Além da imaginação
Após escrever a
crônica cheia de confissões “Eu sou duas”, uma ideia tem me intrigado bastante.
Se não tivessem ocorrido crises de
superpopulação no Japão, seguidas de falta de gêneros alimentícios para
alimentá-la, papai não teria vindo ao Brasil e nem mamãe... A imigração
japonesa em massa para cá não teria acontecido, e nem para outros países. Os
japoneses teriam ficado confinados àquela pequena ilha no Pacífico, sofrendo
todos os cataclismos naturais. Papai e mamãe teriam sobrevivido a eles? Teriam
sobrevivido à Guerra da bomba atômica? Meu pai nascera em Hiroshima...
Condições geológicas, restrições econômicas
e sociais determinaram a saída de tantas famílias do Japão em busca de um
futuro melhor. E assim, meus pais crianças ainda para cá vieram, fugindo de uma
vida sem muita esperança. É verdade que encontraram o inimaginável em termos de
adversidades, de trabalho duro e bruto, de falta de tudo, mas ninguém morreu de
fome.
E aqui, as linhas do destino cruzaram os
caminhos de mamãe e papai e eu nasci, assim como todos os meus irmãos. E
nascemos todos brasileiros. E desde então, temos vivido aqui, pelejando, sem
saber ao certo se somos japoneses ou brasileiros. Os conterrâneos se referem a
nós como “a kimie japonesa” ou “a japonesa” mesmo. Nunca ouvi “a kimie
brasileira”. Então, tem momentos que a gente nem sabe se é de fato brasileira,
porque aos olhos dos outros somos todos japoneses... Sobre essa questão não
vejo problema de discriminação, pois ocorre naturalmente, sem segundas
intenções.
O problema de identidade é uma coisa
nossa, do mais profundo do ser, pois carregamos os genes de ancestrais
nipônicos, com características que definem os povos das Ilhas do Pacífico. Quem
nos vê, logo enxerga um ser de origem oriental, mesmo tendo nascido aqui,
criado raízes e ter absorvido completamente o “modus vivendi dos tupiniquins”.
Essas características tendem a
desaparecer com as misturas que vêm ocorrendo, de gerações de japoneses se
cruzando com os brasileiros. Cada vez mais as diferenças estão desaparecendo,
restando apenas uns olhos mais amendoados, uns cabelos mais lisos e escuros....
O fato de haver essas miscigenações não me
preocupa, pois acho natural e nem mais vivemos aqueles tempos difíceis de
aversão a outras raças, como ocorreu no passado. Herança de velhos e arrogantes
samurais.
O que me faz dar tratos à bola é se não
tivesse ocorrido a imigração, eu não existiria. Não estaria aqui escrevendo
essas baboseiras, para encher a cabeça de meus leitores. Foram necessárias
diversas condições extremas, para que houvesse a transferência de nipônicos
para o Brasil; para mamãe e papai se encontrarem, para que eu passasse a
existir. Acho isso uma coisa incrível. Como pequenas lascas que se separam dos
rochedos e vão rolando por aí afora, assim foi a vida de meus genitores: se
desprenderam de uma ilha e conduzidos pelas vagas do Pacífico, vieram parar
aqui.
E assim, passamos a existir, como
brasileiros.
Mas, se não tivesse ocorrido a
imigração? E meus pais tivessem se
encontrado lá na pátria deles? Eu teria tido a bênção de ter nascido? Como
teria sido a kimie totalmente japonesa? Seria delicada e cheia de protocolos
como as mulheres originariamente japonesas?
É claro que seria uma verdadeira
japonesa vivendo todas as tradições, que eu tenho tanta curiosidade em
conhecer. Seria professora também? O que pensaria? Seria igualmente essa cabeça confusa, que se
indaga milhares de vezes por dia? Qual seria a minha prioridade? Teria essa
paixão pela cultura dos ancestrais, e estaria como agora estudando a língua
japonesa? Acho que teria o privilégio de frequentar bibliotecas super
abastecidas de livros dos tempos medievais, para conhecer a linhagem da minha
família. Aqui não posso nem pesquisar sobre isso, por ter a minha história
truncada, pois a origem ficou perdida lá do outro lado do mundo.
Supondo-se que realmente tivesse
nascido lá, não seria brasileira, não conheceria essa terra abençoada, com esse
sol de 40 graus, que tanta inveja causa aos moradores de terras geladas... Seria mais uma senhora japonesa preocupada com
os tsunamis e os terremotos, que volta e meia assolam o país. Estaria
totalmente embutida no “modus vivendi japonês”, e não possuiria essas
incertezas, que me fazem indagar a mim mesma sempre: “Sou brasileira? Ou sou
japonesa?”
Seria apenas uma e não duas como me sinto
todos os dias. Duas kimie em constante conflito, cada qual me empurrando para
um lado. Uma, a brasileira querendo exercer o livre arbítrio e escrever tudo
que me aflora à mente, e a outra a japonesa me cerceando a toda hora para ser
mais discreta, rigorosa e muito mais respeitosa.
Ah! Se fosse possível, gostaria de um
dia experimentar ser uma kimie completamente japonesa em sentimentos, em
atitudes, de corpo e alma. Amando a natureza como todos os japoneses amam -
Após um terremoto arrasador, ter forças para reconstruir tudo de novo, mesmo
sabendo que outros abalos sísmicos virão... Não desistindo nunca. Tendo a
fortaleza do povo japonês, herança milenar.
E ser por um dia, uma kimie totalmente
brasileira, com cara de brasileira, sem nada para diferenciar dos demais e agir
como uma verdadeira brasileira, sem restrições e autocontrole. Ser livre, agir impensadamente,
falar o que der na telha, não pensar muito nas consequências e ser movida
apenas pelo impulso... Seria livre, sem amarras e provaria um pouco da
felicidade de nascer num país tropical, com uma cultura nova de quinhentos
anos, que não restringe quase nada.
Esquisito pensar assim?
É que ninguém sabe da dor de ser duas
pessoas totalmente diferentes num corpo só. E sonhar não faz mal pra ninguém,
né?
Mirandópolis,
outubro de 2013.
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