sexta-feira, 23 de outubro de 2020

 

                         Nihongô

      Nasci em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial.

Quando tinha sei/sete anos tempo de aprender, o Presidente da República Getúlio Vergas extinguiu todas as escolinhas japonesas. Essas escolinhas eram bem frequentadas pelos filhos de imigrantes japoneses, que queriam preservar a cultura de seu país em seus descendentes. Getúlio temia um levante dos japoneses contra os brasileiros, porque o Japão havia perdido a guerra, e havia duas correntes de imigrantes brigando: os Kachigumi que pregavam a vitória do Japão e os Makegumi que reconheciam a derrota.

A loucura foi tanta entre os Kachigumi que veneravam o Imperador do Japão, que formaram uma organização chamada Shindo Renmei, a Liga do Caminho dos Súditos, que não admitiam derrota em hipótese alguma. Esses membros saíram atacando e matando os próprios patrícios que reconheciam a derrota. Então pra não piorar as coisas, o Governo brasileiro proibiu aglomerações. E a primeira medida foi fechar as escolinhas japonesas, além de proibir competições esportivas como o beisebol e a fala da Língua Japonesa. Foi um tempo difícil, pois os imigrantes só sabiam falar japonês.

 Diante de tudo isso, meu pai determinou que todos os filhos dele falariam o português, seriam batizados na religião católica e viveriam como brasileiros. E com isso, perdi a oportunidade de estudar Nihongô quando criança. Meus irmãos mais velhos estudaram só um pouco.

Apesar da proibição, algumas comunidades construíram escolinhas escondidas numa clareira da mata, que era uma densa floresta na época e as crianças tinham que correr riscos para chegar até lá. Havia onças e outros bichos... Meus irmãos ficavam à noite de tocaia para matar as onças que vinham dizimar nossos animais... Mas não conseguiram matar nenhuma.

Meus pais falavam em japonês em casa, mas aos poucos foram misturando o português arrevesado porque nós falávamos o português, que a professora exigia na escolinha rural brasileira... Não foi fácil, não! Costumes brasileiros contra costumes japoneses tão rígidos!

E assim, passei a minha juventude totalmente ignorando o Nihongô. Quando mocinha ao cruzar com bachians japonesas eu as evitava, porque elas vinham falar em japonês comigo e eu não entendia nada...

Mais tarde já Professora, fui ensinar a Língua Portuguesa, alfabetizando crianças. No final da carreira ao assumir o cargo de Supervisora de Ensino, eu viajava para outros municípios. Pra não perder tempo, comprei umas fitas cassete e ia ouvindo lições de Francês, que queria aprender. Não aprendi muito, mas me distraia um bocado. E um dia já aposentada me perguntei: Por quê estudar Francês ao invés de Japonês, que é a minha língua materna?

Então, resolvi procurar material para estudar. Por sorte, minha irmã que mora fora tinha uns livros de Kumon, que ensinavam desde o hiragana, o katakana até os kanjis mais usados. E o material era excelente, pois ensinava a traçar as letras seguindo a ordem preestabelecida. Devagar fui dominando a leitura e a escrita, mas a fala não. Assinei o canal japonês NHK, mas não entendia patavina dos noticiários... Nesse meio tempo, um Professor Japonês de Toyama ken, que ensinava as crianças do Nipo, resolveu dar aulas para os adultos uma vez por semana. Fui bastante animada. Mas, qual! Não entendia nada! Perguntava para as amigas que falavam japonês, mas elas se irritavam com a minha ignorância... Mesmo assim não desisti. Às vezes, uma mais sabichona me humilhava na frente do Professor... Mas o Professor era gentil e tinha paciência. Isso durou uns três anos...

Mas, me deu alento para começar a estudar em casa. Comprei Dicionários Português/Japonês e vice versa. Até que um dia fui prestar o Exame de Proficiência em Língua Japonesa. Passei do Nível IV, o mais elementar para o III. Noutro ano fui de novo, mas não passei. No ano seguinte fui novamente para Londrina, mais preparada e passei do III para o II. Depois, parei com isso porque o que me interessava não eram os certificados, mas aprender mesmo. E através de uma Livraria de São Paulo consegui que importassem alguns livros dos homens mais famosos da História do Japão. Como conheço pouco os kanjis, pedi livros indicados para o curso Primário do Japão. Recebi os livros da coleção Hi no Tori. Muito bons, simples e com linguagem acessível para a minha total ignorância.

E assim fiquei conhecendo Noguchi Hideyo, Higuchi Ichiyo, Miyazawa Kenji, Minamoto Yoshitsune, Minamoto Yoritomo, Myamoto Musashi, Oda Nobunaga, Hideyoshi, Ieyasu e mais alguns outros... Aprendia a Língua Japonesa e ao mesmo tempo a História do Japão.

Foi assim que preenchi as lacunas de meu conhecimento. Ainda tenho muito que aprender. E continuo estudando. O meu sonho era escrever em japonês as minhas crônicas. Já consegui escrever duas, mas ainda é muito trabalhoso para mim. Porque não tenho a quem perguntar as minhas dúvidas.

Mas vou continuar!

Movida pela imagem de meu pai que traçava os kanjis na mesa da cozinha, com as gotas de água que caiam das tampas das panelas. Essa imagem é a mais bela lembrança que guardo de meu pai. E sei que lá do Tengoku, ele está me empurrando para estudar mais e mais.

Mirandópolis, outubro de 2020.


kimie oku in

http://cronicasdekimie.blogspot.com

 

Um comentário:

  1. Olá Kimie sama. Estou encantada com a sua história e o seu blog. Parabéns!!
    Eu morei em Mirandopolis entre 1972 a 1977. Muito tempo atrás. Buscando mexer nas memórias de criança. Abraços carinhosos.

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