segunda-feira, 15 de outubro de 2012



Aos Mestres... com saudades

    Era o nosso primeiro dia de aulas no GEM, Ginásio Estadual de Mirandópolis e  chegávamos com um misto de curiosidade e medo, mas ao mesmo tempo orgulhosos, pois havíamos passado na frente de dezenas de meninos ao sermos aprovados no Exame de Admissão. Íamos freqüentar um novo mundo escolar, deixávamos a aritmética e conheceríamos a matemática, alunos  de uma professora polivalente passaríamos a ser alunos de professores específicos para cada matéria. Na hora da chamada teríamos nosso nome substituído por um número.  Coitado daquele que recebesse o número vinte e quatro.
          Os alunos veteranos nos observavam fazendo gozações e já nos colocando apelidos, tivemos sorte porque o diretor Pedro Perotti tinha proibido o trote a partir daquele ano. Só fomos intimados a não aparecermos mais de “cuecas” no ginásio, isto porque usávamos calças curtas. Os uniformes também mudaram, o tradicional terno cáqui e gravata foram abolidos e os novos seriam calças verde oliva e camisa  bege com gola trespassada. Os de educação física seriam calções azuis, camisetas brancas, kédis e meias  brancas.
          Durante estes anos de ginásio tivemos muitos professores, alguns por pouco tempo, outros por muito tempo. Todos permanecem em nossa lembrança, mas para o garotinho de dez ou onze anos de idade, que recebeu o impacto daquela mudança, os primeiros marcaram muito.
          A professora Zei nos apresentou às notas musicais, às fusas e semifusas; às colcheias e semicolcheias; ao pentagrama e à clave do sol. Aprendemos a ler a partitura e a solfejar: dorémifásol...rémifá   rémi  rédo ...
          Com o professor Ademar Sigristi realizamos vários trabalhos manuais: com a tesoura, cartolina e cola construímos vários poliedros,  com papel sulfite nos tornamos peritos na arte das dobraduras.
  O professor Onofre aumentou os nossos conhecimentos da História do Brasil e o professor Ivan nos levou a conhecer o mundo: conhecemos  os Maias, Astecas e Incas. Ao lado de Simon Bolívar participamos da libertação de países da América do Sul. Acompanhamos George Washington na proclamação da independência dos Estados Unidos,  ficamos com Abraham Lincoln e o General Grant  e os vimos vencer o General Lee, comandante dos Confederados, na guerra de Secessão. Passamos por todos os períodos da história da humanidade, mas foi o Renascimento, na Idade Moderna, que mais nos agradou., com seus artistas, cientistas e literatos.
   Na antiguidade conhecemos a coragem de Davi, a força de Sansão e a sabedoria de Salomão. Passamos medo na Idade Média com a Inquisição e sofremos  as dores de Joana D’Árc. Torcemos por Napoleão Bonaparte na batalha de Waterloo e assistimos à Guerra dos Cem Anos. Nos silenciamos perante o horror de Nagasaki e Hiroshima.
          Aos onze anos de idade tínhamos aulas de Latim ministradas pelo professor Sanvito. Tínhamos de saber as declinações: puella, puellae, puellarum, puellam... Suas citações em latim eram conhecidas, principalmente a que dizia quando íamos fazer uma prova: Alea jacta est... Ingênuamente, ele distribuía as provas para que cada aluno corrigisse a do colega. Passamos a fazer as provas a lápis.
         Julio Mazzei foi embora para o Santos, para o Kosmos e no seu lugar veio o professor Jenner  que trouxe na bagagem uma bola pequena, cheia de crina de cavalo e regras para um jogo de quadra. Era o futebol de salão. Amor à primeira vista. Paixão para uma vida toda.
          Tivemos poucas aulas com a dona Noêmia, uma pessoa, simpática, querida por todos, mas Deus a levou. O professor Zanin veio substituí-la, recém formado, dinâmico, chegou querendo transmitir o que sabia e conquistou todo mundo.  Fizemos experiências, conhecemos todos os ossos do corpo humano, do calcâneo ao occipital. Aprendemos que o maior órgão do corpo humano é a pele e que o coração é do tamanho da nossa mão fechada. Vimos que temos a mesma quantidade de costelas dos dois lados do corpo apesar de a Bíblia citar que Deus tirou uma para criar Eva. Eu acho que ELE tirou duas: com uma fez a mulher que não conhecemos e com a outra fez a mulher que pensamos conhecer. De qualquer modo foi o melhor presente que ELE nos deu,  melhor que a própria vida, pois sem a mulher a vida não teria significado.
          Ela era simpática, pequenina, graciosa e nos conquistou aos nos cumprimentar fazendo beicinho: bonjour, mes amis. Dona Ani desenvolveu em mim o interesse pela língua francesa. O Hino Nacional Brasileiro, o Hino da Independência e a  Marselhesa são, para mim, os três hinos mais bonitos que conheço: Allons enfants de la Patrie. Le jour de gloire est a arrivé!...
          Nós já a conhecíamos dos exames de admissão. Era grandona,  rigorosa, enérgica  e às vezes gozadora. Dona Dirce ensinou-nos que “menas” não existe, que não se diz “fazem” tantos anos e que índio é que fala “ mim fazer... mim pegar...” Nas sextas feira, as aulas eram de redação. Alunos eram sorteados para apresentarem uma redação na aula seguinte. Fui sorteado e meu tema era “o entardecer”. Pedi para o Zé Pedro fazer para mim. No dia da apresentação ele me entregou a redação. Neste dia o diretor, dr. Neif, foi assistir à apresentação.
Todo trêmulo fiz a leitura da minha redação. Fui aplaudido, todos gostaram e dr. Neif me elogiou, mas perguntou-me se já tinha lido José de Alencar. Intrigado com a pergunta respondi-lhe que não, nunca tinha lido José de Alencar. A conversa acabou ali.
          Anos depois, já no científico, lendo Iracema, qual não foi a minha surpresa ao verificar que o famoso escritor havia usado a “minha redação’ para descrever o anoitecer. Que vergonha!!!! Ah Zé Pedro!!!Ah Zé Pedro!....
          Dona Celina era bonita, bonita, gostosa e autoritária. Não dava um sorriso, parecia um sargentão ministrando aula. Suas aulas eram de disciplina militar. Tínhamos de sentar eretos, olhando na nuca do colega da frente. Se um objeto caísse não podíamos pegar. Acho que ela descobriu porque alguns alunos derrubavam a caneta e abaixavam para pegar. Se fôssemos falar tínhamos de erguer a mão e...: teacher, may  I have a question?    I don’speak  and I don’t know English, but I to learned lot from her.
          A professora Dalva Colaferro ficou pouco tempo conosco. Estava doente, tirou afastamento e não voltou mais, vindo a falecer. Dona Myriam assumiu as aulas e com ela navegamos pelos oceanos, conhecemos os cinco continentes. Atravessamos os canais do Panamá e de Suez, escalamos as Montanhas Rochosas, os Alpes e os Andes. Do alto do Kilimanjaro avistamos toda a África, admiramos o Grand Canyon e nos aquecemos nos gêiseres da América do Norte. Vimos a fertilidade do Nilo, descemos o Velho Chico numa gaiola e nos assustamos com a pororoca no Amazonas.
          O professor Oswaldinho e o Kazuo nos ensinaram a regra de três, que tanto galho nos quebrou, mostraram-nos que logaritmo não era nenhum bicho de sete cabeças, que hipotenusa não era palavrão e que catetos não são só porcos do mato.
          Queridos mestres, como o lavrador que ara e semeia a terra  vocês semearam o saber. Temos um pouco de vocês na nossa formação.
A vocês, os nossos agradecimentos e as nossas saudades.

Ademar Bispo
          
              
         
         

2 comentários:

  1. Muito boa a cronica do Bispo.

    Parabéns. Tudo isso fica na lembrança.....

    É muito bom reviver.

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  2. O tempo não passa nas palavras, um retorno ao passado. Imaginação e vontadade de voltar lá trás e reviver, e dizer para aquela garotada que o mundo no Sec. 21 seria outro. Os anos eram longos e tudo andava devagar tínhamos tempo pra tudo., mas tudo termina num piscar de olhos. Lembranças que nosso amigo Bispo nos trás com perfeição e cheio de bonanza. A palavra correta é Saudades. Muita linda a crônica.

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