quinta-feira, 10 de outubro de 2013



                               Além da imaginação
   Após escrever a crônica cheia de confissões “Eu sou duas”, uma ideia tem me intrigado bastante.
       Se não tivessem ocorrido crises de superpopulação no Japão, seguidas de falta de gêneros alimentícios para alimentá-la, papai não teria vindo ao Brasil e nem mamãe... A imigração japonesa em massa para cá não teria acontecido, e nem para outros países. Os japoneses teriam ficado confinados àquela pequena ilha no Pacífico, sofrendo todos os cataclismos naturais. Papai e mamãe teriam sobrevivido a eles? Teriam sobrevivido à Guerra da bomba atômica? Meu pai nascera em Hiroshima...
       Condições geológicas, restrições econômicas e sociais determinaram a saída de tantas famílias do Japão em busca de um futuro melhor. E assim, meus pais crianças ainda para cá vieram, fugindo de uma vida sem muita esperança. É verdade que encontraram o inimaginável em termos de adversidades, de trabalho duro e bruto, de falta de tudo, mas ninguém morreu de fome.
         E aqui, as linhas do destino cruzaram os caminhos de mamãe e papai e eu nasci, assim como todos os meus irmãos. E nascemos todos brasileiros. E desde então, temos vivido aqui, pelejando, sem saber ao certo se somos japoneses ou brasileiros. Os conterrâneos se referem a nós como “a kimie japonesa” ou “a japonesa” mesmo. Nunca ouvi “a kimie brasileira”. Então, tem momentos que a gente nem sabe se é de fato brasileira, porque aos olhos dos outros somos todos japoneses... Sobre essa questão não vejo problema de discriminação, pois ocorre naturalmente, sem segundas intenções.
     O problema de identidade é uma coisa nossa, do mais profundo do ser, pois carregamos os genes de ancestrais nipônicos, com características que definem os povos das Ilhas do Pacífico. Quem nos vê, logo enxerga um ser de origem oriental, mesmo tendo nascido aqui, criado raízes e ter absorvido completamente o “modus vivendi dos tupiniquins”.
        Essas características tendem a desaparecer com as misturas que vêm ocorrendo, de gerações de japoneses se cruzando com os brasileiros. Cada vez mais as diferenças estão desaparecendo, restando apenas uns olhos mais amendoados, uns cabelos mais lisos e escuros....
        O fato de haver essas miscigenações não me preocupa, pois acho natural e nem mais vivemos aqueles tempos difíceis de aversão a outras raças, como ocorreu no passado. Herança de velhos e arrogantes samurais.
     O que me faz dar tratos à bola é se não tivesse ocorrido a imigração, eu não existiria. Não estaria aqui escrevendo essas baboseiras, para encher a cabeça de meus leitores. Foram necessárias diversas condições extremas, para que houvesse a transferência de nipônicos para o Brasil; para mamãe e papai se encontrarem, para que eu passasse a existir. Acho isso uma coisa incrível. Como pequenas lascas que se separam dos rochedos e vão rolando por aí afora, assim foi a vida de meus genitores: se desprenderam de uma ilha e conduzidos pelas vagas do Pacífico, vieram parar aqui.
       E assim, passamos a existir, como brasileiros.
       Mas, se não tivesse ocorrido a imigração?  E meus pais tivessem se encontrado lá na pátria deles? Eu teria tido a bênção de ter nascido? Como teria sido a kimie totalmente japonesa? Seria delicada e cheia de protocolos como as mulheres originariamente japonesas?
       É claro que seria uma verdadeira japonesa vivendo todas as tradições, que eu tenho tanta curiosidade em conhecer. Seria professora também? O que pensaria?  Seria igualmente essa cabeça confusa, que se indaga milhares de vezes por dia? Qual seria a minha prioridade? Teria essa paixão pela cultura dos ancestrais, e estaria como agora estudando a língua japonesa? Acho que teria o privilégio de frequentar bibliotecas super abastecidas de livros dos tempos medievais, para conhecer a linhagem da minha família. Aqui não posso nem pesquisar sobre isso, por ter a minha história truncada, pois a origem ficou perdida lá do outro lado do mundo.
      Supondo-se que realmente tivesse nascido lá, não seria brasileira, não conheceria essa terra abençoada, com esse sol de 40 graus, que tanta inveja causa aos moradores de terras geladas...  Seria mais uma senhora japonesa preocupada com os tsunamis e os terremotos, que volta e meia assolam o país. Estaria totalmente embutida no “modus vivendi japonês”, e não possuiria essas incertezas, que me fazem indagar a mim mesma sempre: “Sou brasileira? Ou sou japonesa?”
       Seria apenas uma e não duas como me sinto todos os dias. Duas kimie em constante conflito, cada qual me empurrando para um lado. Uma, a brasileira querendo exercer o livre arbítrio e escrever tudo que me aflora à mente, e a outra a japonesa me cerceando a toda hora para ser mais discreta, rigorosa e muito mais respeitosa.
      Ah! Se fosse possível, gostaria de um dia experimentar ser uma kimie completamente japonesa em sentimentos, em atitudes, de corpo e alma. Amando a natureza como todos os japoneses amam - Após um terremoto arrasador, ter forças para reconstruir tudo de novo, mesmo sabendo que outros abalos sísmicos virão... Não desistindo nunca. Tendo a fortaleza do povo japonês, herança milenar.
        E ser por um dia, uma kimie totalmente brasileira, com cara de brasileira, sem nada para diferenciar dos demais e agir como uma verdadeira brasileira, sem restrições e autocontrole. Ser livre, agir impensadamente, falar o que der na telha, não pensar muito nas consequências e ser movida apenas pelo impulso... Seria livre, sem amarras e provaria um pouco da felicidade de nascer num país tropical, com uma cultura nova de quinhentos anos, que não restringe quase nada.
         Esquisito pensar assim?
        É que ninguém sabe da dor de ser duas pessoas totalmente diferentes num corpo só. E sonhar não faz mal pra ninguém, né?

        Mirandópolis, outubro de 2013.

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