quarta-feira, 14 de novembro de 2012


Um Domingo Em Mirandópolis
          Sete horas da manhã. Os sinos repicam chamando para a missa. Os garotos se divertem na torre da igreja, pois as cordas presas aos sinos os elevam e abaixam. As famílias saem de suas casas, vestidas com suas melhores roupas. É um acontecimento  mais social que religioso.
 A igreja fica lotada, Mirandópolis em peso está presente. O burburinho dos cumprimentos vai cessando. O padre já está à frente do altar: Padre Epifânio Ibãnez, espanhol, bravo, verdadeiro sargentão.  Tenho certeza que o Diabo sempre passou longe daquela paróquia. Sidnei e Milton Crevelaro coroinhas, imaginem só. Se uma criança chora, Padre Epifânio interrompe a missa e, sem nenhuma sutileza, com aquele sotaque forte do espanhol,  pede para que a mãe saia e vá embalar a criança lá fora.  Se percebe alguma mulher com uma blusa sem manga, manda-a para casa, se vestir, pois a Igreja não aceita pessoas nuas.   Missa demorada, sermão longo... E a gente querendo sair logo para o futebol na rua São João.
          Hora do almoço, a cidade fica deserta. Ouve-se o bater das louças, o tilintar dos copos, as conversas, os risos. As famílias estão  reunidas em casa, para a tradicional macarronada. Nada de comer em restaurante... Nem existia, só pensão para os viajantes. Nada de comida por quilo, churrasco então, só nos casamentos. Em uma ou  outra casa um radinho ligado, o latido dos cães, um irmão xingando o outro porque pegou seu bife.
          Duas horas da tarde, hora da matinê, no cine São Jorge, de propriedade do Jorge Nametala Nars e depois de João Ferratone. Onde trabalhei como varredor, espanador das 930 cadeiras, lavador dos banheiros e carregador das placas que ficavam nas esquinas das ruas com o nome dos filmes do dia, isto quando também não tinha de ir buscar os rolos de filmes que vinham de trem. O gerente era Pedro Romero, filho do senhor Romero do carroção de lixo, outro espanhol, casca grossa... Gente, será que... Bom deixa prá lá... O Kaká foi bem recebido. Ele ia pelos corredores, passando os dedos nas cadeiras para ver se tinham sido espanadas. Mal sabia que eu só espanava as cadeiras dos corredores...
          Enquanto não se iniciava a sessão do cinema, tocando a música que falava: como os pobres de Paris, que era o que chamávamos de prefixo, os meninos, na porta do cinema, trocavam gibis: Zorro, Tarzan, Mandrake, Pato Donald,  capitão Marvel, Super Homem, Capitão América, Fantasma.... Um Almanaque valia quatro gibis simples. Também jogavam “bafo” e trocavam figurinhas de futebol. As carimbadas eram:  Baltazar, Luizinho, Leônidas, Oberdã, Gilmar, Canhoteiro... E  valiam três ou quatro das outras.
Como havia engraxates... Também pudera, só  se usava  “kedis” para fazer Educação Física. Hoje se usa tênis até de terno. Além do sapato calçavam-se botinões e botas de cano longo, os mais pobres usavam alpargatas Rodas, o popular “pé de cachorro”.   Às vezes surgia uma briga aqui, outra acolá que não eram apartadas, eram incentivadas pelos outros meninos. Xingar de FDP podia, mas chamar de Xibungo era comprar briga na certa. E agora, eles têm até passeata na Paulista... Vai entender.
          Os filmes da matinê eram quase sempre de índios ou comédias com Jerry Lewis. Quando a cavalaria ou o “mocinho” aparecia, o cinema virava um pandemônio, eram gritos, palmas e uma bateção de pés no chão que se ouvia lá de fora, na rua.   Após o filme tinha o seriado, que era apresentado em capítulos, todo domingo. Os seriados  mais famosos foram os do Zorro, do Tarzan e do Fu-Manchu. Terminada a matinê, eu tinha de varrer rapidamente o cinema, porque no domingo tinha sessão dupla à noite, principalmente se era filme do Mazzaropi. O Silvio  Tavares e o Alcides Espirito Santo me ajudavam.
          Já adolescente, jogando no time do Paulistinha, ficava sentado na grama do jardim, em frente ao cinema e ao bar Kibon, juntamente com outros jogadores, vendo esta movimentação da qual já tinha participado, e esperando a hora de descermos para o estádio. 
 Num determinado domingo, estávamos lá, “moscando”, como se costumava dizer:  eu, Moacir Inforzato, Pim, Nata, Josué Bucheiro, Bisteca, Zé Martins, Didier, Cabinho, Paraguaizinho, Gambá, Xepa, Toco, entre outros, quando vimos o Vardo Cascudo e o Zé Antonio virarem a esquina, vindos da Rua São João e se dirigirem para o cinema. A sessão já havia sido iniciada. Eles passaram direto pela frente do cinema, e foram para um terreno vazio, que ficava entre o bar Kibon e a lateral do cinema, os banheiros. Sabíamos o que ia acontecer, já tínhamos presenciado muitos garotos entrarem pelos vitrôs dos banheiros para assistirem aos filmes. Éramos cúmplices, nunca falamos nada.

          O Vardo Cascudo foi o primeiro, passou e pulou para dentro. O Zé Antonio passou as pernas, o corpo, e a cabeça ficou presa. Nem pra frente, nem pra trás. O Vardo puxava, e nada.  Não agüentamos... Começamos a rir, a gritar, a vaiar, a fazer a maior algazarra. Pessoas dos outros cantos da praça vieram ver o motivo da bagunça. E o Zé Antonio esperneando, o Vardo voltou, puxava agora pela cabeça e, nada. E nós de cúmplices passamos a delatores, pois o senhor João Ferratone, ao ouvir aquele barulho todo, saiu para ver o que acontecia. Foi até ao vitrô, ele era grande, forte, puxou e “desenroscou” a cabeça do Zé. Tirou-o, deu-lhe um cascudo e,  tanto o Vardo quanto o Zé saíram correndo debaixo de vaias e gargalhadas. 
          Descemos para o estádio, rindo, comentando, tínhamos ganho o Domingo. À noite, voltaríamos ao cinema para assistir “Casinha Pequenina”, com Mazzaropi.
         Ademar Bispo

4 comentários:

  1. Kimie, quando o Demá não estava fazendo artes ficava observando os micos dos demais amigos e mal sabia ele que, um dia, iria contar ao mundo essas peripécias.

    A " cacholinha " do Tocó não passou no vitrô, mas foi aceita por boa parte dos mirandopolenses para deixá-lo por 8 anos no cargo de Prefeito de nossa querida cidade.

    Sr. João Ferratone, que o trouxe de volta, conseguiu tão somente o cargo de vereador e o Demá sabe como ele fazia sua campanha naquela época ( daria mais uma crônica, creio eu. ).

    Abração.

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  2. Ulisses, como vocês eram arteiros e antenados. Nunca que eu pensaria que o homem tinha o apelido de "Tocó". O Bispo tem um humor fino pra contar os fatos. Então, naquela época já se pensava em política? O mundo dá cada volta, né?

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  3. Estou ajudando meu pai a escrever a biografia da família, eles eram lavradores nas terras de Mirandópolis, meus tios se casram em um aParoquia nos anos de 50..54..e quero saber se esse Padre Epifânio..e este espanho que vc relata... e se a paróquia era de Nossa senhora do Rosário... fico agradecida...

    Selma Alves Ferreira
    selminhaalvesferreira@hotmail.com

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  4. Pelo que sei nunca essa Matriz teve o Nome de Nossa Senhora do Rosario, quem sabe pode disser. Essa cronica viajamos na maionese do Bispo, parabens e era isso que acontecia mesmo, e a troca de gibis na frente do cinema nas matinés. Tempo da brilhantina e tempos que não voltam mais. Saudades.Parabens meu amigo Ademar Bispo.

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