sábado, 4 de maio de 2013




            Lembranças da infância


Moro há tantos anos em Mirandópolis, mas sou laviniense de fato.
         Já me disseram que não se diz laviniense, mas lavinense. Dizem que esta é a forma correta, mas sinto que não estarei dizendo a verdade se disser que sou lavinense. Portanto, sou laviniense e ponto final.
Nasci numa fazenda, lá no Bairro União, na Estrada que vai para Tabajara. Tenho algumas leves reminiscências desse lugar. Era uma fazenda habitada por famílias de japoneses, cujos chefes de família haviam chegado ao Brasil tempos antes, como imigrantes. Lembro que havia a família Fujito, a família Une e outras, das quais nem lembro os nomes. É que vivi ali só até os quatro, cinco anos de idade.
 Lembro-me de um buraco no chão, acho que era um tipo de cacimba para guardar água da chuva para as hortaliças. Quando não havia água, as paredes do buraco ficavam cheias de borboletas. Eram umas borboletas que possuíam um desenho de oito nas asas, e as pessoas chamavam-nas de borboletas 88. Eram bonitas, coloridas de rosa, branco e preto.  Eu ficava fascinada vendo os bichinhos às centenas, batendo as asas e mudando de lugar no fosso.

 Lembro também que a nossa casa era tão pobre, feita de cascas de madeira escura, de cujas frestas se via a máquina de costura de mamãe, a única preciosidade dela. Éramos mais pobres que pobres. A casa ficava no meio de um pasto e eu tinha terror das vacas que vinham pastar no quintal.
Na casa dos Fujito, existia um moço deficiente de idade indefinida, que todo mundo tratava com desprezo. Era muito feio, porque tinha a cabeça raspada, usava um camisolão preto semelhante a uma batina de padre e andava descalço. Os moleques se divertiam levantando sua saia para lhe espiar as partes íntimas, e ele ficava apavorado quando os via. Às vezes, esses mesmos meninos atiravam pedras nele, e ele fugia chorando. Não sei porque faziam isso com ele. Acho que era ignorância pura. O moço que se chamava Yoshio, ou Yoshio-san como o chamávamos era manso e não fazia mal prá ninguém. Todas as tardes, andava devagarinho sob as grandes mangueiras, catando varas e ia juntando-as no braço esquerdo. Quando tinha uma boa porção, ele as ninava, como se fosse um bebê, falando ou murmurando: hiá, hiá, hiá, ha, ha, ha... Isso ele fazia por horas intermináveis.
Aos domingos, havia partidas de beisebol, em que todos os homens adolescentes e adultos participavam. Eram reuniões muito animadas. Só se falava em japonês. Eu andava no meio dos adultos feito barata tonta, sem saber para que eu estava ali.
Foi por essa época que ocorreu a 2ª Guerra, que envolveu o Brasil e o Japão em lados diferentes. Getúlio Vargas era o Presidente, e temendo um levante dos japoneses fanáticos pela pátria distante, que ia perdendo seus soldados e o alento diante dos Estados Unidos, mandou recolher todas as armas dos japoneses.
Por que eles tinham armas?
Porque ao redor tudo era mata, floresta virgem, habitada por onças e outros bichos que metiam medo.
Cumprindo a ordem dos federais, a polícia de Lavínia visitava todos os núcleos de japoneses e fazia uma devassa nas pobres casas à procura de armas. O pessoal do Bairro União, num lance inteligente, resolveu levar as armas voluntariamente, e papai e mais um japonês levaram à Delegacia de Polícia, quatro sacos de espingardas e outras armas de fogo. As melhores, porém, eles as enterraram e não entregaram. (Soube dessa história anos mais tarde).
Eu não tenho certeza, mas no Bairro União, parece que os japoneses cultivavam algodão.
Outra lembrança que tenho é da mudança. As nossas tralhas eram tão poucas, que a mudança foi feita em carroças, puxadas por animais. Caminhões nem existiam no pedaço. Lembro que eu era tão pequena, mas tive que ir a pé, porque havia irmãos menores para serem carregados por mamãe, papai e pelos irmãos maiores. Papai havia comprado um pequeno sítio a uns três quilômetros do Bairro União, na direção de Tabajara. Eram terras de Jeremias Lunardelli, que vendeu vários lotes de dez alqueires para os imigrantes japoneses. E aí se reuniu outro grupo de japoneses que, tiveram que derrubar a mata densa, onde até havia onças, para começar o cultivo do café. O Bairro ficou conhecido como Bairro Oriente e ficava a uns quatro quilômetros de Tabajara.
A lembrança mais forte que tenho dos primeiros tempos nesse sítio é da queimada da mata virgem do vizinho, Paulo Paschoal. Era um quadrado pequeno, mais ou menos equivalente a quatro quarteirões de árvores imensas, acho que centenárias, e se localizava em frente à nossa casa. 
Acho que foi de tardezinha que começaram a incendiar a mata, e eu fiquei muito impressionada. Em pouco tempo, toda a mata ardia e as labaredas pareciam chegar aos céus. Senti um misto de terror e fascinação por aquelas chamas vermelhas, e pelo barulho dos troncos estralando, estralando. Todos os homens andavam em volta da mata, vigiando, talvez para o fogo não se alastrar e ficar descontrolado. Lembro que a gritaria era sem fim, e só tarde da noite  é que tudo se acalmou. O fogo ardeu por dois ou três dias e mamãe nos recomendou muitas vezes para não chegar perto.
Tenho uma lembrança fugidia de um veado vermelho atravessar correndo o arrozal verde numa manhã luminosa. Lembro que tinha a pelagem avermelhada e muito brilhante. Para onde foram os bichos que nós expulsamos da mata?
Quando era época de milho verde, os macacos vinham roubar as espigas, e nós crianças tínhamos a tarefa de escorraçá-los. O milharal estava cercado por mata virgem e os macacos não perdiam a oportunidade para se banquetearem. Depois de algum tempo, nem adiantava jogarmos paus e pedras, porque os bichinhos eram rápidos, roubavam as espigas e voltavam céleres para as árvores, guinchando, como se estivessem zombando de nós.

Lembro também que meus irmãos mais velhos ficavam de tocaia à noite, para matar uma onça que vinha dizimar nosso pequeno rebanho. Nunca ninguém conseguiu pegá-la. Acho que os irmãos se pelavam de medo, passando a madrugada em cima de árvores...
No meio da mata havia uma clareira onde morava um casal, o Dito Vermelho e dona Maria. Já relatei sobre eles em minhas crônicas, mas, vamos lá. Viviam de criar porcos com os cocos de macaúba, cujos pés havia às centenas em volta da pobre cabana feita de troncos de coqueiro. Eles matavam os porcos e iam até Tabajara vender a banha e a carne cozida. Iam a pé, descalços, levando a lata de dezoito litros com a banha e a carne na cabeça para trocar com açúcar, feijão, farinha e fumo de corda. Décadas mais tarde, reencontrei a dona Maria andando descalça como antes, com uma rodinha de pano sobre a cabeça e uma piteira na boca. Vinha até Mirandópolis pedir “um ajutório para a vó”, indo de Banco em Banco, e percorrendo todas as mesas dos funcionários. Aos que lhe davam uns trocados ela abençoava “Deus te abençoe, meu filho!”  Descobri esse final de sua vida por causa do meu esposo que, toda sexta-feira separava uns trocados para a vó.
Esse sítio na estrada de Tabajara pertenceu a nossa família por 37 anos. Inicialmente, foi cultivado o café, mas com a crise da superprodução, cultivou-se algodão, banana-maçã, cebola e manga.
Já se passaram quase três décadas desde que o sítio foi vendido. E movida pelas saudades, voltei duas vezes lá. Tudo se transformara em pastagem para gado.
Antes nem tivesse ido. Das lembranças que havia na memória, nada restava. O poço que havia nos fornecido uma água boa e saborosa fora enterrado. A casa se transformara em habitação de morcegos. O gado nelore entrava por uma porta, punha a cabeça na janela e mugia para fora. Só o velho bambuzal estava firme no lugar. Ah! E o velho pé de guaivira, que fornecera tantos cabos de enxada nos bons tempos. Foi muito triste ver a decadência e o abandono do lugar. Senti que intrusos tomaram posse de um lugar sagrado.
Porque a casa que, nos acolheu na infância, é de fato um cantinho sagrado, que merece ser respeitado.
Ainda bem que a gente tem um pequenino disco rígido na cabeça, para guardar as melhores lembranças.

Mirandópolis, maio de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com

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