quinta-feira, 11 de abril de 2013


        Charretes e carroças


Andei postando uma foto de charrete da dona Marieta e seus netos no facebook, que despertou lembranças em muitos amigos.
E o Anacleto Tavoni mandou uma mensagem pedindo para escrever dos tempos passados, quando havia a Casa Moreira e a Casa Santa Glória. Achei muito interessante a ideia e dei tratos à bola.

Mas, muitas lembranças se perderam ao longo dos anos e não tenho tantas recordações assim. Mesmo assim, resolvi puxar pela memória...
Antigamente, quando não havia carros, caminhões nem motocicletas, as pessoas andavam a pé. As de mais posses andavam a cavalo. E as de muito mais posses andavam de carroças e charretes.
Isso fazia parte do cotidiano. Na cidade circulavam as carroças, misturadas com charretes e cavalos, todos transportando gente ou mercadorias. Havia pontos de charretes na praça, atrás da estação ferroviária e mais tarde à frente do Bar do Ponto, onde paravam os ônibus que faziam as ligações com outros municípios. Nas portas das vendas e dos botecos, havia sempre umas argolas no chão da calçada ou traves de madeira, para se amarrar os animais, enquanto o dono fazia as compras ou se embebedava. E junto da linha férrea, ali onde existia uma cancela na passagem de nível, havia um grande reservatório de água para matar a sede dos animais de carga. Não sei que destino deram a ele, mas estava lá até alguns anos atrás.

As ruas eram estreitas e era muito difícil para o cidadão circular no meio desses veículos e cavaleiros, porque não havia regras para se organizar melhor o trânsito de todos. Cada um que cuidasse de si.
Mas, não havia acidentes; só de vez em quando, uns aborrecimentos por conta de gente mais grosseira, que não respeitava os pedestres. Exatamente como hoje!
As cidades passavam a semana inteira num marasmo sem fim. Nas vendas ou armazéns que vendiam de tudo ou nos botequins, raros eram os fregueses. Assim eram chamados os clientes.
A vida acontecia no campo. O povo morava na roça. Todos pelejando de sol a sol, derriçando café, rastelando, abanando e ensacando para levar à Comercial Perez, para pagar as contas do Banco e das vendas. Nas vendas e nos armazéns, todos tinham contas, em cadernetas onde se marcava tudo que era fiado. E só era pago na safra. A Casa Moreira era o Armazém maior, seguido de Casa Santa Glória. Ambas vendiam de tudo, desde arroz e feijão a granel, ferramentas para a lavoura e até tecidos finos. Lembro-me que, na minha formatura de Professora normalista em 1960, comprei o tecido na Casa Santa Glória para o vestido da missa solene de formatura. Esta Casa vendia tecidos mais raros e bonitos que a Casa Moreira.

Mas, a vida verdadeira ocorria na roça, para onde se voltavam os olhos dos comerciantes, porque uma boa safra significava sucesso nas vendas.
 O povo não vinha à cidade para as missas. Estas ocorriam na Capelinha da roça, que ficava cheinha de lavradores de mãos calejadas, para ouvir o Evangelho de Jesus e o sermão intransigente do Padre Epifânio. Geralmente nesses dias de missa na capela da roça, havia à tarde uma partida de futebol, reunindo jogadores e torcedores de vários bairros rurais de Mirandópolis, como Pé de Galinha, Monte Serrat, Vila Nova, Ribeirão Claro, Amandaba, Km 50... Ocasionalmente, havia um arrasta-pé à noite, animado com uma sanfona e uma viola que tocavam a verdadeira música caipira, oportunidade que era bem aproveitada para começar os namoros e firmar casamentos.

O comércio na cidade dependia totalmente da lavoura de café, de algodão. Se não chovia durante meses, os comerciantes olhavam o céu e coçavam a cabeça, pensando de antemão que, as contas pendentes dos agricultores não seriam pagas facilmente... E eram contas bem volumosas.
Mas, quando a colheita era farta, as ruas fervilhavam de gente comprando, comprando. Gente nas barbearias mudando o visual; alguns vinham desbastar os longos cabelos e barbas, cultivados por promessas; as farmácias sempre lotadas à procura de Elixires, de remédios para as feridas, de purgativos, de vitaminas, de brilhantinas, de pó de arroz, de batom; os bares derramando gente porta afora, com os bebuns de sempre falando alto e arrumando rixas por conta de palavras mal faladas e mal entendidas...
E à porta da Casa Santa Glória e da Casa Moreira, e mais tarde na Venda do seu João Ascêncio, os caminhões encostavam com os lavradores que vinham fazer a feira. E tratores com as carretas cheias de gente da roça.
Era uma multidão, sempre. Famílias inteiras desciam e compravam ferramentas para a roça, querosene para os lampiões e lamparinas, porque luz não existia, arroz, feijão, açúcar, carne seca, sardinhas salgadas (manjuba), farinha de mandioca, de trigo, alpargatas, metros de algodão cru e sarjas para a feitura de roupas da roça, chapéus de palha. O arroz, o feijão, a farinha e o açúcar eram comprados em sacas de até sessenta quilos, porque as famílias eram compostas de vários membros, e o arroz, feijão e farinha eram o alimento básico para o sustento de todos. Comia-se pouca carne, porque era cara e o dinheiro não dava para tanto. Legumes e verduras ninguém comprava, pois todos tinham uma hortinha na roça para o consumo da família. E lá se criavam porcos e galinhas, que forneciam a banha para uso diário na cozinha, ovos e ocasionalmente carne para os domingos e feriados.
As padarias ficavam lotadas de gente comendo pão com mortadela e tomando guaraná, que tinha no rótulo o desenho de uma maçã. E a molecada e as mulheres não dispensavam o sorvete, que era só de palitos. Enquanto isso, os homens bebiam cachaça no boteco da esquina. Era uma grande festa, que só ocorria uma vez por mês.

As Casas Pernambucanas também eram um ponto de encontro, onde as mulheres iam comprar os tecidos de chita em metros para confeccionar, elas próprias, os vestidos da família. A moda prêt-à-porter não havia sido inventada ainda. Tudo tinha que ser confeccionado. Era o tempo das costureiras, que faziam saias, blusas, vestidos, calças e até vestidos de noiva. Os alfaiates faziam os ternos. Muita gente chique usou o linho 120, que era branco e acetinado para fazer seus ternos, que eram lavados e engomados na Tinturaria do seu Benvindo, pai da professora Edite Cyrillo, se não me engano. Ah! Também esteve na moda o chapéu panamá, que era branquinho e era engomado também nessa Tinturaria. Os homens eram muito elegantes. O chapéu era parte do vestuário.
Havia também muitas carroças. Eram dos moradores isolados, que não dispunham de caminhão e vinham fazer as compras com a família. Nessa época, os Marconato fabricaram muitas carroças que circularam por anos, servindo à população. Hoje remanescem algumas ainda, transportando pedras e areia para as construções.
As ruas eram de terra batida, e se tornava um problema nos dias seguidos de chuva, porque virava um atoleiro só.  Com os ocasionais caminhões e carroças que circulavam, as rodas formavam valetas que ficavam intransponíveis para os pedestres... No tempo do estio, era uma poeira só. As lojas se impregnavam de poeira e seus donos ficavam espanando tudo com espanadores de penas longas, de avestruz diziam. Nesses dias muito secos, a Prefeitura mandava um caminhão-pipa irrigar as ruas para apagar a poeira.
Foi mais ou menos por essa época que começaram a surgir os serviços de alto falantes, que anunciavam os fatos mais importantes que ocorriam na cidade, além de tocar músicas que estavam nas paradas e os jovens aproveitavam para oferecer às moças, como “prova de amor” ou “prova de amizade”. Cantores famosos? Ângela Maria, Marlene, Cauby Peixoto, Orlando Silva, Mário Zan, Emilinha Borba, Nélson Gonçalves e tantos outros... As gravações eram em long plays de vinil, em 78 rotações. Só algumas casas mais ricas possuíam a vitrola para tocar essas músicas. Tudo isso era um grande sucesso, porque não existiam televisão nem emissoras de rádio na cidade. Às dezoito horas invariavelmente, os alto falantes apresentavam a Hora da Ave Maria, ou Ângelus, em que se rezava em alto e bom som o terço, agradecendo mais um dia de trabalho.
E as festas aconteciam em volta da Igreja do Padre Epifânio, com suas famosas quermesses. A cidade toda comparecia, doando frangos e leitoas assadas com capricho, que eram arrematados pelas pessoas que tinham mais recursos para pagar os altos lances. Durante essas quermesses, muitos namoros se iniciaram com a troca de correios elegantes, e firmaram-se noivados que acabaram no altar, com as bênçãos do mesmo padre.
Volta e meia acontecia um baile com as orquestras famosas da época, dentre as quais podemos lembrar de Pedrinho e sua Orquestra de Guararapes, Orquestra Marajoara de Jaboticabal, Nelson de Tupã e a Orquestra Sul América de Catanduva. Era a época dos vestidos rodados, de vários saiotes para destacar a cintura fina das moças. E as moças eram magras mesmo, de cintura fina a tal ponto de poetas compararem o corpo de suas amadas a um violão.  Hoje tudo está mudado. Cintura fina nem existe mais... As moças ficaram imensas e as roupas se transformaram em segunda pele que colam nos corpos, destacando as  feias  protuberâncias...
Também me lembro que os estudantes, cruzavam as ruas indo ou voltando das escolas, animando a cidade. Havia muitos estudantes, e os jovens eram puros e inocentes, que respeitavam os mestres e estudavam com afinco. O máximo de safadeza que praticavam era fugir das aulas para ir jogar bola, ou furtar melancias e laranjas nos quintais alheios. Não havia drogas e nem gangues, felizmente. Vida saudável, juventude sem problemas maiores.
Sobre carroças, lembro-me de um episódio engraçado: o Paulinho, meu amigo era um moleque ainda. Um dia o bucheiro, que vendia as vísceras dos animais pelas ruas, estacionou seu carrinho em frente ao açougue de seu tio. O Paulinho ficou olhando, olhando e não teve dúvida. Pegou um rebenque, subiu na boleia e chicoteou o animal, que disparou pelas ruas, indo para a Rafael Pereira, correndo numa disparada só, com os tios correndo atrás, para evitar acidentes... Felizmente, tudo acabou bem, com uma grande coça no menino arteiro.
E havia os entregadores de pão e de leite, que percorriam a cidade em suas carrocinhas, de madrugadinha gritando: “Olha o pão quentinho”  “Olha o leite” . O pão era depositado nas janelas das casas dos compradores mensalistas, e o leite de vaca era deixado em garrafas nas portas das casas. Não havia leite em saquinhos nem em caixinhas como há hoje. Era leite puro de vaca tirada de madrugadinha, e não tinha conservantes e nenhuma soda cáustica, como ocorreu recentemente com uma marca de leite embalado em caixinhas.
Também a água para se beber era buscada na mina de água na Fonte Nossa Senhora Aparecida, lá atrás da Penitenciária. Cada família buscava para seu consumo, porque a água ainda não era comercializada.
Aí chegaram os anos setenta, com a televisão, o telefone que se popularizou, e tudo se transformou. A vida simples foi se modificando.
Chegou o asfalto. Veio a crise do café e os cafezais viraram pastos para o gado. Acabou-se a lavoura. Os lavradores mudaram para as cidades. Estas ficaram inchadas, com grande parte da população vivendo uma vida difícil, desempregada e passando necessidades. Surgiram as favelas até em pequenas cidades do interior, com casinholas feitas de ripas misturadas com papelão. O nível de vida da população caiu para zero por cento, trazendo como consequência, os latrocínios, os furtos e enchendo as casas de reclusão.
No lugar das charretes e carroças vieram os carros, caminhões e aviões. Tudo ficou acelerado e as pessoas passaram a viver uma vida agitada, insatisfeita, comandada pelos programas idiotas de tevê.
E aí veio o computador. E o celular. E a tecnologia se acelerou de um jeito, que ninguém consegue mais acompanhá-la.

Há vantagens na vida de hoje, com todas as mudanças que ocorreram? Sim! Há muitas. Tudo ficou mais fácil e accessível, para todos.
Mas, por que é que a gente tem tanta saudade daqueles tempos duros, quando tudo era simples e inocente?
Por que será, Anacleto Donizeti Tavoni?

         Mirandópolis, abril de 2013.
         kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com

        Ressalva: O bebedouro dos animais está no mesmo lugar, na passagem de nível, e dizem que é uma peça antiquíssima. Nos primeiros tempos sua localização era na Rafael Pereira, nas proximidades do antigo Bazar Tietê.


2 comentários:

  1. Olá! Gostei de ler o seu texto. Parabéns, é muito importante esses relatos. Preserva a memória e nos faz refletir sobre o presente. Faz a gente refletir sobre e o que fomos e o que estamos construindo. Abraços. Alex

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