quinta-feira, 18 de outubro de 2012




Maria Benedita Moreira de Assis


Eu a conheci no final dos anos 60.
Ela, mãe de aluno; eu, professora de seu filho.
        Grupo Escolar de Amandaba, quando o Bairro era um lugar super-povoado, pobre e sem conforto.
Para ir até lá, atolei trocentas vezes com o meu fusca nos buracos da estrada, enfrentei barreiros inacreditáveis, poeira sem fim...
Alunos? Trinta e cinco, quarenta por classe. Todos paupérrimos, de chinelos havaianas os que tinham melhores condições. Os demais, descalços mesmo. Material escolar? A Caixa da Escola tinha que acudir, senão não haveria freqüência... Merenda? Sopa de fubá com almeirão e ocasionalmente, um arroz doce. Os meninos reclamavam do fubá: “Não sou filhote de louro prá comer papa de fubá”
Aula era na lousa, no giz branco, que colorido, só quando a professora comprava... Livro de leitura em preto e branco com raras ilustrações, cadernos só de brochura, borracha, caneta... Os pontos de História do Brasil, de Ciências, de Geografia eram todos colocados no quadro negro, e copiados pelos alunos. Não existia livros dessas matérias, e os alunos copiavam e estudavam, sem resmungar.
Alunos que não dominavam os pontos ensinados, as operações matemáticas, e que não eram capazes de redigir textos eram inexoravelmente reprovados, para reverem todas as matérias no ano seguinte. Não havia Conselhos de Classe, de Série...
Só que todos aprendiam a calcular porcentagem, áreas de terrenos, tabuadas, quem descobriu o Brasil, quem foi Anchieta, Mem de Sá, Duque de Caxias, Tiradentes e sabia o significado do dia 7 de setembro, de 15 de novembro e  cantava o Hino Nacional e respeitava a  nossa Bandeira.
E havia um respeito muito grande pelo Professor. Os pais compareciam às reuniões de Pais e Mestres e ouviam respeitosamente a fala do Diretor e as orientações dos Professores. Os Mestres primavam pelo empenho de serem professores orientadores e os Pais primavam pelo desempenho de sua missão de serem progenitores de alunos. Assim as coisas caminhavam. A Educação era para valer. O professor era a imagem em que se espelhavam os alunos.
Foi por essa época que conheci Dona Maria. Apareceu-me na Escola no final do período, vestida toda de preto, enlutada pela morte do esposo, que havia ocorrido uns dias antes. Conduzida pelo filho Antonio,  que era meu aluno, veio falar comigo. Estava desesperada. O fazendeiro havia jogado sua mudança no terreiro, porque seu marido morrera e ela não tinha serventia para ele. Tinha seis filhos com menos de dez anos de idade, e estava prestes a ter o sétimo.
Sua mudança fora despejada e era um dia de chuva, e não tinha onde abrigar os filhos... Fiquei atarantada, sem rumo... Como ajudá-la?  Naquela época, eu também estava pelejando para criar meus filhos pequenos, e não tinha um cômodo para abrigar uma família inteira.
Atordoada, olhei para cima, pedindo ajuda a Deus, e quando baixei os olhos vi uma colega professora, cujo marido fazendeiro viera buscá-la e a seus filhos, porque moravam numa fazenda próxima. E sem hesitar, fui  até eles e pedi que me ajudassem a resolver o problema.
E ele, generoso, disse apenas: “Tenho uma tulha de café que está vazio aqui no bairro, se a senhora não se incomodar, pode ficar lá.”
E o próprio fazendeiro mandou seus empregados buscar a mudança e acomodar a família de dona Maria, que ficou morando por anos nesse lugar. Além do mais, o fazendeiro lhe forneceu leite de graça por anos.
Esse período de vida foi o mais sofrido para dona Maria. Por mais que trabalhasse no Bairro como lavadeira e ou cozinheira nas casas de família, a renda era mínima, porque mesmo as patroas eram pobres e, não podiam lhe pagar como merecia e precisava para alimentar as crianças.
Lembro-me que sempre que podia, fazia cestas de comida para ajudá-la. Um dia, me contou que havia cozinhado milho seco que havia na tulha, para alimentar os meninos. Outra vez, ela mandara as crianças dormirem mais cedo, porque não havia nada para comer...
         Um dia, conseguimos incluí-la num programa de assistência do Governo, cuja responsável local era a Cartorária Doutora Julieta Antonieta Simioni. E todos os meses, ela vinha receber esse auxílio, que era irrisório, mas que ajudou a comprar o arroz e o feijão.
Entretanto, o fazendeiro que a abrigou na tulha se tornou Prefeito, e atendendo a um pedido dos professores e pessoas do Bairro, contratou dona Maria como Merendeira. E dona Maria merendeira se tornou. E a estabilidade chegou, com os filhos já mocinhos enfrentando serviços nas roças da vizinhança.
Dona Maria Merendeira era caprichosa, e amava fazer merenda. Não faltava às suas obrigações, a não ser para acudir a uma filha excepcional que possuía.
Por anos e anos, dona Maria foi a Merendeira da Escola. Respeitada pelos alunos e estimada pelos professores, para quem sempre fazia o almoço.
No final dos anos 70, deixei o Bairro, por transferência de sede de serviço e por um bom tempo, perdi o contato com ela.
Mas, os filhos foram crescendo e se casando, e a filha que precisava de sua assistência ficava sozinha em casa. Temendo que algo de ruim pudesse acontecer a ela na sua ausência, dona Maria se aposentou sem ter completado o tempo necessário, com renda parcial.
No começo dos anos 90, eu me aposentei e retomei o contato passando a visitá-la. Estava envelhecida, triste e só com a menina Ivanilde. Tinha muitas saudades da escola onde fora merendeira por anos, e tinha um desejo imenso de revê-la.
 Um dia, há uns três, quatro anos, eu a coloquei no carro e rumamos para a escola, que ficava distante de sua casa. Era uma tarde de sábado e a escola estava fechada, mas demos uma volta, relembrando os tempos agitados, com centenas de crianças correndo pra lá, pra cá. Percebemos que as árvores do bosque estavam imensas, e aproveitando a tarde silenciosa, sentamos à sombra delas e ficamos ouvindo os pássaros cantando. Passamos uma hora agradável ali.
De outra vez, eu a convidei para dar um passeio e a levei à escola, num dia de semana. A escola estava aberta e pudemos rever as dependências. Revisitamos o refeitório e a cozinha, onde havia um fogão de lenha, no qual dona Maria fizera tantos doces. Mas, ela não ficou feliz nessa visita. Todas as dependências tinham sido reformadas, e nada lembrava a cozinha e o refeitório de antes. Dona Maria se sentiu um estranho no ninho. Para consolá-la, sentamos sob as árvores amigas e relembramos os Diretores e Professores que ali havíamos conhecido...
Entretanto, a menina, que os médicos prognosticaram uma existência de 15 anos no máximo, viveu até os quarenta e tantos anos. Sua deficiência era a seqüela de Meningite, que contraíra aos dois anos de idade, que afetou sua fala e seus movimentos, tornando-a dependente de ajuda. E assim, a vida da dona Maria ficou limitada a cuidar da filha, cujas dificuldades de fala, e de locomoção foram aumentando com o passar dos anos.  Mesmo nos últimos tempos, quando a fala era quase impossível, a Ivanilde me reconhecia como a “dona Timie”. E há dois anos, essa menina acabou falecendo, após muito tempo acamada. A menina era a paixão de Dona Maria.
Com a partida da moça, dona Maria se viu de repente, sem a companheira de anos e anos e perdeu o rumo na vida. Após o funeral, ela se deitou e nunca mais se levantou.
E agora, aos setenta e nove anos de idade, está também de partida. Entre uma internação e outra, está cada vez mais fraca, mais esquecida e mais confusa. Com ocasionais reidratações no Hospital, vai sobrevivendo, mas sabemos que o fim está próximo. Ainda me reconhece e sabe dizer meu  nome...
E estamos orando que Deus tenha misericórdia e a leve mansamente, sem sofrimento, para um lugar de sonhos, onde está a querida filha Ivanilde.
Dona Maria Benedita Moreira de Assis, minha valente amiga...

Mirandópolis, outubro de 2012.
Kimie oku in “cronicasdekimie.blogspot.com”

Dona Maria faleceu hoje aos oitenta anos de idade, em 26 de maio de 2013.

2 comentários:

  1. Lí essa história de uma vida com um nó na garganta, tem aquele frase "poucos com muitos e muitos com pouco", é o retrato de muitas familias que nós vimos a grande dificuldade de sobreviver nesse mundo de desigualdades. Eu sempre morei do lado de um bairro que foi um dos primeros a ser habitados por pessoas sem nada a ter, e nós nossa familia socorremos muitas delas é o bairro "pito acesso" com o nome legal de Labor, tinha até barraco de papelão, foi na decada de 60 seu inicio, hoje é muito diferente do seu inicio. Kimie retratou o que as professoras conviveram com as familias de seus alunos, e ainda hoje tem muitos casos. Os governantes que saqueam os cofres públicos não tem coração e desconhecem essas diferenças.É a vida e continua.

    ResponderExcluir
  2. Também estudei nesta escola na década de 60; e de fato a miséria era muito grande naquele momento devido à crise do café e os fazendeiros despejavam mesmo as famílias de suas propriedades sem nenhuma indenização. Me recordo que muitos colegas de classe procuravam a Diretora da escola, pedindo para serem colocados na "caixa". A professora à que a kimie se refere deve ser a querida professora Dona Terezinha(muito amável e dedicada)e seu marido, diferente dos outros fazendeiros tinha um pouco mais de respeito pelo próximo. Moro atualmente em Londrina-Pr, onde fiz meus estudos superiores na Universidade Estadual de Londrina e atuo no mercado financeiro. Tive recentemente o prazer de encontrar aqui o Sr. Alceu Ribeiro, que foi zelador do Grupo Escolar de Amandaba na época em que lá estudei; e ele também está morando em Londrina-Pr.

    ResponderExcluir