quarta-feira, 23 de novembro de 2011

LITERATURA - SARAMAGO

Saramago

"Prezada Kimie Oku,
Mui grato pela sua comovedora carta.
O juízo que faz de mim é evidentemente exagerado, mas pelo menos, prova que não sou contrário do que soy... Quanto a Deus, o mellhor é deixá-lo em paz.
Deus foi inventado na cabeça do homem e nunca saiu dela.
Penso assim, mas respeito quem assim não pense. Quem dera que todos fizessem o mesmo.
Um abraço.
José Saramago
17 de outubro de 2001
Lanzarote "

Este é o conteúdo da carta-resposta, que um dia recebi do Nobel de Literatura, José Saramago, que faleceu dias atrás.
Isso ocorreu porque, catorze dias após a destruição das torres gêmeas do World Trade Center de Nova York, que vitimou centenas de pessoas, a Folha de São Paulo publicou um ensaio de Saramago intitulado "FATOR DEUS". Era uma matéria de página inteira e, o texto emoldurava a foto de um refugiado afegão implorando clemência.
Só a foto em si já fazia a alma doer.
E o ensaio...
O ensaio focava cenas de horror praticadas pelo homem contra seus semelhantes na Índia, em Angola e em Israel.
E Saramago comentava que, o grau de horror causado na América era o mesmo que ocorria em várias partes do mundo. Ele gritava sua indignação contra a crueldade, a brutalidade do homem contra o homem. E questionava:
     " Que Deus é esse que permite tanta barbárie ser praticada em seu nome? "
Mas, para ele que se dizia ateu convicto, se um Deus existe, seria inocente de todos esses atos praticados. Deus estaria inocente, mas o homem o tornava assassino, quando usava o fator Deus para justificar suas ações mais sórdidas.
Quando li o ensaio, fiquei tão tocada pela verdade aí exposta, que num impulso, lhe escrevi uma carta. Disse-lhe que apesar de se declarar ateu, em toda a dor manifesta no texto, havia algo de sublime que só poderia advir de um crente, gritando sua indignação para algo, alguém... Deus....
Enderecei a carta para a Redação da Folha de São Paulo, sem esperança que chegasse até seu destino.
Qual não foi minha surpresa quando recebi a resposta. Eu nem sabia que ele morava em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, a noroeste da África.
Respeito Saramago, que assumiu uma postura firme contra a desumanização do homem, contra a globalização do mundo, em que só os fortes têm vez e voz.
Foi radical ao condenar as pseudo-democracias, em que governantes se utilizam de ignóbeis recursos, para oprimir quem diz a verdade, quem clama por justiça.
Tanto é que teve a coragem de se exilar nas Canárias, em protesto ao governo de Portugal seu país que censurou o Evangelho, sua obra mais famosa.
E rompeu com o Fidel, a quem apoiava, quando Cuba mandou executar dissidentes. Não teve dúvida alguma em condenar Israel, pela ocupação da Palestina.
E acima de tudo isso, ele comprou uma grande briga com a Igreja Católica, que nunca aceitou críticas às "Verdades Sempiternas".
Quando li o Fator Deus percebi instantaneamente, a grandeza de sua alma, o senso de justiça e o profundo amor pelo ser humano.
Já tentei ler O Evangelho segundo Jesus Cristo.
Não consegui. Ele tira o fôlego de quem o lê, pela extensão dos parágrafos, que chegam às vezes a ocupar quase um capítulo.
Mas os livros de Saramago devem ser lidos oralmente, como se estivesse a conversar com o leitor , que é como ele os escrevia. E assim o farei, aliás, assim estou lendo-o bem devagarinho, pronunciando cada palavra portuguesa (de Portugal mesmo), saboreando o pensamento vasto e profundo que nos legou.
E estou publicando a carta resposta, movida pela gratidão. E mais ainda, para provar que ele sabia respeitar seus semelhantes.
Saramago, obrigada por ter existido!
Mirandópolis, junho de 2010.
kimie oku
Observação: Leia também "Literatura - O Evangelho segundo Jesus Cristo" de 14 de dezembro de 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário