Charretes e carroças
Andei postando uma foto de charrete da dona Marieta e
seus netos no facebook, que despertou lembranças em muitos amigos.
E o Anacleto Tavoni mandou uma mensagem pedindo para escrever
dos tempos passados, quando havia a Casa Moreira e a Casa Santa Glória. Achei
muito interessante a ideia e dei tratos à bola.
Mas, muitas lembranças se perderam ao longo dos anos e não
tenho tantas recordações assim. Mesmo assim, resolvi puxar pela memória...
Antigamente, quando não havia carros, caminhões nem
motocicletas, as pessoas andavam a pé. As de mais posses andavam a cavalo. E as
de muito mais posses andavam de carroças e charretes.
Isso fazia parte do cotidiano. Na cidade circulavam as
carroças, misturadas com charretes e cavalos, todos transportando gente ou
mercadorias. Havia pontos de charretes na praça, atrás da estação ferroviária e
mais tarde à frente do Bar do Ponto, onde paravam os ônibus que faziam as
ligações com outros municípios. Nas portas das vendas e dos botecos, havia
sempre umas argolas no chão da calçada ou traves de madeira, para se amarrar os
animais, enquanto o dono fazia as compras ou se embebedava. E junto da linha
férrea, ali onde existia uma cancela na passagem de nível, havia um grande
reservatório de água para matar a sede dos animais de carga. Não sei que
destino deram a ele, mas estava lá até alguns anos atrás.
As ruas eram estreitas e era muito difícil para o
cidadão circular no meio desses veículos e cavaleiros, porque não havia regras
para se organizar melhor o trânsito de todos. Cada um que cuidasse de si.
Mas, não havia acidentes; só de vez em quando, uns
aborrecimentos por conta de gente mais grosseira, que não respeitava os
pedestres. Exatamente como hoje!
As cidades passavam a semana inteira num marasmo sem
fim. Nas vendas ou armazéns que vendiam de tudo ou nos botequins, raros eram os
fregueses. Assim eram chamados os clientes.
A vida acontecia no campo. O povo morava na roça. Todos
pelejando de sol a sol, derriçando café, rastelando, abanando e ensacando para
levar à Comercial Perez, para pagar as contas do Banco e das vendas. Nas vendas
e nos armazéns, todos tinham contas, em cadernetas onde se marcava tudo que era
fiado. E só era pago na safra. A Casa Moreira era o Armazém maior, seguido de
Casa Santa Glória. Ambas vendiam de tudo, desde arroz e feijão a granel,
ferramentas para a lavoura e até tecidos finos. Lembro-me que, na minha
formatura de Professora normalista em 1960, comprei o tecido na Casa Santa
Glória para o vestido da missa solene de formatura. Esta Casa vendia tecidos
mais raros e bonitos que a Casa Moreira.
Mas, a vida verdadeira ocorria na roça, para onde se
voltavam os olhos dos comerciantes, porque uma boa safra significava sucesso
nas vendas.
O povo não vinha
à cidade para as missas. Estas ocorriam na Capelinha da roça, que ficava
cheinha de lavradores de mãos calejadas, para ouvir o Evangelho de Jesus e o
sermão intransigente do Padre Epifânio. Geralmente nesses dias de missa na
capela da roça, havia à tarde uma partida de futebol, reunindo jogadores e
torcedores de vários bairros rurais de Mirandópolis, como Pé de Galinha, Monte
Serrat, Vila Nova, Ribeirão Claro, Amandaba, Km 50... Ocasionalmente, havia um
arrasta-pé à noite, animado com uma sanfona e uma viola que tocavam a
verdadeira música caipira, oportunidade que era bem aproveitada para começar os
namoros e firmar casamentos.
O comércio na cidade dependia totalmente da lavoura de
café, de algodão. Se não chovia durante meses, os comerciantes olhavam o céu e
coçavam a cabeça, pensando de antemão que, as contas pendentes dos agricultores
não seriam pagas facilmente... E eram contas bem volumosas.
Mas, quando a colheita era farta, as ruas fervilhavam
de gente comprando, comprando. Gente nas barbearias mudando o visual; alguns
vinham desbastar os longos cabelos e barbas, cultivados por promessas; as
farmácias sempre lotadas à procura de Elixires, de remédios para as feridas, de
purgativos, de vitaminas, de brilhantinas, de pó de arroz, de batom; os bares
derramando gente porta afora, com os bebuns de sempre falando alto e arrumando
rixas por conta de palavras mal faladas e mal entendidas...
E à porta da Casa Santa Glória e da Casa Moreira, e
mais tarde na Venda do seu João Ascêncio, os caminhões encostavam com os
lavradores que vinham fazer a feira. E tratores com as carretas cheias de gente
da roça.
Era uma multidão, sempre. Famílias inteiras desciam e
compravam ferramentas para a roça, querosene para os lampiões e lamparinas,
porque luz não existia, arroz, feijão, açúcar, carne seca, sardinhas salgadas
(manjuba), farinha de mandioca, de trigo, alpargatas, metros de algodão cru e
sarjas para a feitura de roupas da roça, chapéus de palha. O arroz, o feijão, a
farinha e o açúcar eram comprados em sacas de até sessenta quilos, porque as
famílias eram compostas de vários membros, e o arroz, feijão e farinha eram o
alimento básico para o sustento de todos. Comia-se pouca carne, porque era cara
e o dinheiro não dava para tanto. Legumes e verduras ninguém comprava, pois
todos tinham uma hortinha na roça para o consumo da família. E lá se criavam
porcos e galinhas, que forneciam a banha para uso diário na cozinha, ovos e
ocasionalmente carne para os domingos e feriados.
As padarias ficavam lotadas de gente comendo pão com
mortadela e tomando guaraná, que tinha no rótulo o desenho de uma maçã. E a
molecada e as mulheres não dispensavam o sorvete, que era só de palitos.
Enquanto isso, os homens bebiam cachaça no boteco da esquina. Era uma grande
festa, que só ocorria uma vez por mês.

As Casas Pernambucanas também eram um ponto de
encontro, onde as mulheres iam comprar os tecidos de chita em metros para
confeccionar, elas próprias, os vestidos da família. A moda prêt-à-porter não
havia sido inventada ainda. Tudo tinha que ser confeccionado. Era o tempo das
costureiras, que faziam saias, blusas, vestidos, calças e até vestidos de
noiva. Os alfaiates faziam os ternos. Muita gente chique usou o linho 120, que
era branco e acetinado para fazer seus ternos, que eram lavados e engomados na
Tinturaria do seu Benvindo, pai da professora Edite Cyrillo, se não me engano.
Ah! Também esteve na moda o chapéu panamá, que era branquinho e era engomado
também nessa Tinturaria. Os homens eram muito elegantes. O chapéu era parte do
vestuário.
Havia também muitas carroças. Eram dos moradores
isolados, que não dispunham de caminhão e vinham fazer as compras com a
família. Nessa época, os Marconato fabricaram muitas carroças que circularam
por anos, servindo à população. Hoje remanescem algumas ainda, transportando
pedras e areia para as construções.
As ruas eram de terra batida, e se tornava um problema
nos dias seguidos de chuva, porque virava um atoleiro só. Com os ocasionais caminhões e carroças que
circulavam, as rodas formavam valetas que ficavam intransponíveis para os
pedestres... No tempo do estio, era uma poeira só. As lojas se impregnavam de
poeira e seus donos ficavam espanando tudo com espanadores de penas longas, de
avestruz diziam. Nesses dias muito secos, a Prefeitura mandava um caminhão-pipa
irrigar as ruas para apagar a poeira.
Foi mais ou menos por essa época que começaram a surgir
os serviços de alto falantes, que anunciavam os fatos mais importantes que
ocorriam na cidade, além de tocar músicas que estavam nas paradas e os jovens
aproveitavam para oferecer às moças, como “prova de amor” ou “prova de
amizade”. Cantores famosos? Ângela Maria, Marlene, Cauby Peixoto, Orlando
Silva, Mário Zan, Emilinha Borba, Nélson Gonçalves e tantos outros... As
gravações eram em long plays de vinil, em 78 rotações. Só algumas casas mais
ricas possuíam a vitrola para tocar essas músicas. Tudo isso era um grande
sucesso, porque não existiam televisão nem emissoras de rádio na cidade. Às
dezoito horas invariavelmente, os alto falantes apresentavam a Hora da Ave
Maria, ou Ângelus, em que se rezava em alto e bom som o terço, agradecendo mais
um dia de trabalho.
E as festas aconteciam em volta da Igreja do Padre
Epifânio, com suas famosas quermesses. A cidade toda comparecia, doando frangos
e leitoas assadas com capricho, que eram arrematados pelas pessoas que tinham
mais recursos para pagar os altos lances. Durante essas quermesses, muitos namoros
se iniciaram com a troca de correios elegantes, e firmaram-se noivados que
acabaram no altar, com as bênçãos do mesmo padre.
Volta e meia acontecia um baile com as orquestras
famosas da época, dentre as quais podemos lembrar de Pedrinho e sua Orquestra de
Guararapes, Orquestra Marajoara de Jaboticabal, Nelson de Tupã e a Orquestra
Sul América de Catanduva. Era a época dos vestidos rodados, de vários saiotes
para destacar a cintura fina das moças. E as moças eram magras mesmo, de
cintura fina a tal ponto de poetas compararem o corpo de suas amadas a um
violão. Hoje tudo está mudado. Cintura
fina nem existe mais... As moças ficaram imensas e as roupas se transformaram
em segunda pele que colam nos corpos, destacando as feias
protuberâncias...
Também me lembro que os estudantes, cruzavam as ruas
indo ou voltando das escolas, animando a cidade. Havia muitos estudantes, e os
jovens eram puros e inocentes, que respeitavam os mestres e estudavam com
afinco. O máximo de safadeza que praticavam era fugir das aulas para ir jogar
bola, ou furtar melancias e laranjas nos quintais alheios. Não havia drogas e
nem gangues, felizmente. Vida saudável, juventude sem problemas maiores.
Sobre carroças, lembro-me de um episódio engraçado: o
Paulinho, meu amigo era um moleque ainda. Um dia o bucheiro, que vendia as
vísceras dos animais pelas ruas, estacionou seu carrinho em frente ao açougue
de seu tio. O Paulinho ficou olhando, olhando e não teve dúvida. Pegou um
rebenque, subiu na boleia e chicoteou o animal, que disparou pelas ruas, indo
para a Rafael Pereira, correndo numa disparada só, com os tios correndo atrás,
para evitar acidentes... Felizmente, tudo acabou bem, com uma grande coça no
menino arteiro.
E havia os entregadores de pão e de leite, que
percorriam a cidade em suas carrocinhas, de madrugadinha gritando: “Olha o pão
quentinho” “Olha o leite” . O pão era
depositado nas janelas das casas dos compradores mensalistas, e o leite de vaca
era deixado em garrafas nas portas das casas. Não havia leite em saquinhos nem
em caixinhas como há hoje. Era leite puro de vaca tirada de madrugadinha, e não
tinha conservantes e nenhuma soda cáustica, como ocorreu recentemente com uma
marca de leite embalado em caixinhas.
Também a água para se beber era buscada na mina de água
na Fonte Nossa Senhora Aparecida, lá atrás da Penitenciária. Cada família
buscava para seu consumo, porque a água ainda não era comercializada.
Aí chegaram os anos setenta, com a televisão, o
telefone que se popularizou, e tudo se transformou. A vida simples foi se
modificando.
Chegou o asfalto. Veio a crise do café e os cafezais
viraram pastos para o gado. Acabou-se a lavoura. Os lavradores mudaram para as
cidades. Estas ficaram inchadas, com grande parte da população vivendo uma vida
difícil, desempregada e passando necessidades. Surgiram as favelas até em
pequenas cidades do interior, com casinholas feitas de ripas misturadas com
papelão. O nível de vida da população caiu para zero por cento, trazendo como
consequência, os latrocínios, os furtos e enchendo as casas de reclusão.
No lugar das charretes e carroças vieram os carros,
caminhões e aviões. Tudo ficou acelerado e as pessoas passaram a viver uma vida
agitada, insatisfeita, comandada pelos programas idiotas de tevê.
E aí veio o computador. E o celular. E a tecnologia se
acelerou de um jeito, que ninguém consegue mais acompanhá-la.
Há vantagens na vida de hoje, com todas as mudanças que
ocorreram? Sim! Há muitas. Tudo ficou mais fácil e accessível, para todos.
Mas, por que é que a gente tem tanta saudade daqueles
tempos duros, quando tudo era simples e inocente?
Por que será, Anacleto Donizeti Tavoni?
Mirandópolis, abril de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com
Ressalva: O bebedouro dos animais está no mesmo lugar, na passagem de nível, e dizem que é uma peça antiquíssima. Nos primeiros tempos sua localização era na Rafael Pereira, nas proximidades do antigo Bazar Tietê.