Charretes e carroças
E o Anacleto Tavoni mandou uma mensagem pedindo para escrever
dos tempos passados, quando havia a Casa Moreira e a Casa Santa Glória. Achei
muito interessante a ideia e dei tratos à bola.
Mas, muitas lembranças se perderam ao longo dos anos e não
tenho tantas recordações assim. Mesmo assim, resolvi puxar pela memória...
Antigamente, quando não havia carros, caminhões nem
motocicletas, as pessoas andavam a pé. As de mais posses andavam a cavalo. E as
de muito mais posses andavam de carroças e charretes.
Isso fazia parte do cotidiano. Na cidade circulavam as
carroças, misturadas com charretes e cavalos, todos transportando gente ou
mercadorias. Havia pontos de charretes na praça, atrás da estação ferroviária e
mais tarde à frente do Bar do Ponto, onde paravam os ônibus que faziam as
ligações com outros municípios. Nas portas das vendas e dos botecos, havia
sempre umas argolas no chão da calçada ou traves de madeira, para se amarrar os
animais, enquanto o dono fazia as compras ou se embebedava. E junto da linha
férrea, ali onde existia uma cancela na passagem de nível, havia um grande
reservatório de água para matar a sede dos animais de carga. Não sei que
destino deram a ele, mas estava lá até alguns anos atrás.
Mas, não havia acidentes; só de vez em quando, uns
aborrecimentos por conta de gente mais grosseira, que não respeitava os
pedestres. Exatamente como hoje!
As cidades passavam a semana inteira num marasmo sem
fim. Nas vendas ou armazéns que vendiam de tudo ou nos botequins, raros eram os
fregueses. Assim eram chamados os clientes.
A vida acontecia no campo. O povo morava na roça. Todos
pelejando de sol a sol, derriçando café, rastelando, abanando e ensacando para
levar à Comercial Perez, para pagar as contas do Banco e das vendas. Nas vendas
e nos armazéns, todos tinham contas, em cadernetas onde se marcava tudo que era
fiado. E só era pago na safra. A Casa Moreira era o Armazém maior, seguido de
Casa Santa Glória. Ambas vendiam de tudo, desde arroz e feijão a granel,
ferramentas para a lavoura e até tecidos finos. Lembro-me que, na minha
formatura de Professora normalista em 1960, comprei o tecido na Casa Santa
Glória para o vestido da missa solene de formatura. Esta Casa vendia tecidos
mais raros e bonitos que a Casa Moreira.
Mas, a vida verdadeira ocorria na roça, para onde se
voltavam os olhos dos comerciantes, porque uma boa safra significava sucesso
nas vendas.
O povo não vinha
à cidade para as missas. Estas ocorriam na Capelinha da roça, que ficava
cheinha de lavradores de mãos calejadas, para ouvir o Evangelho de Jesus e o
sermão intransigente do Padre Epifânio. Geralmente nesses dias de missa na
capela da roça, havia à tarde uma partida de futebol, reunindo jogadores e
torcedores de vários bairros rurais de Mirandópolis, como Pé de Galinha, Monte
Serrat, Vila Nova, Ribeirão Claro, Amandaba, Km 50... Ocasionalmente, havia um
arrasta-pé à noite, animado com uma sanfona e uma viola que tocavam a
verdadeira música caipira, oportunidade que era bem aproveitada para começar os
namoros e firmar casamentos.
Mas, quando a colheita era farta, as ruas fervilhavam
de gente comprando, comprando. Gente nas barbearias mudando o visual; alguns
vinham desbastar os longos cabelos e barbas, cultivados por promessas; as
farmácias sempre lotadas à procura de Elixires, de remédios para as feridas, de
purgativos, de vitaminas, de brilhantinas, de pó de arroz, de batom; os bares
derramando gente porta afora, com os bebuns de sempre falando alto e arrumando
rixas por conta de palavras mal faladas e mal entendidas...
E à porta da Casa Santa Glória e da Casa Moreira, e
mais tarde na Venda do seu João Ascêncio, os caminhões encostavam com os
lavradores que vinham fazer a feira. E tratores com as carretas cheias de gente
da roça.
Era uma multidão, sempre. Famílias inteiras desciam e
compravam ferramentas para a roça, querosene para os lampiões e lamparinas,
porque luz não existia, arroz, feijão, açúcar, carne seca, sardinhas salgadas
(manjuba), farinha de mandioca, de trigo, alpargatas, metros de algodão cru e
sarjas para a feitura de roupas da roça, chapéus de palha. O arroz, o feijão, a
farinha e o açúcar eram comprados em sacas de até sessenta quilos, porque as
famílias eram compostas de vários membros, e o arroz, feijão e farinha eram o
alimento básico para o sustento de todos. Comia-se pouca carne, porque era cara
e o dinheiro não dava para tanto. Legumes e verduras ninguém comprava, pois
todos tinham uma hortinha na roça para o consumo da família. E lá se criavam
porcos e galinhas, que forneciam a banha para uso diário na cozinha, ovos e
ocasionalmente carne para os domingos e feriados.
As Casas Pernambucanas também eram um ponto de
encontro, onde as mulheres iam comprar os tecidos de chita em metros para
confeccionar, elas próprias, os vestidos da família. A moda prêt-à-porter não
havia sido inventada ainda. Tudo tinha que ser confeccionado. Era o tempo das
costureiras, que faziam saias, blusas, vestidos, calças e até vestidos de
noiva. Os alfaiates faziam os ternos. Muita gente chique usou o linho 120, que
era branco e acetinado para fazer seus ternos, que eram lavados e engomados na
Tinturaria do seu Benvindo, pai da professora Edite Cyrillo, se não me engano.
Ah! Também esteve na moda o chapéu panamá, que era branquinho e era engomado
também nessa Tinturaria. Os homens eram muito elegantes. O chapéu era parte do
vestuário.
Havia também muitas carroças. Eram dos moradores
isolados, que não dispunham de caminhão e vinham fazer as compras com a
família. Nessa época, os Marconato fabricaram muitas carroças que circularam
por anos, servindo à população. Hoje remanescem algumas ainda, transportando
pedras e areia para as construções.
As ruas eram de terra batida, e se tornava um problema
nos dias seguidos de chuva, porque virava um atoleiro só. Com os ocasionais caminhões e carroças que
circulavam, as rodas formavam valetas que ficavam intransponíveis para os
pedestres... No tempo do estio, era uma poeira só. As lojas se impregnavam de
poeira e seus donos ficavam espanando tudo com espanadores de penas longas, de
avestruz diziam. Nesses dias muito secos, a Prefeitura mandava um caminhão-pipa
irrigar as ruas para apagar a poeira.
Foi mais ou menos por essa época que começaram a surgir
os serviços de alto falantes, que anunciavam os fatos mais importantes que
ocorriam na cidade, além de tocar músicas que estavam nas paradas e os jovens
aproveitavam para oferecer às moças, como “prova de amor” ou “prova de
amizade”. Cantores famosos? Ângela Maria, Marlene, Cauby Peixoto, Orlando
Silva, Mário Zan, Emilinha Borba, Nélson Gonçalves e tantos outros... As
gravações eram em long plays de vinil, em 78 rotações. Só algumas casas mais
ricas possuíam a vitrola para tocar essas músicas. Tudo isso era um grande
sucesso, porque não existiam televisão nem emissoras de rádio na cidade. Às
dezoito horas invariavelmente, os alto falantes apresentavam a Hora da Ave
Maria, ou Ângelus, em que se rezava em alto e bom som o terço, agradecendo mais
um dia de trabalho.
E as festas aconteciam em volta da Igreja do Padre
Epifânio, com suas famosas quermesses. A cidade toda comparecia, doando frangos
e leitoas assadas com capricho, que eram arrematados pelas pessoas que tinham
mais recursos para pagar os altos lances. Durante essas quermesses, muitos namoros
se iniciaram com a troca de correios elegantes, e firmaram-se noivados que
acabaram no altar, com as bênçãos do mesmo padre.
Volta e meia acontecia um baile com as orquestras
famosas da época, dentre as quais podemos lembrar de Pedrinho e sua Orquestra de
Guararapes, Orquestra Marajoara de Jaboticabal, Nelson de Tupã e a Orquestra
Sul América de Catanduva. Era a época dos vestidos rodados, de vários saiotes
para destacar a cintura fina das moças. E as moças eram magras mesmo, de
cintura fina a tal ponto de poetas compararem o corpo de suas amadas a um
violão. Hoje tudo está mudado. Cintura
fina nem existe mais... As moças ficaram imensas e as roupas se transformaram
em segunda pele que colam nos corpos, destacando as feias
protuberâncias...
Também me lembro que os estudantes, cruzavam as ruas
indo ou voltando das escolas, animando a cidade. Havia muitos estudantes, e os
jovens eram puros e inocentes, que respeitavam os mestres e estudavam com
afinco. O máximo de safadeza que praticavam era fugir das aulas para ir jogar
bola, ou furtar melancias e laranjas nos quintais alheios. Não havia drogas e
nem gangues, felizmente. Vida saudável, juventude sem problemas maiores.
Sobre carroças, lembro-me de um episódio engraçado: o
Paulinho, meu amigo era um moleque ainda. Um dia o bucheiro, que vendia as
vísceras dos animais pelas ruas, estacionou seu carrinho em frente ao açougue
de seu tio. O Paulinho ficou olhando, olhando e não teve dúvida. Pegou um
rebenque, subiu na boleia e chicoteou o animal, que disparou pelas ruas, indo
para a Rafael Pereira, correndo numa disparada só, com os tios correndo atrás,
para evitar acidentes... Felizmente, tudo acabou bem, com uma grande coça no
menino arteiro.
E havia os entregadores de pão e de leite, que
percorriam a cidade em suas carrocinhas, de madrugadinha gritando: “Olha o pão
quentinho” “Olha o leite” . O pão era
depositado nas janelas das casas dos compradores mensalistas, e o leite de vaca
era deixado em garrafas nas portas das casas. Não havia leite em saquinhos nem
em caixinhas como há hoje. Era leite puro de vaca tirada de madrugadinha, e não
tinha conservantes e nenhuma soda cáustica, como ocorreu recentemente com uma
marca de leite embalado em caixinhas.
Também a água para se beber era buscada na mina de água
na Fonte Nossa Senhora Aparecida, lá atrás da Penitenciária. Cada família
buscava para seu consumo, porque a água ainda não era comercializada.
Aí chegaram os anos setenta, com a televisão, o
telefone que se popularizou, e tudo se transformou. A vida simples foi se
modificando.
No lugar das charretes e carroças vieram os carros,
caminhões e aviões. Tudo ficou acelerado e as pessoas passaram a viver uma vida
agitada, insatisfeita, comandada pelos programas idiotas de tevê.
E aí veio o computador. E o celular. E a tecnologia se
acelerou de um jeito, que ninguém consegue mais acompanhá-la.
Há vantagens na vida de hoje, com todas as mudanças que
ocorreram? Sim! Há muitas. Tudo ficou mais fácil e accessível, para todos.
Mas, por que é que a gente tem tanta saudade daqueles
tempos duros, quando tudo era simples e inocente?
Por que será, Anacleto Donizeti Tavoni?
Mirandópolis, abril de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com
Ressalva: O bebedouro dos animais está no mesmo lugar, na passagem de nível, e dizem que é uma peça antiquíssima. Nos primeiros tempos sua localização era na Rafael Pereira, nas proximidades do antigo Bazar Tietê.
Ressalva: O bebedouro dos animais está no mesmo lugar, na passagem de nível, e dizem que é uma peça antiquíssima. Nos primeiros tempos sua localização era na Rafael Pereira, nas proximidades do antigo Bazar Tietê.
Olá! Gostei de ler o seu texto. Parabéns, é muito importante esses relatos. Preserva a memória e nos faz refletir sobre o presente. Faz a gente refletir sobre e o que fomos e o que estamos construindo. Abraços. Alex
ResponderExcluirNATHANAEL
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