quinta-feira, 8 de novembro de 2012


Literatura – Carlos Drummond de Andrade
"Vai, Carlos, ser gauche na vida!"

 
Quando eu nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida.

      Gauche (lê-se goxi) em francês significa esquerdo, como “rive gauche” significa o lado esquerdo, a margem esquerda...
“O poema de sete faces” de Carlos Drummond de Andrade popularizou esse termo gauche entre nós.
O que ele pretendia passar para seus leitores?
Ora, sabemos que Drummond era um homem tímido, reservado, meio avesso às coisas do mundo, cheio de indagações sem respostas.
E por ter vivido numa época em que todos deviam seguir um modelo pré-estabelecido pela Moral, pela Religião, pela Polícia, pelo Estado, ele deve ter sofrido muito, justamente por ser um indivíduo gauche, meio fechado, contrário aos costumes e aos sentimentos de então.
Daí, o desejo confesso no verso: “Vai, Carlos, ser gauche na vida!”
Esse “gauche” soa como livre, independente, feliz, solto como um passarinho. Acho que era o seu mais profundo desejo... Comportar-se no mundo como gauche que era de fato, e não como os outros mandavam.
       Hoje, são poucas as pessoas que conseguem ser gauches, oprimidas que são com regras religiosas, familiares, de escola, de grupos de trabalho, de amigos do bairro, do quarteirão, do face-book... de associações. E sem contar com as regras determinadas pela novela das 21 horas, pelo Jornal Nacional, pelo big brother, pelas lojas da moda, pelos cabeleireiros mais visitados...
         Detesto quando as emissoras de tevê descobrem um talento em qualquer área, e a título de ajudar o cidadão, acabam transformando-o num pavão, maquiando, vestindo-o, tirando toda a sua naturalidade e impondo posturas que não são próprias dele. E o estrago que fazem com crianças... é abominável.
E assim, o ser humano vai perdendo a naturalidade, transformando-se num robozinho sem graça, como aquelas famosas atrizes da tevê que fazem plástica e ficam todas com a mesma cara, a mesma boca, os mesmos olhos e o mesmo nariz repuxado... perdendo as características mais pessoais.
Essa característica gauche  de Drummond fica revelada também no poema “No meio do caminho”:

No meio do caminho tinha uma pedra.
Tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra.
No meio do caminho tinha uma pedra.

É a insegurança natural de um homem diante dos obstáculos, que considera irremovíveis. A falta de confiança, a timidez, o medo do mundo...
Visualizo o homem se encolhendo diante dos problemas. Saltasse a pedra, chutasse, a contornasse, se não tinha força para removê-la. Mas, não ficasse só olhando a pedra e repetindo o refrão havia uma pedra no caminho, no caminho havia uma pedra; pois isso em nada ajudaria a retirá-la...
A tristeza está presente nos poemas de Drummond.
Tristeza de um homem não realizado, reduzido à melancolia de não ter sido o que queria ser. Isso foi claramente revelado em “E agora, José?”

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
E agora, José?
E agora, você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, que protesta?
E agora, José?

O ser humano realmente é um grande enigma.
Carlos Drummond de Andrade foi um poeta completo, deixou uma antologia poética incomparável, foi premiado, festejado por todos os círculos literários, amado por seus leitores, conhecido no Brasil e no mundo...
Mas não era feliz.
Há uma tristeza infinita em seus poemas. Poemas escritos por um homem reservado, triste e solitário.  Nos seus 85 anos de vida, de 1902 a 1987, viu o mundo sendo destruído por duas guerras, e viveu tempos duros de costumes rígidos, em que tudo era proibido e condenável. Por instância da mãe formou-se em Farmácia, para nunca exercer tal profissão. Trabalhou em repartições públicas, mas o que gostava de fazer mesmo era escrever. Ficou dividido entre aspirações comunistas e o serviço no Ministério da Educação  durante a Ditadura de Vargas... Sempre a incerteza, a indefinição.
Todo o seu repertório demonstra uma insatisfação, uma falta de entusiasmo pela vida. E não deve ter sido feliz no casamento, porque no fim da vida foi revelado que mantivera uma relação amorosa com outra mulher durante longos anos. E continuara casado.
Aquele homem que produziu tantos poemas lindos carregava uma dor, uma tristeza e um desalento inenarráveis.
Será porque não o deixaram ser gauche na vida?

Mirandópolis, outubro de 2012.
kimieoku in “cronicasdekimie.blogspot.com”


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