Cultivar
Flores e polir a alma
Uma das paixões de minha
vida é cultivar flores.
Não importa se é uma flor
nobre, cultivada em jardins famosos, ou se é uma flor caipira sem nome, que
nasce em qualquer greta do chão ou da calçada, onde caiu a semente.
Gosto e aprecio muito
enterrar os grãozinhos, e ver os brotinhos erguendo o topete, para se
transformarem em novas plantinhas. E isso ocorre devagarinho, conforme vão
recebendo luz do sol e água...
E diariamente, como se fosse um ritual, espio
as novatas, para ver seu crescimento. E retiro os inimigos que estão sempre à
espreita, para devorá-las. E as replanto em vasos, e as adubo com carinho, para
que cresçam fortes, e deem belas flores. E é uma alegria, quando começam a
despontar os primeiros botões.
A
essa altura, a minha felicidade é tanta que, gosto de expor as plantas
floridas, junto da grade de minha casa, para os passantes também as
apreciarem. Então, sempre coloco uns
vasinhos à vista, para dar um pouco de alegria às pessoas apressadas, que
passam pela calçada, preocupadas com seus problemas... Penso que ver algo belo
da natureza, num momento de aflição, ajuda a esquecer por instantes, os
tormentos da alma... .
Então, um vaso cheio de flores coloridas é sempre um refrigério
para a alma. Penso que é uma bênção. De Deus.
Mas
nem todos pensam assim.
Hoje
tive a decepção de ver arrancada e furtada uma plantinha coberta de flores
roxas, tão lindas... Tristeza...
A pessoa que a furtou não vivenciou nada para
possuir a planta. Não a plantou, não a regou com carinho, não afofou a terra,
não a adubou, não combateu as pragas, não endireitou os talos, não a colocou
umas horas ao sol, não a protegeu do vento e do frio, não observou seu
desenvolvimento, não viu os primeiros botões despontando, não testemunhou a
primeira flor se abrindo para a luz do dia... Mas a arrancou e levou embora.
Assim, grosseiramente, sem nenhuma
consideração. .
Furtou-a de minha vista e de todos. Como
se tivesse o direito de fazê-lo. Como se tomar posse de algo alheio fosse
natural.
E
como tinha consciência da ação ilícita, fê-lo furtivamente, às escondidas.
Não lhe tenho raiva, porém.
Tenho-lhe muita pena. Tenho pena porque ela deve ter inveja, muita inveja das
coisas belas, que pertencem a outros.
E por ser incapaz de cultivar uma
plantinha que seja, precisa surrupiar de outros. Acho que é uma pobre criatura,
para quem roubar as coisas alheias é o máximo de felicidade.
Acho também que deve ser amoral, pois se não é
capaz de respeitar a propriedade alheia, não deve respeitar direitos de ninguém
também. E acredito que, se é capaz de surrupiar
objetos alheios como flores, deve ser capaz também de outras atitudes ilegais.
Porque é tão simples pedir, sem precisar
roubar.
Mas, acostumada em praticar atos ilegais,
não tem a sensibilidade de pensar na decepção, que é capaz de provocar aos outros.
Conheço amigos que têm essa mania, de não resistir às coisas belas que vêm. De
um jeito ou de outro, eles querem ter a posse do objeto, mesmo que não esteja à
venda. E aí acabam cometendo pequenos furtos.
Se não forem barrados no início, acabará virando mania, ou
cleptomania, que tanto transtorno causa aos familiares...
Quando eu era criança de uns sete anos de idade, vi uma régua
transparente de vidro, que me deixou fascinada... Naquela época, ninguém
possuía réguas desse material, e nem de plástico, pois era tudo de madeira.
Peguei a régua na mão, alisei-a, e senti forte tentação de
surrupiá-la, porque era muito bonita, e mais que tudo, era uma novidade. O objeto do desejo estava na casa de uns
vizinhos. E não havia ninguém à vista.
Mas... Mesmo querendo de qualquer jeito
pegar a régua, fui tomada de medo do meu pai, que era rigorosíssimo quanto a
essas atitudes.
Ele não admitia que se pegasse objetos dos outros, mesmo que
fosse por brincadeira.
Na minha ideia de criança, veio a imagem
de papai pedindo explicações sobre a régua...
E deixei-a, onde estava.
Com muita pena, mas deixei...
Quanto a desejei!...
E nunca confessei isso aos meus pais, nem aos irmãos...
E jamais esqueci esse momento de tentação de afanar um objeto
alheio.
E agradeço à educação
rígida que papai nos impôs, para nunca envergonhar a família. E sempre que ouço
sobre larápios, cleptomaníacos ou ladrões mesmo, fico pensando que tudo teve um
começo como a situação que vivi.
E mesmo sendo uma criança pequena ainda, já sabia discernir o
que era certo ou errado. Como poderia
justificar o ato diante de papai, que não admitia mentiras?
E a verdade ensinada por papai foi tão forte, que mesmo passado
mais de meio século, ainda ressoa em minha alma, como lição gravada a fogo na
minha formação. E desperta a lembrança com as ocorrências tão corriqueiras,
como a que vivenciei hoje.
Roubar flores...
Alguém pensa que pode roubar a beleza de uma linda flor,
surrupiando sorrateiramente um vaso de flores, uma muda... Mas, ledo engano!
Ela nunca saberá da felicidade de semear, cuidar da brotação, de
regar com delicadeza, para não machucar as folhas tenras, de afofar a terra,
para as raízes se desenvolverem livres, de ver o crescimento da planta,
correspondendo aos cuidados dispensados... Ela poderá ter a posse do objeto,
mas de um objeto que não conhece...
Porque o melhor de cultivar flores está no processo de cuidar,
acompanhando cada passo, participando da evolução...
É tal qual a alegria de se organizar uma festa. Cuidar dos
detalhes, selecionar e preparar o cardápio, a decoração, a música, reunir as
pessoas e dividir tarefas... Existe algo mais contagiante?
Mas essa linguagem só poderá ser entendida e compartilhada, por
quem sabe dar valor aos sentimentos, mais que aos objetos materiais.
E hoje em dia, muito pouca gente sabe cultivar a linguagem da
alma.
Então, furtam-se flores.
E outras coisas mais...
Mirandópolis, 25 de janeiro de 2012.
kimie oku