quinta-feira, 29 de outubro de 2015

                                A mão de Deus

Há exatamente um ano que ocorreu uma tragédia que abalou a cidade. O amigo Sadao, sua esposa Kazuko e o filho Ricardo partiram pra sempre.
Estávamos tão acostumados com o Sadao na Relojoaria Kawasaki, servindo aos clientes com a seriedade e honestidade de sempre, que jamais imaginaríamos uma partida tão repentina levando toda a família. E a Kazuko, a mulher que fez de sua vida a missão para cuidar do filho Ricardo, que não enxergava. Lembro que ele conseguiu enxergar até os dois anos de idade mais ou menos, mas o nervo ótico apresentava uma deficiência, que não teve cura. E não permitia nem transplante de córnea. Quando ele estava perdendo a visão chorava muito, e eu tive oportunidade de ouvi-lo algumas vezes, lá da loja. O coração chegava a doer...
Cercado pelo amor dos pais e pelo carinho inabalável da avó dona Kimiko, Ricardo conseguiu viver quase quarenta anos. E marcou pela paixão à música. Aprendeu a tocar piano, e conseguia tocar os clássicos... Para isso, a mãe o ajudara vertendo as partituras escritas tradicionalmente para o Braille. Ela estudou o Braille para ajudar o filho não só nas partituras musicais, mas também nos trabalhos escolares. Dona Kazuko viveu a vida para o filho exclusivamente, deixando praticamente de viver a própria... Missão.
O temor desses pais e da avó era deixar o Ricardo neste mundo, sem alguém que pudesse ser seu arrimo. E a avó resistiu, vivendo até mais de noventa anos, preocupada com o futuro do neto. Quando o menino era mais novo, essa avó o conduzia pelas calçadas para fazer a caminhada diária. E todas as pessoas viam o cuidado com que o conduzia.
Nós, pais de filhos sem deficiência física, emocional ou mental não conseguimos imaginar como deve ser dificílimo cuidar de uma criança, que não enxerga... Só podemos supor. Mas, conviver todos os dias, todas as horas... E o medo do filho não se tornar autossuficiente, isso estava presente no coração da dona Kazuko dia e noite, sem parar.
Apesar da deficiência, Ricardo conseguiu viver uma vida tranquila, participando das missas na Igreja católica, onde tocava piano volta e meia. Quando partiu, estava ensaiando para tocar na Missa do Galo... E no Clube Nipo ele ouvia as sessões de Nodojiman e Karaokê, onde se encantava com os enkas ou baladas japonesas.  Conseguia memorizar facilmente as músicas que ouvia tocar. E cada enka que tocava ele relacionava com os amigos do Nipo, que as cantavam. Seu avô senhor Toshio Kawasaki foi um dos fundadores da Banda Aiko Kai, que tocava nos concursos de canto japonês no Nipo. Assim, os filhos Sadao, Tomie e Satiko juntamente com outros jovens locais, aprenderam música e tocaram na Banda nos Obon Odori, por um bom tempo.
Mesmo carregando uma grande preocupação com o futuro do filho sem acuidade visual, Sadao e Kazuko cumpriram seu destino na Terra como cidadãos comuns, trabalhando com afinco, cumprindo seus deveres religiosos, indo à missa semanalmente e participando das atividades sociais, sem nenhum problema. Deram conta de sua vida, sem se tornarem um peso para a comunidade. E conseguiram o respeito e a admiração de todos.
Acredito que assim como a batian Kimiko, os pais Kazuko e Sadao passaram boa parte de suas vidas orando a Deus e, pedindo proteção para o jovem Ricardo, que não poderia viver sozinho nesse mundo. Tanto a batian como a senhora Kazuko confessaram para mim que, a grande preocupação era o futuro do Ricardo, quando elas já tivessem partido. Porque ele dependia muito delas.
Mas, Deus que tudo vê, que tudo provê, mostrou para toda a população de Mirandópolis que, Ricardo não ficaria sozinho, quando seus pais tivessem partido. E assim, numa noite de outubro do ano passado, Deus os levou de uma vez. Foi, é verdade, uma coisa assustadora que deixou a cidade estarrecida. O choque para a família foi muito grande.  Todos se preocuparam com a batian Kimiko, que estava fraca de saúde e com noventa e um anos... Mas, passado o choque inicial, ela mesma aceitou bravamente a partida dos três e agradeceu a Deus, porque como me disse nenhum deles poderia sobreviver sem os outros. Porque o Ricardo era a razão da vida dos pais e estes eram o seu verdadeiro arrimo.
E assim, passados apenas uns cinco meses, a avó Kimiko Kawasaki também conseguiu partir em paz, certa de que o neto e a família estão sob a guarda de Deus. Partiu suavemente, com a certeza de ter cumprido sua missão na Terra.
Tudo isso provou que a mão de Deus é poderosa. Ninguém em sã consciência pensaria que, aconteceria o que realmente aconteceu. Ninguém desejaria a partida dos três de uma vez e tão subitamente.
Deus tudo vê, Deus sabe das dores de seus filhos, das ansiedades de uma mãe, de um pai, de uma avó. Só Deus pode ler o que se passa na mente de cada um de nós...
Deus tem solução para tudo. Basta ter fé.
Por isso, vamos confiar na Providência Divina e aguardar que se cumpra o nosso destino.
Na mão de Deus.
Mirandópolis, outubro de 2015.
kimie oku in

2 comentários:

  1. belo texto, parabéns!!! Você com o seu dom conseguiu retratar com doçura a realidade..... muito emocionante.

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