pátio da escola reinavam os
cabritos. Era um bando de umas trinta
cabeças que berravam o dia todo: bé, bé, bé, bé, é, e´, é, é..... Todos os dias, a escola tão pobre amanhecia cercada de
bolinhas pretas, que os cabritos dejetavam invariavelmente. E todos os dias, as crianças maiores e eu
varríamos as bolinhas... Por sorte, durante o período das aulas, eles iam pela
estrada, à procura de capim e o seu berreiro dava uma folga. Nada entraria na
cabeça das crianças com aquele berreiro sem fim...
Havia cerca de sessenta alunos. Inacreditável,
mas era verdade! E eram alunos de 1º, 2º
e 3º anos. Vinham de uma colônia de plantadores de algodão, distante uns quatro
quilômetros dali. Apesar de muito trabalho para dar conta de toda a molecada, o
período da manhã era cheio de alegria, e eu enfrentava minha tarefa com
disposição.
Ora, como não havia carro que me
trouxesse para a cidade, ficava uns domingos lá de castigo. Sábado havia aulas
normalmente. Onde eu hospedava, havia só duas famílias. Era uma desolação só...
E a cabritaiada berrando sem parar.
Vale lembrar que os alunos eram filhos
de migrantes nordestinos de Sergipe, Pernambuco, Alagoas, Ceará e Bahia. E
nenhum deles tinha certidão de nascimento.
Um dia, convoquei todos os pais e lhes comuniquei que
precisavam registrar as crianças. Para
forçá-los a cumprir seu dever, lhes disse que se uma delas chegasse a falecer,
não poderia ser enterrada no cemitério, por falta de documento.
No dia seguinte, o arrendatário do algodoal levou todos os
pais num caminhão para a cidade e, todos conseguiram ser registrados. Apesar de
ter usado uma artimanha, tenho muito orgulho por ter tido a coragem de forçar
aqueles pais, a regularizarem a situação das crianças. Talvez seja a coisa mais importante
que tenha feito naquela escolinha, porque recém-saída da Escola Normal, não
sabia nem como iniciar a alfabetização...
Bem, mas quero contar uma passagem interessante, que tive
enquanto ali permaneci. Uma mãe de aluno, dona Valdete, condoída de minha situação,
nos fins de semana mandava uma charrete me buscar para ficar numa fazenda, a uns seis quilômetros
dali. Era uma cearense arretada, alegre
e muito atenciosa, assim como o seu marido, o senhor José João.
Dona Valdete, na condição de mulher pobre de peão de fazenda,
esmerava-se para me servir uma boa comida, e fazia bolos e pães. Era uma
felicidade partilhar da vida daquele casal e seus três filhos.
Ora, na fazenda havia um cachorro preto muito bonito, de
pelos longos e bem lustrosos, chamado Jackson. Não sei de que raça era, mas
parecia o Setter Irlandês, só que era preto, preto. E pelo que consta não existe Setter dessa
cor. Era bem bravo, mas se destacava
pela beleza da pelagem. Um dia, o seu José João me ofereceu o cachorro.
Espantada pela oferta, indaguei-lhe a razão. E ele me contou.
O fazendeiro, cujo nome não gravei, de origem árabe havia
ido visitar os parentes havia meses, lá do outro lado do mundo. Acontece que após
um tempo, o homem viera a falecer na terra natal. No Brasil não possuía parentes.
Era solteiro e morava sozinho na Casa Grande. E o casal é que cuidava dele
enquanto viveu na fazenda. Acontece que
o cachorro era dele e tinha paixão pelo patrão. O carinho era recíproco.
Não se sabe como, o cão sentiu que perdera o seu amigo e
começou a atacar os bezerros da invernada, mordendo-lhes as canelas. Isso
estava causando um dano grande e, o seu José João estava muito preocupado,
porque um dia viria alguém responsável, ou herdeiro dos bens do patrão, a quem
teria que explicar as perdas dos bezerros.
Achei um encanto ganhar o belo cachorro e pedi a um
familiar meu para buscá-lo de camionete. Amarrado o bicho, lá foi ele para a
minha casa num sítio, distante dali bem uns quarenta quilômetros. Enquanto
estava na escola dando aulas, ele ficou amarrado em casa por uma semana, para
não fugir. Mas, ele chorava e gania tanto que o soltaram de pena do seu
sofrimento. No instante em que se viu
livre, ele disparou pelo carreador e desapareceu.
E à tardezinha do mesmo dia, ele apareceu na fazenda onde
morava. Moído de cansaço... Ele
percorrera uns quarenta quilômetros, por estradas que nunca vira antes... Como foi
possível isso? Instinto? Sexto sentido? Faro?
O seu José João queria me dar o cachorro de novo e eu não
aceitei. Se soubesse que causaria tanto sofrimento ao pobrezinho, jamais o teria aceito e
levado para tão longe.
Daí uns meses fui transferida para outra escola e, nunca
mais soube de dona Valdete, de seu José João e nem do cão Jackson.
Esse fato ocorreu há mais de cinquenta anos, e toda vez que
vejo um cachorro parecido, lembro com respeito do Jackson.
Mirandópolis, fevereiro de 2013.
kimie oku in
cronicasdekimie.blogspot.com
Decada de 60, tive um cachorro mestiço Setter Irlandes, era dessa cor ai na foto, parecido, até as orelhas eram iguais, chamava-se Ringo (devido aos Beatles), gostava muito de nadar no acude da chacara de nossa familia Bela Vista, na entrada da cidade, ia buscar tudo que a gente jogava dentro d'agua. Essa qualidade é carateristica dessa raça, buscar a caça que o dono matava, no caso dos patos dos lagos. Tenho foto dele em "preto e branco" na época não tinha foto colorida. Essa história me fez lembrar de meu cão que tando foi meu amigo, na minha infancia, nunca o esqueci. RINGO.
ResponderExcluirBoa lembrança, né Dinho Resler? Cães dessa raça são elegantes e muito belos, têm a pelagem longa e muito brilhante. Aquele era preto e parecido com esse da foto. Para mim ficou uma boa lembrança e um tanto de remorsos...
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