terça-feira, 17 de dezembro de 2013



                Gente de fibraKawasaki sama

   Há um tempo atrás, estava eu  na cabeleireira dona Hilda dando um trato nos meus cabelos, quando ali apareceu uma senhora japonesa da comunidade.
      Como ela sempre só conversava em japonês, eu tinha grande receio em me aproximar dela, porque é uma pessoa muito considerada entre os japoneses. Era um misto de medo e reverência.
    Enquanto esperava passar o tempo do procedimento a que me submetera, peguei um livro e comecei a ler. Era um livro japonês. E aí, ocorreu um fato inacreditável.      
     Essa senhora com quem nunca havia conversado, veio até mim e perguntou o que eu estava lendo. Eu lhe mostrei. Era a biografia de um dos heróis do Japão, Oda Nobunaga. Ela pegou o livro, folheou-o, e disse que era exatamente o tipo de leitura que gostava, e ficou muito admirada por eu gostar também.
          Terminado o serviço, voltei pra casa e esqueci o assunto da batiam. Qual não foi minha surpresa, quando sua nora Kazuko me apareceu em casa daí uns dias, perguntando se eu poderia emprestar o tal livro para a sogra. Eu lhe emprestei, e disse que possuía outros.
         E isso foi o começo de uma relação agradável, que passei a cultivar com a senhora Kawasaki. Através de uma Livraria de São Paulo, compro livros originais, que os importa do Japão para mim. Estudo a Língua Japonesa há mais de vinte anos, e atualmente, estou lendo livros da História Oficial do país de meus ancestrais. Enquanto vou aprendendo a língua, vou conhecendo também a História do Japão, que é muito interessante.
       Assim, andei lhe emprestando livros sobre os Samurais mais famosos, que mudaram a história do Japão: Takeda Shingen, Minamoto Yoshitsune, Oda Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi, Tokugawa Ieyassu, Saigo Takamori, Uesugi Kenshin, Sakamoto Riyoma, além dos literatos Higuchi Ichiyo, e Miyazawa Kenji e do  famoso cientista Noguchi Hideyo. Fiquei super feliz em compartilhar as leituras, porque até então, não tinha com quem trocar as impressões sobre esses heróis.
       Ah! Devo esclarecer a bem da verdade que, esses livros são destinados aos alunos do Curso Primário do Japão, e possuem poucos kanjis ou ideogramas, por isso sou capaz de lê-los. A língua japonesa é dificílima. A senhora consegue ler tudo em japonês.        
       Devagarinho, comecei a frequentar a casa dos Kawasaki, porque a senhora estava acamada por conta de um tombo, e hoje evita sair sozinha, porque já passou dos noventa anos.
         E numa das visitas, de repente ela começou a contar passagens de sua vida. Fiquei fascinada e lhe propus uma entrevista para a coluna Gente de fibra. Ela topou. E passei uma tarde muito agradável em companhia dela, do filho Sadao e da gentil nora Kazuko. Vimos fotografias antigas, e rimos muito das coisas engraçadas, que ela foi revelando. E descobri que ela é uma pessoa bem humorada, sem restrições, e aborda qualquer assunto com coragem, sem nenhum acanhamento.
       Bem, agora após esses esclarecimentos, passo a contar a história dela. Estamos falando da senhora Kimiko Kido, que ao se casar passou a ser Kimiko Kawasaki.
         Dona Kimiko nasceu na cidade de Ibaraki, Província de Fukushima, Japão em 1923. No Japão estudou apenas dois anos, pois emigrou com a família em 1932.  Veio ao Brasil com os irmãos Kazuo, Tsuguio e Fumiko, os pais Saburo e Toku Kido, os avós paternos e mais dois tios. Ao chegarem aqui, vieram parar na Colônia do Senhor Anze em Água Limpa, na região de Araçatuba, como colonos japoneses para trabalhar nas fazendas de café.
         Era criança e ficou fascinada com os vagalumes que pisca piscavam ao anoitecer, e como havia muitas bananeiras e laranjeiras gostou do lugar. Sua irmãzinha de cinco ou seis anos, porém chorava pedindo para voltar para casa (Japão).
          Ficaram durante dois anos em Água limpa.
      Seus pais ouviram falar de uma Vila chamada São João da Saudade (primeira denominação de Mirandópolis), que estava prosperando rapidamente. E se mudaram para cá, vindo morar inicialmente em Vila Nova. Os tios foram para o Bairro Km 50, que seria o projeto da cidade de Mirandópolis. Era um lugar bastante movimentado em 1934/1935.
        No Km 50, seus tios Kido abriram uma Sapataria que logo  prosperou. Então, a família de dona Kimiko também para lá se mudou, e o pai passou a trabalhar com os irmãos na Sapataria. Sua mãe, que era costureira passou a bordar uns enfeites nas botinas.
         Nessa época, a menina Kimiko frequentou a Escola japonesa ou Nihongô Gakko, onde um pai e a filha Katsuki eram professores. Eram muito eficientes e a menina Kimiko completou os estudos até o equivalente ao Colegial. Foi matriculada na Escola brasileira também, mas ela não gostou porque a professora Maria tomava a tabuada, e como errava sempre, ficava todos os dias de castigo, atrás da porta. E quando estava sentada na carteira, ao invés de prestar atenção na aula, ficava lendo revistas japonesas pela fresta que havia no tampo da mesa. Ela escondia a revista na parte de baixo, onde se guardava a bolsa. E com essas e outras, acabou desistindo da Escola brasileira, aprendendo somente o básico para se comunicar com as pessoas, mas sabe escrever e ler em Português.
         Quando moça, fez o Curso de Corte e Costura e passou a costurar para a família.
       Em 1943 já morava na Rafael Pereira e foi solicitada para dar aulas de Língua Japonesa. E ela dava aulas particulares para duas meninas. E tinha que atravessar cafezais para chegar às casas. Hoje, ela mesma se espanta da própria coragem, pois aulas em Japonês estavam proibidas nesse período de guerra, por um Decreto do Getúlio Vargas, para que os japoneses daqui não conspirassem contra os brasileiros e os aliados.
          Com vinte e dois anos de idade, casou-se com o jovem Toshio Kawasaki, que era um mecânico e trabalhava numa Máquina de beneficiar arroz, lá na Segunda Aliança. Como era uma pessoa curiosa e habilidosa, ele havia inventado uma máquina para fazer mortadela. Sabia também consertar máquinas de costura, e um dia ele reformou a máquina alemã Pfaff da senhorinha Kimiko. Mais tarde, quando um alfaiate viu a máquina ofereceu uma Singer nova, e a dona Kimiko fez a troca.
       Ao se casar foi morar na Segunda Aliança. Moraram numa casa imensa. Os sogros moravam em Bastos. O senhor Toshio durante suas folgas, ia às casas de famílias a cavalo, consertar máquinas de costura, ela ficava sozinha e tinha muito medo. E assim, os anos foram passando, com os filhos nascendo. O primogênito Sadao, que é um especialista em Ótica, a Tomie casada com o senhor Massayuki Ariki, a Satiko casada com Jorge Ohara, a Junko casada com Teruo Matsuda e o caçula Hideo casado com Mari. Dona Kimiko mora com a família do primogênito Sadao.
      Em 1945, o senhor Toshio comprou uma pequena Relojoaria, que viria a ser a Relojoaria Kawasaki, que está no mesmo lugar atendendo à comunidade há sessenta e oito anos, atualmente sob a direção de Sadao, ou seja na segunda geração da família.
    Entretanto, essa vida tranquila seria um dia interrompida, por um acontecimento insólito. Quando o filho Sadao concluiu um Curso de Ótica, que havia ido fazer em São Paulo e voltou para casa, o pai  Toshio faleceu de repente. Tinha só quarenta e seis anos, e o Sadao era um jovem de apenas 21 anos de idade.
         Seu Toshio Kawasaki partira e deixara para o filho mais velho, o encargo de cuidar da mãe e dos quatro irmãos, ainda adolescentes. O jovem ficou totalmente desnorteado, sem saber como administrar a loja e tocar a vida. Foi então, que o primo Takeshi Kido, o mesmo Dr. Kido que serviu a comunidade mirandopolense como odontologista, veio socorrer o jovem Sadao. Dr. Kido que, à época estava com 28 anos de idade durante um bom tempo, foi orientando o jovem Sadao na administração da loja, até ele conseguir caminhar sozinho.
       Por essa ajuda providencial, ocorrida num momento tão crucial, a senhora Kimiko e o filho Sadao dizem que, sentem uma gratidão imensa e nunca poderão esquecer. Têm um carinho especial pelo Dr. Kido.
      
       As irmãs também ajudaram muito na loja, para que o Sadao pudesse se dedicar ao serviço de Ótica, atendendo a clientela, que comparecia para aviar receitas de óculos.
      Com 31 anos de idade, Sadao se casou com a senhorita Kazuko Kasaya que procedia de Pereira Barreto. Desse matrimônio nasceu o filho Ricardo, que por um problema de genética perdeu totalmente a acuidade visual.
         Dona Kimiko conseguiu casar todos os filhos, e hoje tem além dos filhos, noras e genros, mais oito netos e dois bisnetos.
     Enquanto encaminhava os filhos, dona Kimiko participou de todas as atividades da Comunidade Nipo local. Foi Presidente do Clube das Senhoras (Fujinkai) por cinco mandatos, foi Vice Presidente, Secretária e Tesoureira. Sempre colaborou com a Associação, juntamente com as companheiras Sunada, Kawamoto e Toyoshima, todas já falecidas.
     Como apreciava danças japonesas, durante dois anos tomou aulas de dança com o Professor de kabuki, Kojima Sensei. Ela e suas companheiras de dança vendiam comida japonesa para pagar as aulas do Professor. O Professor vinha de São Paulo e se hospedava nas casas dos japoneses locais.
     Um dia, ela e suas companheiras, juntamente com todos os associados resolveram fazer uma promoção de udon, e isso fez tal sucesso, que até hoje há promoção de udon e yakissoba  mensalmente, no Clube Nipo.
      Quando era jovem, o pai Toshio gostava muito de cantar. E ao adquirir a Relojoaria, passou a vender os discos de vinil de 78 rotações. E logo, apaixonados pela música japonesa, ele e seus  vizinhos Eiji e Paulo Sato começaram o Nodojiman, ou Concurso de Canto Japonês. O primeiro Nodojiman aconteceu em 1954 ou 1955 no antigo Cine São João, que era na Rua 9 de julho, ali ao lado do Maeda, abrilhantado pela Banda Musical Tietê, de Pereira Barreto.
       E em 1956, os senhores Masatoshi e seu irmão Shizuo Nakajiyou, o senhor Kawasaki e  Nagata começaram a estudar,  para formar uma banda musical do Nipo. O músico Rui da Banda Musical da cidade foi quem deu as primeiras aulas, para leitura de partituras musicais. E por uma feliz coincidência, veio gerenciar a Agência do Banco América do Sul local, o senhor Tsutomu Inoue, que tocava violão e a sua esposa Hideko tocava bandolim. Eles se dispuseram a ensinar os interessados do grupo. Além deles, havia a senhorita Alice Sato, que era formada em Música. Assim, a Tomie e a Satiko da família Kawasaki, a Mitsuko Kido e outras jovens aprenderam a tocar bandolin, acordeão e outros instrumentos, acabando por integrar o conjunto musical, que recebeu o nome de Aiko Kai. Tinha dezoito instrumentistas, que passaram a tocar nas festas de bom odori também, além do Nodojiman, por muitos anos.
      Hoje, a Banda foi substituída pelos aparelhos potentes de karaokê que existem, e o grupo foi disperso.  Mesmo assim, todos sentem saudades daqueles tempos, em que cada um dava o melhor de si, para abrilhantar as festas.         
    A senhora Kawasaki dançou Danças famosas do Japão e foi muito aplaudida, porque desempenhava bem o seu papel de dançarina.  Existem muitas fotos comprovando a qualidade de suas danças. Hoje com mais de noventa anos de idade, e após fraturar  várias partes do corpo, ainda vive com coragem e disposição admiráveis, sempre se cuidando e se enfeitando para ficar bem apresentável. Disse que viveu uma vida longa e boa e é grata a Deus. Não tem mais nenhum sonho, apenas que Deus olhe o seu neto Ricardo, que por não enxergar, sempre é a sua maior preocupação.
         Daqueles tempos saudosos de Banda de Música, de ensaios, de danças e apresentações da batiam, ainda ficou uma herança cultural preciosa na família. O neto Ricardo, mesmo não possuindo acuidade visual, é um exímio pianista e tecladista. Aprendeu a leitura Braille e toca qualquer peça dos Clássicos. Consegue ainda, reproduzir as baladas japonesas, após ouvir duas a três vezes, pois tem uma memória auditiva fantástica. Volta e meia é convidado para participar de Saraus e Audições Musicais. Atualmente, está se preparando para tocar na Missa do Galo na Matriz.
   
      Kawasaki sama, que dedicou parte de sua vida cuidando do neto Ricardo, senhora sábia, que foi um dos pilares do Clube Nipo, que deu aulas de Japonês, que jogou gate ball por anos e anos, que liderou por décadas a cultura da Colônia com os Nodojiman, com as Danças, com os Bom Odori e com as Promoções Sociais, que vive em  perfeita harmonia com a nora Kazuko, com o neto e o filho Sadao, é sem dúvida alguma, um exemplo de vida. 
         É acima de tudo, Gente de Fibra!

        Legenda:

                  01- Senhora Kimiko Kawasaki atualmente
                      02- Famíla Kido  em Vila Nova Mirandópolis - 1934
                      03- Senhoras do grupo de dança japonesa
                      04- Banda Musical do Clube Nipo
                      05- Time de gateball
                      06-  Senhora Kawasaki  numa apresentação artística
        

         Mirandópolis, dezembro de 2013.
         Kimie oku in http://cronicasdekimie.blogspot.com.br/




2 comentários:

  1. Linda história!

    Passou um filme em minha cabeça, pois presenciei muitas passagens dessa família, tão docemente discorridas aqui por você, Kimie.

    Arigatô!

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