quinta-feira, 8 de novembro de 2012


Uma história de grilagem  (conto)


             Ainda é noite alta, pode-se ouvir o cri-cri dos grilos e o coaxar dos sapos, mas Acácio não consegue dormir. Levanta-se e vai para fora, para o terreno em frente ao rancho de pau-a-pique. Está cheio de tocos, dos coqueiros, cortados para a construção da moradia. As folhas formaram a cobertura.
 Ele está com um mau pressentimento, de vez em quando tem visões ou sonhos que se transformam em realidade.  Com um dos pés sobre um toco, o cachorro Tarzan ao seu lado, ele pica o fumo para o cigarro de palha. Estavam ali para proteger aquela “posse”. Eram terras ocupadas por quem chegasse primeiro, geralmente terras sem donos ou sem documentos. O posseiro, quase sempre um fazendeiro, pagava para que as defendessem dos grileiros.   
            Os grileiros, usando capangas, invadiam estas terras e advogados inescrupulosos falsificavam escrituras que colocavam em caixas com grilos, para que eles comessem alguns pedaços do documento e suas fezes as deixassem amarelecidas com aparência de antigas. Daí a origem do nome grileiros. Acácio conhecia esta técnica, era usada muito no seu estado de origem, no sul da Bahia, nas terras do cacau. Lá os coronéis do cacau, contratavam advogados e compravam os donos dos cartórios, para fazerem o famoso “caxixe”, e ficarem com as terras dos pequenos proprietários.
             Acácio não era do sul da Bahia, nasceu em Juazeiro, lá no alto, divisa com Petrolina. Já com o fumo picado passa a palha nos lábios para umedecer e enrolar o cigarro. Junto com a primeira tragada vêm as lembranças de sua infância, vendendo cocada na orla de Juazeiro. Lembra do dia que Zé Bexiga, moleque mau, tomou-lhe os doces, mas seu irmão, Aurindo, mais velho, mais forte, viu e pegou Zé Bexiga.
 Aurindo segurou o moleque e ele encheu-lhe a boca de areia e tapou-lhe o nariz. Tinha de comer a areia senão morria afogado. Eram oito irmãos, cinco homens e três mulheres, a mãe não tinha condições de criar todos e deu alguns para os parentes.  Foi morar com tio Chico, no sítio, na beira do rio, ajudava o tio a levar os bodes para vender na feira. O tio ensinou-o a nadar... amarrava uma corda na sua cintura e jogava-o no rio, quando estava bebendo água puxava. Na terceira vez saiu nadando.
            Com dezessete anos, no dia do Natal, ele, seu primo Emílio e um amigo apanharam o vapor em Juazeiro. Dormindo em redes e comendo paçoca de carne seca com rapadura foram até Pirapora, em Minas Gerais. Ali se separaram e Acácio fez o percurso a pé até o interior de São Paulo, parando em várias fazendas, trabalhando uns tempos e seguindo seu caminho quando já tinha um dinheirinho.
               Um estalar de galho o faz voltar à realidade. Observa, está escuro, tenta ouvir mais algum barulho... nada. Deve ter sido alguma paca ou outro animal, Tarzan nem se mexeu, permanece deitado ao seu lado, com a cabeça sobre as patas dianteiras. Ouve é o ronco de Mané Vitor dentro da cabana. Todos dormem. São seis, com ele, mas conhecer mesmo só Mané Vitor, que é vizinho na cidade. É um amigo, boa pessoa, mas muito medroso. Tem o paraguaio Solano, sisudo, quieto, de pouca conversa, passa o tempo todo azeitando a carabina e amolando as duas facas que traz na cintura. Ribeiro vive rindo, ri de tudo, é maldoso, ri das maldades que faz. Gosta de judiar dos animais. Um dia disse que ia cortar o rabo de Tarzan. Acácio meteu-lhe o parabellum no nariz e disse-lhe que estourava-lhe os miolos... saiu rindo.
             Todos gostam de Joaquim, rapaz novo, dezoito anos. Educado, respeitador, é sim siô pra cá... é sim, siô pra lá, muito obediente. Tem namorada na cidade. Quer juntar um dinheiro para casarem, não participa do jogo de pif - paf, economiza cada tostão.  É o melhor atirador de todos. Joaquim não sabe ler nem escrever, Acácio também não, mas diz que o filho vai estudar, vai ser doutor, se não for, um neto ou uma neta será.
            O outro do grupo é Crescêncio, negro enorme, forte feito um touro, negro dos lábios finos, mas com um nariz achatado do tamanho de um jerimum. Feio que só a peste, com uma cicatriz que vai do lóbulo da orelha direita até ao queixo. Na venda de Lurdinha, um caixeiro viajante disse que foi uma mulher, na zona de Uberaba, que fez a cicatriz.  Crescêncio comeu a mulher e disse que não ia pagar.  Não se sabe de onde que surgiu uma navalha com um elástico na mão da rapariga, ela lançou a navalha para cortar-lhe a garganta. Ele conseguiu desviar, mas não o suficiente. Deu-lhe um soco, no meio da cara, verdadeiro coice de mula e ela caiu morta com a face afundada.  Fugiu, amasiou-se com uma velha que cuidou dele até ficar bom. Não se sabia mais nada dele, e nem o que aconteceu com a velha.
              Agora o barulho não é de animal, seu ouvido treinado consegue distinguir o pisado de gente do de animal. Tarzan ergue-se, as orelhas em pé. Ele também pressentiu a movimentação. Acácio vai retrocedendo para o rancho, segurando Tarzan pela coleira, não quer que ele rosne ou dê um latido.  Estava certo quanto ao seu pressentimento. Tinha chegado a hora, não sentia medo, não tinha medo de nada. Só um dia sentiu medo. Foi numa ocasião que sonhou que o filho estava muito doente. Naquela ocasião levantou-se de madrugada, calçou a bota, pegou o revólver, chamou Solano e disse para ele tomar conta do pessoal porque ia para a cidade. Ao chegar numa encruzilhada viu um vulto esconder-se atrás de uma árvore. Pensou numa tocaia, tirou o revólver e gritou: -- saia daí que já o vi.
              A pessoa saiu gritando: -- seu Acácio, não atire, é Expedito, vim atrás do senhor e graças a Deus o encontro aqui, porque não sabia que caminho seguir mais.
              --- O que vem fazer aqui?
              --- Sua mulher, dona Flora, pediu para vir avisá-lo que seu filho está muito mal, precisa levá-lo para outra cidade.
                Respondeu: - Isto eu já sabia.
               --- Sabia como?
               --- Sabia, sabia, vamos logo senão perdemos a jardineira.
              Quando os médicos os chamaram na sala e disseram: -  Voltem para sua cidade, levem o menino para morrer em casa porque não podemos fazer mais nada, ele sentiu medo, muito medo, as pernas amoleceram, as mãos começaram a tremer.  Ficou mudo, não sabia o que dizer... o que fazer... No trem, olhava fixo para o nada, seus olhos estavam secos, o choro da mulher estava irritando-o. Não sabia rezar, no seu modo grosseiro pediu a Deus que salvasse o menino.  Foi Deus que colocou seu Cassiano no seu caminho. Com três ramos de arruda o bom velhinho tirou o catarro do peito do menino e mandou a febre para o inferno.
     Entrou no rancho, acordou os homens, em silêncio.
                --- Os grileiros estão ai, queriam nos pegar dormindo, vamos tomar posição e fazer-lhes uma surpresa.
                Ribeiro olhou por uma fresta e falou, rindo: - São nove ou dez, mas burros, porque estão vindo todos pela frente.
                Crescêncio falou: - Melhor assim, é mais fácil para acertar, nem precisa fazer pontaria.
                Os grileiros se aproximavam, certos que pegariam todos desprevenidos. Um deles trazia uma tocha acesa, provavelmente iriam colocar fogo no teto e esperar que saíssem um por um pela porta, para fugirem do fogo.
               Acácio olhou e falou: - Filho de uma égua, olha quem os está chefiando. É o zóio torto.  Vejam, aquele que até pagou uma pinga pra nós no boteco da Lurdinha. Passou a dar as ordens:
          -- Joaquim, o cabra da tocha é seu. Solano pega o primeiro da esquerda e Crescêncio o primeiro da direita, eu acerto o zarolho e Ribeiro atire nos do meio.
                Mané Vitor acordou, esbaforido, assustado. --- O que está acontecendo? O que foi?
                Alguém falou: -  Os homens chegaram, acorda cabra.
                 Mané Vitor começou a gritar: - Tô com dor de barriga, tô com dor de barriga. E queria plantar bananeira no meio do barraco.
                Acácio falou para Joaquim escolher a hora que devia atirar, ele daria o primeiro tiro, depois os outros iriam atirar.
                O tirombaço de Joaquim pegou no peito do cabra, que rodopiou e caiu de lado com a tocha acessa em cima.
                 Todos começaram a atirar. Foi um tiroteio que até Lurdinha, que morava a cinco léguas de distância, acordou com o barulho.
                 Solano gritou: - As balas estão acabando, não vou morrer aqui dentro, não. Vou lambê-los com minha faca. O paraguaio abriu a porta e pulou para detrás dos tocos de coqueiro, pulava feito macaco de um para o outro, com uma faca na mão e o revólver na outra. Acácio também saiu, o parabellum numa mão e o punhal na outra. Mas foi Crescêncio que fez os homens correrem. Quando viram aquele negro enorme, correr para cima deles, de peito aberto, atirando feito um louco e dizendo: -  Tenho o corpo fechado, Padim Padre Cícero me benzeu.... eles debandaram.
                O cabra da tocha ficou, o zarolho também e Solano também cumpriu sua missão, deu um tiro de misericórdia no cabra que ainda agonizava.
                O barulho do tiroteio deu lugar a um silêncio mortal, os pássaros estavam quietos, os besouros não zumbiam, uma ou outra folha das árvores caia fazendo acrobacias. A fumaça ainda permanecia no ar. Os homens se olhavam, só Ribeiro sorria. 
                No barraco, o silêncio era quebrado pelo choramingo de Mané Vitor, com a bunda  para cima, todo cagado.

                 Pseudônimo:- James Dean                             
          Nota: Este conto teve Menção honrosa no Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, e foi publicado  em Contos Selecionados 2012, pela Secretaria Municipal da Cultura de Araçatuba.                        

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