terça-feira, 20 de dezembro de 2011


             DITO  VERMELHO E DONA  MARIA                                                                                                    
                                                                             história  verídica
        1948 ou 1949.
         Havia uma mata no fundo do sítio, onde morávamos.
         Cada proprietário deixava intacta  uma faixa 
de mata virgem, não sei se era por ordem do governo.
         Cada faixa  se emendava na dos vizinhos, formando
 uma floresta.
 Era bela, secular e inóspita. Misteriosa.
 Lá moravam muitos macacos,
 que sempre tínhamos que  afugentar, 
porque vinham roubar as espigas de milho. 
 Enquanto uns corriam e saltavam céleres
 para as árvores, 
outros desciam e  pegavam as espigas,
 numa rapidez incrível.
 Nós crianças, sempre perdíamos para eles.
  Parecia até que zombavam da gente.
Volta e meia, víamos  um bando de 
veados vermelhos, atravessando as plantações 
verdes  de arroz.
 O que mais se destacavam eram os chifres,
 em forma de galhos.
Essas imagens ficaram gravadas para sempre, 
em minha memória. 
E nunca foram fotografadas, mesmo porque 
ninguém tinha máquinas fotográficas.
No começo, havia até onças,
 que os homens  queriam caçar, sentados nas esperas, 
que armavam no alto das árvores. 
E passavam horas, esperando madrugada adentro,
 com suas garruchas, e tremendo 
de medo das bichas.
Depois, os bichos foram desaparecendo,
não sei por quê razão. 
Só ficaram pássaros, tatus, teús e macacos.
 Estes também  logo emigrariam, para outras 
matas mais densas.
Um dia, um bando de molecada resolveu explorar a mata.
Não sei por quê, eu também fui. 
Era um grupo de seis ou sete crianças de sete a dez anos.
         E lá fomos nós, numa aventura não programada,
 e sem avisar os pais, que naturalmente seriam 
contra a brincadeira.
O maior dos meninos ia à frente, cortando com um facão os cipós,
 e os galhos cheios de espinhos.
         E nós, atrás, pulando os troncos,
 arranhando os braços nos galhos ásperos das árvores, choramingando, escorregando, 
mas seguindo atrás, com medo de ficar perdido na mata.
         Como era um mundo desconhecido,todos estavam
 com  muito medo, 
porque ninguém sabia o que nos esperava. 
Coraçõezinhos batiam acelerados.
 E em fila indiana, fomos seguindo mata adentro.
         Súbito, uma clareira.
         Verde, verde de capim  e uma centena de coqueiros, 
que se multiplicavam naturalmente.
          Era uma paisagem inesperada. 
 O local era muito bonito, cercado pela  mata  secular
 por todos os lados.
          Quando despertamos do susto, vimos
 uma tapera bem no meio do coqueiral.  
Era feita de troncos roliços e coberta com  palmas de coqueiro.
 E reinando ali, num mundo desconhecido para nós, 
moravam o Dito Vermelho e a dona Maria.
          O homem era branco, claro, mas bem vermelho 
 queimado de sol, e a mulher era preta, miudinha.
 Quando nos viu, vieram nos receber naturalmente,
 na maior simplicidade. 
Nós, crianças, estávamos temerosas, porque não os conhecíamos 
e desconfiávamos de gente estranha.
          Mas, logo eles contaram a sua história.
         Moravam ali e viviam de criar porcos. 
Mostrou-nos o chiqueiro, onde  uma dezena de porcos 
gritavam, pedindo comida. 
E aí, o Dito  pegou uma vara longa e cutucou os coqueiros, derrubando os cocos.
 E com eles acalmou os suínos. 
Os cocos eram as macaúbas, que até nós crianças, gostávamos de comer. (depois disso, nunca mais comi as tais)
          O Dito e a dona Maria  criavam porcos, 
e vendiam sua carne e  banha num patrimônio, 
distante uns  cinco quilômetros dali.
 E com a renda, compravam o café, o arroz, o feijão, a farinha e o açúcar. Acho que eram felizes, assim, 
vivendo na extrema pobreza, sem nenhum luxo.
          Hoje penso que, seriam os sem terra de antigamente,
 que moravam em terras alheias,
 sem nenhuma preocupação.
          Não me recordo, como terminou essa
 nossa aventura mata adentro. 
Sei apenas que foi inesquecível.
         Anos mais tarde, nós encontramos o casal levando 
a banha e a carne em latas  de dezoito litros, 
 na cabeça, como
faziam os  africanos, antigamente.
          Percorriam sempre descalços, as estradas  de terra,
 que queimavam os pés, levando a sua carga preciosa
 para trocar com a farinha e o feijão.
         Muitos anos depois, encontrei a dona Maria 
 “pedindo ajutório para a vó” 
nos Bancos da cidade. 
 E ela abençoava a todos, que lhe davam uns trocados.
 Perguntei do Dito  Vermelho e, ela  me informou
 que havia falecido.
         Sua imagem ficou também gravada:
 usava uma  saia longa rodada, uma blusa branca,
 e um monte de colares de contas no pescoço. 
Na cabeça  levava uma rodinha de pano,
 que era onde ela carregava qualquer coisa. 
E  sempre tinha um pito na boca. 
E sempre, sempre, descalça.
          Movida por compaixão, procurei saber como ela vivia. 
E fiquei sabendo, pasmem , que ela tinha uma porção de 
casinhas de aluguel  numa cidade próxima.
          Há anos que não a vejo mais.
 Com certeza já morreu, também.
         Dito Vermelho e dona Maria.

                    Mirandópolis, qualquer dia de 2007.
                              Revisado em 20 de dezembro de 2011.
                                            Kimie oku

Nenhum comentário:

Postar um comentário