sábado, 26 de novembro de 2011

HERÓIS DE CARNE E OSSO



Ao longo dos
meus quase setenta anos  de vida, 
conheci tanta gente heroica, que     no
anonimato do dia a dia, venceu terríveis batalhas nunca divulgadas.
Para mim, é sempre edificante  lembrar de dona Maria que, viúva com seis filhos pequenos para alimentar,  passou mil dificuldades, lavando roupas, fazendo faxinas  a troco de comida, que muita vezes vinha temperada de mil humilhações.
Certa vez, perguntei-lhe o que havia servido na véspera  para as crianças.  E ela me disse que havia cozinhado milho seco por horas, para torná-lo digerível. E outras vezes, ela mandara as crianças para cama mais cedo, para esquecerem da fome...
Outra amiga me contou que uma tarde serviu o jantar, feito com os últimos gêneros alimentícios que havia na despensa. E pediu a Deus que a socorresse, porque  não havia mais nada para consumir no dia seguinte.
Aí, bateram palmas à frente da casa, e ela foi atender. Era uma senhora que ela não conhecia, e havia trazido 
uma cesta básica para ela.
 De tão emocionada, ela só abraçou a benfeitora e chorou, agradecendo a Deus pelo pronto atendimento ao seu pedido. E nem se lembrou de perguntar o nome da bondosa senhora, do que
 sente remorsos até hoje.
Um arrendatário de algodão carregou por sete meses, a sua família  de meia dúzia de crianças, e mais treze famílias cheias de crianças e adolescentes, 
preparando   a terra para  plantar.
 Mas não chovia  e ele não podia plantar. E durante longos meses, esse homem sustentou todos eles, com compras que fazia semanalmente na cidade, 
endividando-se até o pescoço.
Mesmo naqueles  dias de desespero, ele comprava  umas melancias e distribuía aos peões e seus filhos, todos os sábados.
Era a única hora  alegre da colônia. 
Na tarde se sol ofuscante, 
todos comendo melancia a céu aberto. E felizes  com a doçura da fruta, misturada com a bondade do patrão.
E todos ficavam animados.
De manhã,  todos olhavam o céu
 à procura de uma nuvem. 
Mas, nada. A chuva não vinha.
E todos estavam desanimados e tristes.
 Sete longos  e tristes meses transcorreram...
Até que numa madrugada de
19 de outubro, desceu uma água 
 como nunca se vira antes.
Era um ribombar de trovões que não cessava, e raios que 
iluminavam como se fosse dia. 
E no meio daquele barulho assustador, ouviu-se a voz do lavrador, gritando para a esposa e filhos saírem da cama,
 para agradecer  a chuva que 
Deus havia mandado. 
E entre um relâmpago e outro, viu-se no  chão  de terra  da pobre sala,
a família toda ajoelhada, 
chorando e orando de gratidão.
Essa é uma das cenas mais comoventes,
que presenciei em minha vida,
 e sempre a associo aos mais belos quadros, pintados por famosos impressionistas. 
E era ao vivo.
Um menino de treze anos queria, de qualquer forma  ter um violão.
 Sonho impossível para uma família
 pobre de lavradores, 
mais ainda porque seu pai 
não aprovava a vida de cantores e violeiros.   Dizia que todos eles ficavam na boa vida, para não trabalhar.
 Mas o sonho do menino era verdadeiro.
 E ele trabalhou de diarista 
na roça dos vizinhos, 
aos sábados e domingos sem folga, 
para conseguir comprar  o violão.
 É que durante a semana, tinha que trabalhar  junto com a família 
na própria roça. 
E após muito  trabalho de sol a sol, conseguiu juntar o dinheiro,
 para comprar o tão sonhado objeto.
Minha mãe também foi 
uma dessas  heroínas. 
Viveu um vida duríssima, criando 
doze filhos na maior pobreza. 
Quando  o seu cotidiano era 
só de deveres pesados,
ela conheceu o crochê, que é um artesanato feito de linha trançada por uma agulha,  
com um gancho na ponta.  
Ela ficou muito encantada com o rendado do crochê, e quis também fazê-lo.  
Mas era pobre demais e, não podia comprar linha para crochetar.  
A urgência  era a comida para 
a família numerosa.
Sua paixão pelo artesanato 
não aceitava desistência.
Então, ela  começou a crochetar  com a linha de carretel, que era usada para
 costurar  a roupa da roça. 
A linha era tão fina e, os rendados não  alcançavam o tamanho dos  modelos.
 Entretanto, eram mais belos, 
porque ficavam mais delicados.
Dessa época duríssima da vida, 
ficou como consolo, a lembrança de quadrados de  renda fina,
 que ela crochetou para enfeitar
 as fronhas dos travesseiros. 
Eram todos brancos e belíssimos.
 Recentemente, conheci uma senhorinha que criou sete filhos sozinha, e comeu 
o pão que o  diabo amassou. 
Trabalhou tanto na roça que,
 hoje nem saúde tem mais. 
Naqueles tempos terríveis, ela contou que  tinha tanta vontade de tomar café, 
mas não podia comprá-lo, porque estava além de suas posses. Então, ela colhia sementes de fedegoso,
que é um arbusto que  cresce nas pastagens, torrava-as, e socava no pilão 
para fazer o café. 
Tinha um sabor diferente,
mas dava para enganar.
E isso aconteceu aqui no Brasil, onde o café era a base de nossa economia...
 era a bebida mais corriqueira.
E assim, há tantas histórias belíssimas de brava gente, ,que lutou e venceu, 
porque não desistiu. 
E cada história  é um exemplo de vida.
 E não é preciso pesquisar em 
enciclopédias nem na Internet. 
Essas histórias existem na vizinhança, 
na própria família. 
Basta perguntar. E ouvir.
Todos heróis de carne e osso, todos determinados em vencer, em não desistir. 
A caminhada foi longa,  e permeada de sacrifícios e renúncias sem conta,
 que ninguém pode imaginar, nem acreditar.
Ah! ia me esquecendo
de um jovem japonês, que  há mais de um século atrás, viveu para salvar 
os lavradores mais pobres da Província de Iwate, a região mais inóspita do Japão.
Foi Professor de Escola Agrícola, 
foi poeta, foi na essência, 
 um grande educador. 
Pesquisou os  solos áridos, pesquisou os tipos de fertilizantes, que poderiam fortalecer as terras improdutivas da região.
 E tanto se entregou  na missão de ajudar e salvar os pequenos agricultores que,
 ele próprio perdeu a saúde e 
acabou falecendo, com apenas  
trinta e oito anos de vida.
O nome desse herói é Miyazawa Kenji, conhecido  até pelas crianças do
 Curso Primário no Japão. 
Ele deixou como um legado para os lavradores, além do seu exemplo de vida, centenas de poemas que falam da terra,
 do sol, da chuva, das neves.
E o seu poema mais conhecido e traduzido para todas as línguas do mundo,
 foi um grito de dor e alento, para
as pessoas sofridas da roça. 
Lavradores que perdiam toda a safra de arroz para os terríveis invernos que assolavam a região.
Longos invernos, em que a neve enterrava 
o verde arrozal, que prometia o sustento de todos na próxima primavera e verão.
O poema diz  :

          Não se deixe derrotar pela chuva.
 Não se deixe derrotar pelo vento.
                                            Nem pela neve.
     Nem pelo calor causticante  do verão.
              Viva tranquilo sem enfurecer-se.
                             Esteja sempre sorrindo.

Parece apenas um poeminha sem valor, mas tem um significado profundo, porque
 o Professor Miyazawa viveu  tudo isso, quando passou a trabalhar como lavrador,  para  realmente vivenciar a dura vida, 
dos que se dedicavam  ao cultivo da terra. Labutando tanto e perdendo safras inteiras, para as mudanças climáticas.
 E o poema também resume a força e a coragem das pessoas aqui citadas,
que não se renderam às dificuldades da vida. 
Todas elas passaram por mil percalços, 
mas não desistiram, guiadas
por um desejo, um sonho, uma fé.
 Dona Maria conseguiu criar os seis filhos;
 a amiga que ganhou a cesta básica não passa mais necessidades; 
o arrendatário teve uma colheita excelente  e pagou todas as dívidas;o menino é hoje um respeitado 
Professor de violão;
a senhorinha criou os sete filhos que a amam muito, e me serve um  café gostoso 
quando a visito e mamãe foi feliz, crochetando até 
o fim de sua longa vida.
Todas essas pessoas são heróis anônimos
de carne e osso ,
 como foi Miyazawa Kenji.
Dignos  de respeito  e reverência.


   Mirandópolis, novembro de 2011.
                                                           Kimie Oku

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