quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

            ANJO   BRAVO  (história verídica)

                                   Ela tinha uns quarenta anos.
  Tinha a cara enrugada como casca de noz. Malcriada, feia, grosseira. Trabalhadeira, porém.
   Fazia qualquer negócio - : lavava, passava, cozinhava, distribuía panfletos, dormia com homens a troco de cigarros...
   E tinha o costume de surrupiar coisas.
  Não podia ver nada diferente. Afanava tudo: tesouras, óculos, relógios, moedas. Do freezer, pegava filés inteiros, frangos. Da despensa, levava pacotes de arroz, latas de óleo. Do armário, carregava talheres, tigelas, panos de prato.
  Certa vez, afanou  uns óculos de sol.  Meu filho os recuperou, e deixou-os bem à vista, com  um aviso : “Favor, não roubar de novo”.
   Mas ela era incurável.
  Uma vez, me contou sobre sua mãe – odiava-a, porque  ela dera leite azedo para sua filha , que quase morreu.
   Quando  a odiada mãe faleceu, ela não foi ao enterro.
   Após o funeral, lá pelas tantas da noite, ela ouviu o arrastar dos chinelos  da morta , e a luz da cozinha começou a piscar.
  E ela : “- Não vem, não! Eu não tenho medo de você. Vá pros quintos do inferno, que é o seu lugar!”
   O arrastar parou e a luz  não piscou mais, segundo ela.
 Ela porém, tinha uma dor. Uma dor terrível que voltava ciclicamente. Começava num dente. A dor era tão forte que , ela ficava prostrada, tomando analgésicos sem parar, chorando por dois, três dias.
  Os dentistas não achavam a causa da dor. O dente  não tinha cárie. Radiografias nada revelavam.
  De repente, a dor sumia.
 E aí, aliviada,  ela voltava à rotina de sempre, trabalhando, cantando, roubando. Tudo numa naturalidade inacreditável.
  E então, depois de uns quinze dias bem, a dor voltava. E era na cabeça. Doía tanto, que ela rolava no chão, uivando como um animal. Nenhum remédio a aliviava.
  Os médicos não entendiam  tanta dor, pois as tomografias nada revelavam. Ficava também uns três dias assim sofrendo, até que a dor sumia, de repente.
  E tudo voltava ao normal. Fumando, dormindo com qualquer velho, que lhe desse um dinheirinho. E roubando bolsinhas, lençóis, toalhas de rosto...
   Não tinha cura a mulher.
 O período durava, às vezes, um mês inteiro, sem dor. Mas, subitamente, ela voltava. E era no pé, num olho de peixe, que latejava sem parar, que  ela ficava sem poder andar por dois , três dias. Ela chegava a cutucar o olho com  um canivete, para se livrar da dor. Mas, nada. Só desaparecia quando vencia o prazo da dor.
   Era dor demais para uma só pessoa. E se repetia de três a quatro vezes no ano. Era tanto sofrimento, que todos esqueciam os defeitos dela, e procuravam ajudá-la.
   Um dia, depois de uma maratona dessas, não resisti e lhe preguei   "Anjo, essa dor que a faz sofrer tanto, é a sua mãe pedindo oração. Vá ao cemitério, descubra onde ela está sepultada, acenda umas velas  e reze para que ela descanse em paz. Perdoe-a de coração , e ela levará essa dor embora.”
  E ela : “Vai demorá!”
  Não me ouviu. E continuou carregando a dor. Anos depois soube que, ela teve um AVC e estava inválida.

        Araçatuba, 1997. 
             Revisto em  Mirandópolis, 15 de dezembro de 2011.
                                                 Kimie oku


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