domingo, 1 de outubro de 2017

         Bonecas e bonecos
    
       Ao escrever sobre as coleções da Ana Caldatto, eu me lembrei que nunca tive uma boneca de verdade. Éramos tão pobres, mais pobres que pobres, que não havia lugar para esses luxos para as crianças dos anos 50. Filhas de imigrantes japoneses...
       Mas, criança gosta de brincar e a única lembrança que tenho é de bonecas de milho verde, com os cabelos vermelhos ou amarelos... A roupa era sempre de palha verde... E os meninos brincavam com chuchus e batatas doces, espetando pauzinhos que funcionavam como pernas... Tão pobre, tão rústico... Mas hoje dá saudades...
      
    Só fui ter contato com bonecas quando nasceu a minha filha, que foi mimada com uma dezena de bonecas lindas... Mamãezinha que ninava um bebê, a bela Susy, a elegante Barbie, a brasileiríssima Emília, Fofolete, Feijãozinho e tantas outras que nem lembro mais...E quando nasceu a minha neta, a gente trombava com as bonecas espalhadas pela casa. A menina tinha uma mania estranha: Tirava toda a roupa da boneca e ficava ninando-a peladinha... As roupas incomodavam o ato de ninar...
     Descobri um dia que existiam bonecas de porcelana. Tão lindas, tão ricamente vestidas... Mas, essas se destinavam a outra classe de meninas... Assim como as bonecas imperiais do Japão, que as meninas japonesas cultuam no dia 03 de março, Dia das Meninas ou Hina Matsuri. Os bonecos ricamente vestidos de seda e brocado representam a Família Imperial e são colocados numa espécie de altar, com os Príncipes, as Princesas e os Músicos do Palácio. Nesse dia, as meninas se vestem de belos quimonos e tomam chá com as amigas que chegam para visitá-las, para apreciar a exposição dos bonecos imperiais.

    Mas, também sei de lendas japonesas sobre bonecas... Kokeshi, bonequinho de madeira, que lembra uma história triste do Japão Medieval, quando a fome imperava e obrigava os pais a venderem suas meninas para não morrerem de fome... As meninas nas mãos dos mercadores se transformavam em gueixas acompanhantes de homens, ou caiam na prostituição. Certa mãe teve que largar um filho amado numa montanha coberta de neve, porque não tinha como alimentá-lo, e o remorso consumiu toda a sua vida. E sempre no aniversário do abandono, ela esculpia um boneco de madeira, com cabeça redonda e corpo roliço... Era o kokeshi, um bonequinho de madeira sem braços e pernas. Ela o fazia, supondo que o espírito de seu filho se incorporaria no boneco e não se perderia para sempre...

Outra lenda diz que as bonecas conseguem adquirir vida própria. Certa menina japonesa tinha uma linda boneca vestida de quimono, que chamava de Okiku. Ela amava a boneca e sempre a carregava. Mas um dia, a menina morreu... E a boneca ficou sozinha. Passado um tempo, os cabelos da bonequinha começaram a crescer sem nenhuma razão. Ninguém soube explicar o fato. A boneca está guardada no Templo Mannenji, no Japão... Por causa dessa lenda, muita gente no Japão não gosta de conservar bonecas esquecidas nos armários. Quando as crianças crescem e as bonecas ficam abandonadas, os pais as levam aos Templos Budistas para queimá-las, conforme o Professor Kakutani de Língua Japonesa nos relatou certa vez no Nipo...
Há lendas e lendas sobre bonecas. A maioria relata coisas misteriosas e assustadoras. Basta consultar o Google. Mas, o que me impressionou é uma lenda do México. Num lugarejo mexicano chamado Xochimilco, há uma Ilha das Bonecas... Segundo a lenda, há décadas atrás, don Julian, morador local soube de uma jovem que morrera afogada no canal, ali perto. Uns dias depois viu uma boneca boiando nas águas, a recolheu e pendurou numa árvore para agradar ao espírito da jovem. Então, o local se transformou numa espécie de santuário, onde outras pessoas começaram a pendurar outras bonecas. Seu primo Anastásio continuou a tradição, permitindo a visitação pública. Mais bonecas apareceram boiando... Toda essa coleção de bonecas deixadas ao relento ficaram feias e sujas com o passar dos anos, e hoje têm um aspecto assustador. Mesmo assim, tem gente mórbida que vai visitá-las...

 A vivificação das bonecas foi inventada por gente que gosta de assustar as pessoas. Dizem que os olhos da boneca começam a enxergar tudo que a rodeia. Acredito que foi essa lenda que motivou alguns cineastas a produzirem filmes de terror usando bonecas e bonecos. Eu tenho pavor desses filmes... Havia em casa até uns anos passados, um boneco grande todo colorido que ficava guardado dentro do armário. Sempre que abria o armário, eu me sentia meio aterrorizada, pois o boneco tinha um olhar ruim...
       E chegamos à Anabelle, uma boneca que prega sustos nas pessoas... Nunca terei coragem de assistir a esse filme; vi uns flashes e não gostei. E o filme está fazendo muito sucesso. Tem gente que gosta de sofrer, de ficar arrepiado, de levar sustos e choques. Eu, não.
       Mas, quero fechar esta crônica com chave de ouro!
Franz Kafka, escritor e pensador tcheco que, descreveu magistralmente a fragilidade e a impotência do homem, diante das instituições criadas pelo próprio homem em O Processo, O Castelo, A Metamorfose teve ao final da vida, um lance comovente relacionado com boneca. Certo dia conheceu num Parque, uma menina que chorava a perda de uma boneca querida. Ele a consolou por três semanas se declarando Carteiro para lhe entregar cartas da boneca, que estaria viajando pelo mundo. Nessas cartas, a boneca descrevia os lugares, as paisagens, as cidades, os climas que acabaram consolando e encantando a menina. E ao final, ele lhe deu uma nova boneca. Esse fato foi relatado por sua esposa...



Mirandópolis, outubro de 2017.
kimie oku in


      

       

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