quarta-feira, 6 de março de 2013




                               Lembranças de um cachorro

       Quando comecei a dar aulas, fui parar numa escolinha de roça, lá no fim do mundo, onde o Judas perdeu as botas.
         Era uma escolinha pobre à beira de estrada, onde não passava ninguém. De vez em quando passava uma jardineira, dessas antigas, que levava o povo para a cidade e o trazia de volta à tardezinha.
         Pois bem, a escolinha de tábua pintada de azul claro ficava no meio de um pasto, onde pastava o gado nelore do fazendeiro.
         E no pátio da escola reinavam os cabritos. Era um bando de umas  trinta cabeças que berravam o dia todo: bé, bé, bé, bé, é, e´, é, é.....       Todos os  dias, a escola tão pobre amanhecia cercada de bolinhas pretas, que os cabritos dejetavam invariavelmente.  E todos os dias, as crianças maiores e eu varríamos as bolinhas... Por sorte, durante o período das aulas, eles iam pela estrada, à procura de capim e o seu berreiro dava uma folga. Nada entraria na cabeça das crianças com aquele berreiro sem fim...
         Havia cerca de sessenta alunos. Inacreditável, mas era verdade!  E eram alunos de 1º, 2º e 3º anos. Vinham de uma colônia de plantadores de algodão, distante uns quatro quilômetros dali. Apesar de muito trabalho para dar conta de toda a molecada, o período da manhã era cheio de alegria, e eu enfrentava minha tarefa com disposição.
         Ora, como não havia carro que me trouxesse para a cidade, ficava uns domingos lá de castigo. Sábado havia aulas normalmente. Onde eu hospedava, havia só duas famílias. Era uma desolação só... E a cabritaiada berrando sem parar.
        Vale lembrar que os alunos eram filhos de migrantes nordestinos de Sergipe, Pernambuco, Alagoas, Ceará e Bahia. E nenhum deles tinha certidão de nascimento.
Um dia, convoquei todos os pais e lhes comuniquei que precisavam registrar as crianças.  Para forçá-los a cumprir seu dever, lhes disse que se uma delas chegasse a falecer, não poderia ser enterrada no cemitério, por falta de documento.
No dia seguinte, o arrendatário do algodoal levou todos os pais num caminhão para a cidade e, todos conseguiram ser registrados. Apesar de ter usado uma artimanha, tenho muito orgulho por ter tido a coragem de forçar aqueles pais, a regularizarem a situação das crianças. Talvez seja a coisa mais importante que tenha feito naquela escolinha, porque recém-saída da Escola Normal, não sabia nem como iniciar a alfabetização...
Bem, mas quero contar uma passagem interessante, que tive enquanto ali permaneci. Uma mãe de aluno, dona Valdete, condoída de minha situação, nos fins de semana mandava uma charrete me buscar para  ficar numa fazenda, a uns seis quilômetros dali. Era uma cearense  arretada, alegre e muito atenciosa, assim como o seu marido, o senhor José João.
Dona Valdete, na condição de mulher pobre de peão de fazenda, esmerava-se para me servir uma boa comida, e fazia bolos e pães. Era uma felicidade partilhar da vida daquele casal e seus três filhos.
Ora, na fazenda havia um cachorro preto muito bonito, de pelos longos e bem lustrosos, chamado Jackson. Não sei de que raça era, mas parecia o Setter Irlandês, só que era preto, preto.  E pelo que consta não existe Setter dessa cor.  Era bem bravo, mas se destacava pela beleza da pelagem. Um dia, o seu José João me ofereceu o cachorro. Espantada pela oferta, indaguei-lhe a razão. E ele me contou.
O fazendeiro, cujo nome não gravei, de origem árabe havia ido visitar os parentes havia meses, lá do outro lado do mundo. Acontece que após um tempo, o homem viera a falecer na terra natal. No Brasil não possuía parentes. Era solteiro e morava sozinho na Casa Grande. E o casal é que cuidava dele enquanto viveu na fazenda.  Acontece que o cachorro era dele e tinha paixão pelo patrão. O carinho era recíproco.
Não se sabe como, o cão sentiu que perdera o seu amigo e começou a atacar os bezerros da invernada, mordendo-lhes as canelas. Isso estava causando um dano grande e, o seu José João estava muito preocupado, porque um dia viria alguém responsável, ou herdeiro dos bens do patrão, a quem teria que explicar as perdas dos bezerros.
Achei um encanto ganhar o belo cachorro e pedi a um familiar meu para buscá-lo de camionete. Amarrado o bicho, lá foi ele para a minha casa num sítio, distante dali bem uns quarenta quilômetros. Enquanto estava na escola dando aulas, ele ficou amarrado em casa por uma semana, para não fugir. Mas, ele chorava e gania tanto que o soltaram de pena do seu sofrimento.  No instante em que se viu livre, ele disparou pelo carreador e desapareceu.
E à tardezinha do mesmo dia, ele apareceu na fazenda onde morava.  Moído de cansaço... Ele percorrera uns quarenta quilômetros, por estradas que nunca vira antes... Como foi possível isso? Instinto? Sexto sentido? Faro?
O seu José João queria me dar o cachorro de novo e eu não aceitei. Se soubesse que causaria tanto sofrimento ao pobrezinho, jamais o teria aceito e levado para tão longe.
Daí uns meses fui transferida para outra escola e, nunca mais soube de dona Valdete, de seu José João e nem do cão Jackson.
Esse fato ocorreu há mais de cinquenta anos, e toda vez que vejo um cachorro parecido, lembro com respeito do Jackson.

Mirandópolis, fevereiro de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com
         

2 comentários:

  1. Decada de 60, tive um cachorro mestiço Setter Irlandes, era dessa cor ai na foto, parecido, até as orelhas eram iguais, chamava-se Ringo (devido aos Beatles), gostava muito de nadar no acude da chacara de nossa familia Bela Vista, na entrada da cidade, ia buscar tudo que a gente jogava dentro d'agua. Essa qualidade é carateristica dessa raça, buscar a caça que o dono matava, no caso dos patos dos lagos. Tenho foto dele em "preto e branco" na época não tinha foto colorida. Essa história me fez lembrar de meu cão que tando foi meu amigo, na minha infancia, nunca o esqueci. RINGO.

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    1. Boa lembrança, né Dinho Resler? Cães dessa raça são elegantes e muito belos, têm a pelagem longa e muito brilhante. Aquele era preto e parecido com esse da foto. Para mim ficou uma boa lembrança e um tanto de remorsos...

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