Eu sou duas
A kimie japonesa tem origem numa ilha perdida no Círculo de Fogo, chacoalhada todos os dias pelos vagalhões do Oceano Pacífico. Há milênios se formou o país, que se instalou num pequeno ponto do outro lado do mundo, Japão. E é exatamente aí que a minha história começou. É nesse lugar que os meus antepassados mais distantes descansam.
A kimie ocidental nasceu aqui nos
trópicos e não conhece neve, mas conhece o calor desta terra tupiniquim, que se
estende aos abraços calorosos dos amigos compatriotas. Brasil é onde estou
vivendo desde que nasci e convivendo com os irmãos brasileiros.
A parte oriental me leva a estudar a
cultura japonesa, os costumes e tradições, a História registrada, a complicada
escrita em ideogramas cheios de traços, com significados profundos, que
acredito não conseguir absorver totalmente, por mais que me empenhe. Estudo a língua
de meus ancestrais há mais de vinte anos. A parte ocidental
me transformou em professora, e passei metade dessa vida pelejando com a
educação, inventando formas de facilitar a compreensão dos discípulos. E há
pouco, passei a escrever sobre coisas que me emocionam, que me incomodam, que
atingem os corações de meus leitores. Prá dizer a verdade, sou feliz em poder
divulgar minhas ideias, e constatar que muita gente concorda com o que eu
penso. Alguns discordam é verdade, pois existe o livre arbítrio.
A minha porção oriental deseja escrever
também essas crônicas na língua materna, porque tem coisas que só consigo
definir em japonês. Meus conhecimentos dessa língua, porém ainda são
insuficientes para me aventurar a tanto. Enquanto isso, vou me abastecendo de
cultura japonesa, pesquisando sobre expressões e palavreados que os japoneses
usam na sua rotina diária.
Se de um lado aprecio os poemas de Manuel
Bandeira, Cora Coralina,
João Cabral de Melo Neto, e os romances de Josué Montello e de Graciliano
Ramos, por outro fico fascinada com os poemas de Miyazawa Kenji, e com as biografias
de heróis como Oda Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi , Tokugawa Ieyassu, Noguchi
Hideyo e Higuchi Ichiyo.
Se
aprecio o Guarani de Carlos Gomes e a música popular do Brasil desde Mílton
Nascimento e Raul Seixas até as caipiras como Menino da Porteira e Chico
Mineiro, por outro lado aprecio demais os enka, ou música popular japonesa,
notadamente as antigas da Era Showa, cantadas por Minami Haruo e Murata Hideo. Aprecio muitíssimo o Teatro Butô, que é uma
interpretação do mundo, através da expressão corporal. Vejo o Butô como uma
variação fina e sofisticada da Capoeira, herdada dos africanos.
Se os trajes
ocidentais são adequados e confortáveis para o nosso clima, os quimonos
japoneses são encantadores, feitos de seda com estampas maravilhosas, que
parecem pinturas. É claro que essas vestimentas nunca poderiam ser adotadas
nestes trópicos. Mesmo com a ocidentalização pós-guerra, os japoneses
preservaram essa vestimenta, cuja origem remonta há dois mil anos. O quimono é usado em cerimônias sociais,
núpcias e outros eventos importantes quando o cerimonial é essencialmente à
moda oriental.
Comida brasileira boa de fato é o arroz
e o feijão de todo dia, além de uma boa feijoada, uma peixada... Do Japão curto
o gohan ou arroz branco, sashimi, além da sopa de missô.
Esses contrastes todos mostram a
diferença de cultura de dois países, que existem exatamente em pontos opostos
do planeta. E é surpreendente que, duas
culturas tão diversas tenham se misturado em nossos pais, os primeiros
imigrantes que aqui chegaram. Foram cem anos de luta, de adversidades, de
sofrimento, de incompreensão, de aproximação, de desentendimentos, de
discriminação até chegarem à aculturação final, para todos viverem em paz.
Com a aculturação, agora todos sabem o
que é bom odori, sashimi, tsunami, yakissoba, ipon, okanê, happi, taikô, manju,
kaikan, bachan, konnichiwa, kombanwa, sayonara, e mais umas dezenas de palavras
que são faladas diariamente, misturadas ao linguajar português de cada dia. Por
outro lado, os imigrantes idosos também aprenderam o significado do café,
feijão, futebol, samba, salário, viagem, festa, pagamento, troco, compras,
Banco e Hospital...
Se sou apaixonada pela música
instrumental de Kitaro, por outro lado tenho orgulho de ter vivido em tempos de
Ayrton Senna, de ter o grande estadista Rui Barbosa como referência nacional.
O mais impressionante para mim e que é
motivo de reflexão constante é a diferença de comportamento dos japoneses e dos
brasileiros em geral. Os brasileiros são alegres, expansivos, chegando a ser
até exagerados em suas manifestações de dor, de emoção e de felicidade. Quando
choram o fazem em altos brados, sem nenhum pudor, quando comemoram também o
fazem escandalosamente, sem se preocuparem com o local e as pessoas presentes.
Os japoneses são comedidos, seguram sua
dor e seus sentimentos, porque foi assim que passaram de geração a geração,
para não preocupar nem magoar as demais pessoas. Mesmo nas saudações formais
não há toque físico, em sinal de profundo respeito ao outro. Em geral toda saudação é feita apenas
oralmente, sem um abraço, sem um aperto de mão, muito menos por beijos. Nós
percebemos essa diferença, quando ocasionalmente aparecem comitivas do Japão
aqui em nossa terra, Tudo é formal e respeitoso, mas um bocado frio e não cabe
em nosso estilo de vida.
Outra atitude bem diferente é em
relação aos idosos. Sempre os mais idosos têm a atenção privilegiada das
pessoas, não só para tomar assento, como prioridade numa fila de atendimento,
sem que precise de regras e filas especiais, porque o natural é ceder lugar
para eles, sem nenhum conflito. Isso faz parte da cultura milenar: Aos mais
idosos, sempre a prioridade, acompanhada de atenção e gentilezas. Aqui foi
preciso inventar uma lei, para que todos aprendessem a ceder a vez e o lugar
para idosos, que não têm mais condições de esperar. Diferença gritante.
Em relação à escrita, é tão fácil a
brasileira porque o alfabeto romano possui apenas vinte e seis símbolos ou letras, e com eles dá para escrever tudo, tudo
mesmo. Por isso é muito prático escrever. Até consigo escrever essas crônicas a
partir desse alfabeto tão limitado.
Com relação aos ideogramas já a coisa é
muito complicada. Mesmo lá no Japão, só uma parcela de pessoas domina todos os
ideogramas. É muito difícil porque há mais de seis mil caracteres e o traçado
deles tem uma ordem estabelecida. E cada caractere colocado em determinado
contexto muda sua leitura e seu significado. Só que tiro o meu chapéu para quem
inventou a língua chinesa, de onde foi retirada a japonesa, porque tudo tem uma
razão e uma lógica incontestáveis. Como os ideogramas são muito apreciados, há
concursos de caligrafia, em que os participantes escrevem com pincel ou fudê
molhado em tinta de carvão mineral.
Também gosto muito
de escrever com fudê, e o faço diariamente. Isso é herança de meu pai, que
gostava de traçar as letras com a ponta do dedo molhado em água, sobre a mesa
enquanto esperava a refeição. E toda vez que traço um ideograma, meu pai vive
em mim. E mantenho viva a tradição e a herança da família. Porque essa é a mais
preciosa herança que recebi de meu pai.
Viver com essas duas pessoas tão
contrastantes é muito difícil.
O eu oriental
exige uma postura, uma fala, uma expressão mais severa, comedida, restrita. O
eu brasileiro me libera para falar o que me incomoda e gritar o que me sufoca.
Gosto demais de um abraço de amigos, de trocar ideias com todo mundo, de beijar
minhas amigas queridas e meus familiares. Mas, o meu lado oriental me poda o
tempo todo, para ser mais discreta e controlar as emoções.
O eu brasileiro me faz escrever tudo
que me incomoda, que me emociona e que me faz feliz. Mas, na revisão, a kimie
japonesa tira uma expressão aqui, troca uma palavra ali e o texto perde a
originalidade. Eu me lembro que um dia, uma amiga disse num desses cursos de
professores, que por eu ser um tanto expansiva me considerava uma japonesa
falsificada. Pode até ser verdade, porque não consigo ser totalmente japonesa e
nem totalmente brasileira.
É mole, gente?
Mirandópolis, outubro de 2013.
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